Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:016/22
Data do Acordão:07/14/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL
DOMÍNIO PÚBLICO
Sumário:I - Compete aos Tribunais Administrativos apreciar acção sobre um contrato de cedência da parcela de terreno, o qual funcionou verdadeiramente como uma alternativa a um processo de expropriação visando um fim de interesse público prosseguido pelo R. Município.
II - Através de tal contrato o dito prédio passou a pertencer ao domínio público municipal, pretendendo agora os AA., com a resolução do contrato, por alegado incumprimento do R., ver “revertida” a situação do referido bem (como pedido principal), sendo a situação reconduzível ao disposto no art. 4º, nº 1, alínea o), do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P29795
Nº do Documento:SAC20220714016
Data de Entrada:05/09/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU - JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU U.O.1
AUTOR: A......... E OUTROS
RÉU: MUNICÍPIO DE MANGUALDE
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A presente acção administrativa foi intentada por B…….. e mulher A……… no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu (TAF de Viseu), contra o Município de Mangualde sendo formulados, nomeadamente, os pedidos de ser declarado o incumprimento definitivo e gravemente culposo do acordo pelo Réu [de cedência de terreno de propriedade dos AA. celebrado entre estes e o R. em 13.06.2007], com a consequente resolução do mesmo e consequentemente, ser o R. condenado a restituir o terreno cedido pelos AA., em toda a sua largura e extensão, livre de pessoas e bens; ou, caso não seja possível essa restituição, subsidiariamente, pedem a condenação do R. no pagamento aos AA. do valor de tal terreno, na execução de obras de nivelamento, drenagem e aterro dos terrenos, ou, caso tal não seja possível, no custo desses trabalhos e no pagamento de diversos valores (discriminados nas alíneas C, D, E, F e G dos pedidos).
Alegam os AA., em síntese, que, em 13.06.2007, tinham celebrado com o Réu um acordo de cedência de terreno, área retirada do prédio da sua propriedade, sita à ….. e identificado nos autos, acordo de cedência esse destinado a servir o interesse público de “construção de uma rotunda no âmbito da reabilitação da EM 595 no cruzamento de ….. com …..”.
Evitando assim “o R. o dispendioso processo de expropriação e como contrapartida obrigou-se a realizar determinadas obras de urbanização”, tendo aquando dos preliminares que antecederam o acordo e na celebração deste proposto aos AA., em troca da cedência do terreno, a garantia de um loteamento no local, sem quaisquer custos ou encargos para estes [cabendo aos AA. custear a construção a fazer no loteamento, com o empreiteiro que escolhessem]. No entanto, apesar de ter iniciado obras no local, o R. nunca construiu qualquer rotunda dado que abandonou as obras mantendo-se até hoje a situação conforme descrevem. Tendo o terreno dos AA. ficado fraccionado, dividido e impedido de circulação de equipamentos agrícolas para tratamento da vinha no espaço sobrante, e, por outro lado, exigindo ainda o pagamento de taxas e despesas administrativas no loteamento ao contrário do acordado.
Mais alegam que o R. colocou um tubo de condução de água que desemboca no terreno dos AA., enchendo-o de água, tendo depois parado a obra que executava, e que determinou a cedência pelo AA. do seu terreno, ficando o espaço abandonado, com lixo. Invocam ainda que a construção do loteamento se tornou demasiado dispendiosa, face à não execução pelo R. das obras a que se obrigou, o que causa prejuízos aos Autores – que perderam o interesse na manutenção do contrato, face à recusa prolongada no tempo de cumprimento por parte daquele.
O R. Município contestou defendendo a improcedência da acção e, consequentemente, a sua absolvição do pedido.

O TAF de Viseu por despacho de 08.03.2022 considerou, nomeadamente, após citar o art. 4º, nº 1, al. e) do ETAF [fazendo referência a que o contrato em causa nos autos, não assume natureza de contrato administrativo, nem se integra no âmbito da contratação pública, por o nº 2, al. c) do art. 4º do CCP, o excluir do seu âmbito, referindo em abono da sua tese o disposto nos arts. 220º do CPA e 280º do CCP], que: “(…), tendo presente o bloco de legalidade acabado de expor, conclui-se que um contrato celebrado por particulares (na qualidade de doadores) com uma autarquia local (na qualidade de donatária) tendo por objecto a cedência de uma faixa de terreno da propriedade daqueles, ainda que seja para a construção de uma rotunda, com determinadas contraprestações por banda da autarquia local ao nível da construção de infra-estruturas urbanísticas, não assume a natureza de um contrato administrativo, porquanto não preenche qualquer dos referidos critérios, sendo um puro contrato de direito privado.
Assim, concluiu pela incompetência em razão da matéria dos tribunais administrativos, recaindo nos tribunais judiciais a competência para o julgamento da causa, conforme delineada pelos Autores, absolvendo o R. da instância (arts. 14º, nº 2 do CPTA, e arts. 96º, al. a), 99º e 297º, nº 1, al. a), todos do CPC).

O Tribunal da Comarca de Viseu –Juízo Central Cível – Juiz 1 proferiu sentença em 10.01.2019 na qual se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, por entender que, “(…) para caracterizar uma relação contratual em que intervenha como parte uma pessoa coletiva de direito público, como sucede com o Município R., é necessário, para além dessa natureza subjetiva, que a finalidade do contrato esteja patenteado o objetivo de prossecução do interesse público (cfr. a título exemplificativo, os acs. do Tribunal de Conflitos de 20.1.2010, no proc. 5/09, e de 7.2.2016, no proc. 023/16, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos, conforme decorre do acordo subscrito pelas partes, a cedência do terreno por parte dos AA. destinou-se claramente a servir o interesse público, a saber, a “construção de uma rotunda no âmbito da reabilitação da EM 595 no cruzamento de ….. com ……”, e teve como contrapartida a assunção pelo Município da obrigação de realizar determinadas obras de urbanização. Tal contrato é qualificado como contrato administrativo igualmente por aplicação do Código dos Contratos Públicos, não se encontrando excluído nos arts. 4º e 5-A de tal Código, envolvendo inclusive a transferência de propriedade de uma parcela de terreno para o setor público administrativo.
Assim, o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu declarou-se materialmente incompetente para conhecer do presente litígio, julgando competente a jurisdição administrativa e absolvendo os Réus da instância.

Por despacho de 05.05.2002, o TAF de Viseu ordenou que os autos fossem remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos.
Foi dado cumprimento ao disposto no art. 11º, nº 3 daquele diploma.
A Exma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material para conhecer da presente acção à jurisdição administrativa.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
Os Autores intentaram a acção supra indicada pedindo que seja declarado o incumprimento definitivo e gravemente culposo do acordo pelo Réu [de cedência de terreno de propriedade dos AA. celebrado entre estes e o R. em 13.06.2007], com a consequente resolução do mesmo e consequentemente, ser o R. condenado a restituir o terreno cedido pelos AA., em toda a sua largura e extensão, livre de pessoas e bens; ou, caso não seja possível essa restituição, subsidiariamente, pedem a condenação do R. no pagamento aos AA. do valor de tal terreno, na execução de obras de nivelamento, drenagem e aterro dos terrenos, ou, caso tal não seja possível, no custo desses trabalhos e no pagamento de diversos valores (discriminados nas alíneas C, D, E, F e G dos pedidos).

Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [arts. 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo». (cfr. igualmente o Acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 04.02.2016, Proc. nº 046/15, disponíveis em www.dgsi.pt).
Da petição inicial dos AA. resulta clara a alegação de que a parcela de terreno em causa nos autos passou a integrar o domínio público municipal, cedida por força do acordo celebrado entre os ditos AA. e o R. Município [cfr. doc. 2, junto com a p.i. a fls. 22 dos autos].
É consabida a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos segundo a qual a acção em que se peça a declaração de propriedade sobre uma coisa e a condenação do réu, que a detenha, a restitui-la, consubstancia uma reivindicação, e que esse tipo de acções reais não se incluem em qualquer das hipóteses do art. 4º, nºs 1 e 2 do ETAF, devendo ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual (cfr., v.g., os acs. de 13.12.2010, Proc. nº 043/18, de 24.05.2017, Proc. nº 01/17, de 26.01.2017, Proc. nº 052/14 e de 04.02.2016, Proc. nº 04.02.2016, todos consultáveis no sítio supra indicado).
No entanto, no caso presente não estamos perante uma reivindicação de propriedade, já que a alegação dos AA. é a de que entre estes e o R. foi celebrado um acordo pelo qual cederam àquele a parcela de terreno em causa nos autos, mediante determinadas contrapartidas. Acordo de cedência esse destinado a servir o interesse público prosseguido pelo Município de “construção de uma rotunda no âmbito da reabilitação da EM 595 no cruzamento de …… com ……”. Evitando assim “o R. o dispendioso processo de expropriação e como contrapartida obrigou-se a realizar determinadas obras de urbanização”, tendo aquando dos preliminares que antecederam o acordo e na celebração deste proposto aos AA., em troca da cedência do terreno, a garantia de um loteamento no local, sem quaisquer custos ou encargos para estes.
Acordo este, que pelas suas características não pode ser considerado uma doação (cfr. art. 940º e seguintes do Código Civil).
Tal acordo não tem, pois, uma natureza jurídico-privada mas, antes, consubstancia uma relação jurídica administrativa.
Sobre a noção de “relação jurídica administrativa escreveu J.C. Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, 18ª ed. Coimbra, 2020, pág. 53, o seguinte:
na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica. (…) lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Ora, no caso concreto o R. Município actuou no exercício de um poder público e com vista à realização de um interesse público - a de integrar no domínio autárquico a parcela de terreno constante do contrato celebrado, sem necessidade de proceder a uma expropriação - (como os próprios AA. alegam), comprometendo-se em contrapartida a “realizar os arruamentos conforme planta em anexo” e “a realizar as obras de urbanização conforme as medições e orçamento em anexo” [cfr. o referido doc. nº 2 – Acta da Reunião Ordinária de 27 de Junho de 2007 da Câmara Municipal de Mangualde].
Tem plena aplicação ao caso a jurisprudência no acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 23.01.2020, Proc. nº 32/20: “(…) Sendo certo que foi celebrado um contrato de compra e venda entre os AA. e o R. MPorto, a verdade é que ele funcionou como sucedâneo da expropriação amigável, impossibilitada a mesma, como acima se disse, pela indisponibilidade manifestada pelos AA. em vender a sua parcela de terreno. Antes da celebração do contrato em questão, o MPorto conseguiu que a parcela de terreno dos AA. fosse declarada como de interesse público para efeitos de expropriação. Com a declaração de utilidade pública, o direito de propriedade dos interessados é sacrificado e os bens por ela atingidos ficam de imediato adstritos ao fim específico da expropriação. A substituição da expropriação amigável pela compra e venda dos bens expropriados, in casu, da parcela de terreno dos AA., não transmuta a relação jurídico-administrativa decorrente da expropriação numa relação jurídico-privada.
O contrato de compra e venda apenas serve como meio mais expedito para concluir rapidamente o procedimento de expropriação, pelo que, mantendo-se a natureza expropriativa do contrato, o pedido de resolução do mesmo contrato por pretenso incumprimento do fim expropriativo move-se no âmbito da relação jurídico-administrativa de expropriação, transportando a resolução dos litígios dela emergentes para a jurisdição administrativa. Efectivamente, cumpre sublinhar que o pedido de resolução do contrato de compra e venda visa a reversão da parcela expropriada (artigo 5º do CE). A reversão traduz-se no direito conferido ao expropriado de recuperar os bens expropriados quando os mesmos se mostrarem desnecessários para a realização do interesse público que justificou a expropriação. E esse fenómeno de reversão baseia-se em fundamentos de direito público e a sua competência é deferida à entidade que houver declarado a utilidade pública da expropriação ou que haja sucedido na respetiva competência (artigo 74º/1 do CE).” (cfr. ainda o ac. deste Tribunal de 09.03.2022, Proc. nº 08389/19.1T8STB.E1.S1).
No caso dos autos o contrato de cedência da parcela de terreno celebrado funcionou igualmente como uma alternativa a um processo de expropriação visando um fim de interesse público prosseguido pelo R. Município, sendo que através de tal contrato o dito prédio passou a pertencer ao domínio público municipal, pretendendo agora os AA., com a resolução do contrato, por alegado incumprimento do R., ver “revertida” a situação do referido bem (como pedido principal).
De acordo com o art. 4º, nº 1, alínea o), do ETAF, está incluída no âmbito da jurisdição administrativa “Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.”.
Deste modo, tem de concluir-se que nas circunstâncias do caso, é a jurisdição administrativa e fiscal a competente para conhecer da acção.

Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o TAF de Viseu.
Sem custas.

Lisboa, 14 de Julho de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.