Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:012788/18.8T8PRT.S1-CP
Data do Acordão:07/13/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Sumário:1 - Compete aos tribunal judiciais a apreciação de uma acção na qual uma entidade particular pede o pagamento de serviços prestados no âmbito de um contrato celebrado com uma concessionária de serviço público de distribuição regional de gás natural que não é, nem uma pessoa colectiva pública, nem uma entidade adjudicante, na acepção do artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos.
2 - Para o efeito, é irrelevante que o contrato tenha sido precedido de um procedimento de ajuste directo, não legalmente imposto.
Nº Convencional:JSTA000P29802
Nº do Documento:SAC20220713012788
Recorrente:L....., LDA.
Recorrido 1:R......, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Consulta prejudicial

Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 4 de Junho de 2018, L..., Unipessoal, Lda., instaurou no Juízo Central Cível do Tribunal da Comarca do Porto uma ação declarativa de condenação, com processo comum, contra R…, S.A., formulando o seguinte pedido:
deve a presente ação ser julgada provada e procedente, e em consequência:
a) Declarar-se que a Ré deve à A. a quantia de 59.870,00 € a título de serviços por esta prestados e não pagos;
b) Condenar-se a Ré a pagar à A. a quantia de 59.870,00 € a título de serviços prestados e não pagos;
c) Declarar-se nula, de nenhum efeito e excluída do contrato de prestação de serviços celebrado entre A. e Ré em 30/01/2014 a respetiva cláusula 11.2.”.
Para o efeito, e em síntese, alegou que, no âmbito da sua actividade de construção de obras de engenharia e instalação de redes de gás e aquecimento, celebrou com a ré, em 30 de Janeiro de 2014, com processo de ajuste direto, um contrato de "prestação de serviços de criação de condições técnicas para novos pontos de abastecimento do mercado existente".
Alegou ainda que a ré é detentora da concessão de distribuição de gás natural em vários concelhos e que o contrato celebrado entres as partes, a que a ré pôs termo em Maio de 2015, é um contrato de adesão.
Concluiu, além do mais, que tem direito ao pagamento de 59.870.00€, pelos serviços prestados no âmbito do referido contrato.
A ré contestou, afirmando, designadamente, ter celebrado o contrato na qualidade de concessionária do serviço público de distribuição de gás natural na região do litoral norte de Portugal, de acordo com o contrato de concessão celebrado com o Estado Português em 11 de Abril de 2008, e após um processo pré-contratual de ajuste directo.
Encerrada a audiência final, por despacho de 29 de Dezembro de 2021 do Juízo Central Cível do Porto – J..., as partes foram convidadas a, querendo, “se pronunciarem sobre o conhecimento pelo tribunal da exceção de incompetência material”, uma vez que “a entidade contratante (a ré) sujeitou a celebração do contrato a um concurso prévio. E, assim sendo, impõe-se assim concluir que as questões de interpretação, validade e execução do alegado contrato, aqui se incluindo a realização coactiva da prestação imputada à ré, se integram na al. e) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, sendo a jurisdição administrativa a competente para dirimir o litígio”.
Pela qualidade de entidade adjudicante de uma das partes e pela submissão a regras de contratação pública ­­– o contrato foi objecto de um procedimento prévio regulado por normas de direito público –, portanto, a apreciação do pedido da autora competiria à jurisdição administrativa.
Ambas as partes se pronunciaram no sentido da competência dos tribunais comuns.
A autora sustentou, em suma, que, não sendo a ré, nem uma pessoa coletiva de direito público, nem uma entidade adjudicante, não se encontra preenchida a previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
E, por requerimento de 17 de Janeiro de 2022, requereu a apreciação da questão junto do Tribunal dos Conflitos, como consulta prejudicial, na eventualidade de subsistirem dúvidas quanto à competência material do tribunal para o conhecimento da acção.
A ré, em resumo, sustentou não estar sujeita ao âmbito subjectivo de aplicação do Código dos Contratos Públicos (CCP) e que, em tudo o que tenha a ver com a celebração e cumprimento do contrato que está em causa, terá aplicação a lei civil.

2. O Juízo Central Cível do Porto – J..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, dirigiu ao Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça uma consulta prejudicial ao Tribunal dos Conflitos sobre a questão da jurisdição competente.
Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça admitiu a consulta, de acordo com o n.º 2 do artigo 16.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), determinando que se seguissem os termos previstos na mesma Lei.

Notificada, nos termos do n.º 3 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, a autora, reiterando que está em causa uma acção relativa a um contrato celebrado entre si e a ré e que esta não é, nem uma pessoa coletiva de direito público, nem uma “entidade adjudicante”, reafirmou a competência dos tribunais comuns para conhecer da lide.
Notificada para os mesmos efeitos, a ré, reiterando os argumentos anteriormente expendidos, pronunciou-se pela inexistência de qualquer fundamento que justifique o desaforamento das instâncias cíveis para as administrativas e defendeu a atribuição da competência aos tribunais comuns.
De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente acção à jurisdição comum.
Citando a al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Ministério Público observou que “No caso dos autos, não nos parece claro que o contrato que é objecto dos autos tenha sido celebrado por uma entidade adjudicante, nos termos da al. a) do n.º 2 do artigo 2.º do Código da Contratação Pública.
Na verdade, a ré não é maioritariamente financiada por qualquer organismo de direito público.
Por isso, apesar de tal contrato ter sido submetido a um procedimento prévio regulado no artigo 6.º do mesmo Código da Contratação Pública, se conclui que as questões relativas à apreciação da validade, interpretação e execução de tal contrato devem ser apreciadas pelos tribunais da jurisdição cível.
Neste sentido, cfr. Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 041/21, de 23/3/2022 – Relatora Teresa de Sousa
Termos em que, somos de parecer que a competência para apreciar a presente acção deverá ser atribuída à jurisdição comum”.

Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.

3. Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).
«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».
A este domínio material existem todavia casos de alargamento da jurisdição administrativa, nomeadamente na área dos contratos. “Esse alargamento é evidente na alínea e)” do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “a qual, tal como confere aos tribunais administrativos competência para julgar os litígios que tenham por objecto a validade dos actos pré-contratuais inseridos em procedimentos administrativos, também no que se refere às questões de interpretação, validade e execução de contratos, não abrange apenas os contratos administrativos, mas também, quaisquer contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes. Ora, como se sabe, a legislação referida, em especial o Código dos Contratos Públicos (…), ao regular os procedimentos pré-contratuais, também se aplica a contratos de direito privado celebrados pela administração, bem como alguns contratos celebrados por entidades privadas que sejam entidades adjudicantes. Trata-se de uma opção tomada na revisão de 2015 (…)”(págs. 109 e 110).

4. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.
Cumpre ainda recordar que, quer nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a propósito dos Tribunais Judiciais, quer segundo consta do n.º 1 do artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência fixa-se no momento da propositura da acção, ou, dito por outras palavras: a competência afere-se pela lei vigente na data em que a acção é proposta.
Segundo a redacção actual do n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, resultante da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e entrada em vigor a 11 de Novembro de 2019 (artigo 6.º da Lei n. 114/2019), “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.
Esta redacção é posterior à propositura da presente acção; nesse momento, o n.º 1 do artigo 1.º tinha o teor resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.
O n.º 1 do artigo 1.º não continha, portanto, a menção a “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”, como sucede actualmente; todavia, certo é que a al. o) do n.º 1 do artigo 4.º, para o qual remetia (e continua a remeter) o n.º 1 do artigo 1.º, previa (e prevê) expressamente que competia aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios cujo objecto fossem questões relativas a “o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores” (cláusula residual de competência).
Assim, quer face à versão actual, quer relativamente à que vigorava quando a presente acção foi proposta, ressalvada a existência de outras previsões legais, a competência da Jurisdição Administrativos e Fiscal encontra-se delimitada pelo artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

5. Nos termos da al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na redação decorrente do Decreto-Lei n.º 214-G/2015 (aliás, não alterada pela Lei n.º 114/2019), “1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
No despacho de 29 de Dezembro de 2021, do Juiz ... do Juízo Central Cível do Porto, sustentou-se que a competência dos Tribunais Administrativos para a decisão da causa decorria da circunstância de o contrato ter sido celebrado por uma entidade adjudicante, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos, e submetido a um procedimento prévio regulado por normas de direito público – concurso público, previsto na alínea b), do n.º 1, do art. 16.º do Código dos Contratos Públicos –, e que, portanto, estava preenchida a previsão da referida al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Com efeito, na presente acção, a autora pede o pagamento de serviços que alegou ter executado nos termos de um contrato de "prestação de serviços de criação de condições técnicas para novos pontos de abastecimento do mercado existente", celebrado com a ré, em 30 de Janeiro de 2014, com processo de ajuste direto, no âmbito da sua actividade de construção de obras de engenharia e instalação de redes de gás e aquecimento. Alegou ainda que a ré é detentora da concessão de distribuição de gás natural em vários concelhos, como se viu já.
Para que se possa entender que é à jurisdição administrativa que compete o respectivo julgamento, e considerando o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais na sua globalidade (em especial, a al. o) do seu n.º 1), seria na verdade necessário que se encontrassem preenchidas as condições exigidas cumulativamente pela al. e) do respectivo n.º 1. Não sendo a ré uma pessoa colectiva de direito público, cumpre averiguar se deve ser havida como uma “entidade adjudicante”, nos termos da legislação sobre contratação pública” – como se entendeu no referido despacho de 29 de Dezembro de 2021.

6. O Decreto-Lei 30/2006, de 15 de Fevereiro, estabelece os princípios gerais relativos à organização e ao funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN), bem como ao exercício das atividades de recepção, armazenamento, transporte, distribuição e comercialização de gás natural, e à organização dos mercados de gás natural, transpondo, parcialmente, para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2003/55/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, que estabelece regras comuns para o mercado interno de gás natural e que revoga a Directiva n.º 98/30/CE (EUR-Lex), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Junho.
O Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de Julho, desenvolve esses princípios gerais, regulamentando o regime jurídico aplicável ao exercício das actividades de transporte, armazenamento subterrâneo, recepção, armazenamento e regaseificação de gás natural liquefeito, à distribuição e organização dos mercados de gás natural, e completa a transposição da Diretiva n.º 2003/55/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho.
Segundo os n.ºs 1 e 2 do artigo 7.º deste Decreto-Lei 140/2006, “1 - Compete ao Conselho de Ministros, sob proposta do ministro responsável pela área da energia, aprovar, por resolução, a atribuição de cada uma das concessões referidas no artigo 5.º”, sendo que “2. As concessões são atribuídas mediante contratos de concessão, nos quais outorga o ministro responsável pela área da energia, em representação do Estado, na sequência da realização de concursos públicos, salvo se forem atribuídas a entidades dominadas, directa ou indirectamente, pelo Estado ou se os referidos concursos públicos ficarem desertos, casos em que podem ser atribuídas por ajuste directo.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 98/2008, de 23 de Junho, aprovou as minutas (publicadas em anexo) dos contratos de concessão de serviço público de distribuição regional de gás natural a celebrar entre o Estado Português e as sociedades BEIRAGÁS – Companhia de Gás das Beiras, S.A., LISBOAGÁS GDL – Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A., LUSITANIAGÁS – Companhia de Gás do Centro, S.A., PORTGÁS – Sociedade de Produção e Distribuição de Gás, S.A., SETGÁS – Sociedade de Produção e Distribuição de Gás S.A., e TAGUSGÁS – Empresa de Gás do Vale do Tejo, S.A..
Decorre da Minuta do contrato de concessão da actividade de distribuição de gás natural entre o Estado Português e a P…, S. A., anexa à Resolução 98/2008, que esta é concessionária da exploração, em regime de serviço público, da rede de distribuição regional de gás natural do Norte, bem como da construção e instalação dos inerentes equipamentos.
Resulta da cópia da certidão permanente junta a fls. 89 dos autos que a ré é uma sociedade anónima que se dedica à distribuição de gás natural, bem como à produção e distribuição de outros gases combustíveis canalizados e, ainda, a outras actividades relacionadas com o objecto principal, designadamente a produção e comercialização de equipamentos de queima, não se podendo, assim, concluir que não tenha carácter industrial ou comercial.
Por outro lado, conforme mencionado pela autora no requerimento de 17 de Janeiro de 2022 (cfr. docs.1 e 3), a ré não é detida por qualquer capital público. E, tal como referido pela ré (requerimento de 15 de Fevereiro de 2022), apesar de, enquanto concessionária de um serviço público essencial, satisfazer necessidades de interesse geral, a mesma ré não tem qualquer participação de capital público, não sofrendo qualquer influência dominante por parte das entidades adjudicantes previstas no art. 2.º do Código dos Contratos Públicos.

7. Segundo o Código dos Contratos Públicos (CCP), cujo artigo 1.º, após afirmar no n.º 1, que “estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo”, dispõe (n.º 2) que “O regime da contratação pública estabelecido na parte ii é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código e não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação.”, são entidades adjudicantes, no contexto da contratação pública em geral, aquelas que vêm indicadas nos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 2.º, a) e b) e, quanto aos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais, no artigo 7.º Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa cit., pág. 109, nota (198), “Essas ‘entidades adjudicantes’ são, além das pessoas colectivas públicas, os ‘organismos públicos’ – entidades criadas especificamente para satisfazerem necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, desde que financiadas (maioritariamente e regularmente) por pessoas colectivas públicas ou sujeitas ao seu controlo ou à sua influência dominante (art.º 2.º do CCP), bem como, no âmbito dos sectores especiais (água, energia, transportes e serviços postais), quaisquer entidades, incluindo as empresariais, que exerçam essas actividades, quando estejam sujeitas a controlo ou influência dominante de entidades adjudicantes artigo 7.º). Claro que se o regime aplicável for de direito privado, é esse o regime que será aplicado pelos tribunais administrativos.”
Da análise destes preceitos decorre que não se pode entender que estejam preenchidos os respectivos requisitos, ou seja, que, neste contexto, a ré não se enquadra no elenco das “entidades adjudicantes”. Não sendo uma pessoa colectiva de direito público, tanto basta para se excluir a verificação da al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
De qualquer forma, exclui-se também a relevância, sempre no contexto da determinação da jurisdição competente, de ter sido seguido o procedimento de “ajuste directo”, procedimento previsto no Código dos Contratos Públicos. Segue-se, para o efeito, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 041/21, cuja doutrina é transponível para o caso concreto, apensar de respeitar à redacção anterior da al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
No caso suscita-se a questão de saber se pelo facto de as partes terem recorrido, de forma voluntária, a um procedimento pré-contratual de direito público, que nenhuma lei específica lhes impunha, se encontram reunidos os pressupostos previstos no art. 4º, nº 1, al. e) do ETAF (na redacção anterior à dada pelo DL nº 214-G/2015, aqui aplicável), para a competência material ser atribuída à jurisdição administrativa e fiscal (…)Entendemos ser indubitável a competência dos tribunais judiciais para a apreciação dos pedidos formulados pela Executada. Com efeito, não vemos motivo para não seguir a jurisprudência firmada por este Tribunal dos Conflitos (…). Como se disse no ac. deste Tribunal de 04.02.2016, Proc. nº 035/15, em matéria em tudo semelhante [por estar em causa acção por incumprimento de contrato de empreitada celebrada entre privados, tendo essa celebração sido precedida de procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, sem que haja lei específica que o imponha]: «(…), não é o facto da empreitada em causa ser um contrato de direito civil celebrado por sujeitos privados que determina a competência dos Tribunais comuns para julgar a acção mas a circunstância da celebração daquele contrato não ter de ser, por força de lei específica, precedida de um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público (art.º 4.º/1/e) do CPTA). Com efeito, como vem sendo decidido por este Tribunal dos Conflitos, o que resulta daquela norma é que compete “à jurisdição administrativa dirimir todos os litígios relativos a todos os contratos que, independentemente da sua natureza e da qualidade dos contraentes, foram, por imposição legal (Sublinhado nosso) precedidos de um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público. Na verdade: (i) a letra não distingue entre contratos públicos e contratos privados, nem entre contraentes públicos e contraentes privados; (ii) inclui na previsão da norma não só as questões relativas à formação do contrato, mas também as da interpretação, validade e execução dos contratos; (iii) e quanto a estas, não as restringe às que estejam associadas à adjudicação ou, em geral, ao procedimento pré-contratual. (…). Em suma; o que a citada norma do ETAF determina é que a competência da jurisdição administrativa para o julgamento das acções como aquela que está em causa não é a da natureza do contrato nem a qualidade dos seus sujeitos mas o facto do mesmo ter precedido de um procedimento regido por normas de direito público por imposição legal.» No caso tratado naquele Conflito nº 035/15, o procedimento pré-contratual que precedera a celebração do contrato ali em causa não era exigido por qualquer norma ou diploma legais, pelo que se concluiu que a competência para julgar a acção cabia aos Tribunais comuns. Ora, essa é igualmente a situação que se verifica nos presentes autos.”
No caso dos autos, também não resulta que o procedimento de ajuste direto, que precedeu a celebração do contrato, tenha decorrido de imposição legal. “Tal como antes” escreve Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 4.º ed., Coimbra, 2020, pág. 173, “a al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes dos contratos que a lei submeta a regras de contratação pública”.
Aliás, compulsados os documentos juntos a fls. 791 a 796 (procedimento por ajuste direito n.º PC 2013-56 e carta convite), verifica-se que consta da cláusula 1.4 do convite: “Foi escolhido o procedimento por Ajuste Directo, em face do carácter transitório e da urgência subjacentes à adjudicação dos trabalhos colocados a concurso”.

8. Entende-se, portanto, que a competência para apreciar a presente acção cabe aos Tribunais Judiciais; concretamente, ao Juízo Central Cível do Tribunal da Comarca do Porto (artigos 81.º, n.º 1 e 2 e 117.º, n.º 1, a) da Lei n.º 62/2013 e 81.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

9. Assim, nos termos do disposto no artigo 17° da Lei n° 91/2019, de 4 de Setembro, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe aos Tribunais Judiciais conhecer da presente acção, no caso, ao Juízo Central Cível do Tribunal da Comarca do Porto

Sem custas (n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 13 de Julho de 2022. - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Henrique Luís de Brito Araújo.