Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:039/19
Data do Acordão:01/30/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DO ROSÁRIO MORGADO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P25510
Nº do Documento:SAC20200130039
Data de Entrada:07/12/2019
Recorrente:A............, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA, JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA - JUIZ 15 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 39/19 – (Recurso nº 18468/16)

Acordam no Tribunal de Conflitos
- I -

1. Em 18.7.2016, A………. instaurou a ação declarativa com processo comum contra o Banco B……….., SA, Banco de Portugal, C………, SA, Fundo de Resolução, CMVM - Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e D………, pedindo a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia de EUR 603.342,15, acrescida de EUR 96.905,13, a título de juros já vencidos, bem como dos juros vincendos, desde a citação até integral pagamento.

Subsidiariamente, pediu:

- A declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira, por inobservância de forma, nos termos do art. 321°, do CVM;

- A condenação solidária dos RR a restituir ao A. a quantia de EUR 603.342,15, acrescida de juros vencidos e vincendos, desde a citação até integral pagamento.

Em qualquer caso, pediu a condenação dos RR. a pagar-lhe, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia que se vier a liquidar posteriormente.

Para tanto, alegou, em síntese, a violação dos deveres que incumbem sobre o intermediário financeiro e a funcionária do Banco B………, o incumprimento dos deveres de supervisão que impendem sobre o 2º e 5º réus.

2. A ação foi contestada, pedindo o B………, SA que, quanto a si, fosse declarada extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide; por sua vez, o Banco de Portugal, o Fundo de Resolução e a CMVM excecionaram a incompetência em razão da matéria do tribunal comum para conhecer da causa.

3. Foi, então, proferida decisão pelo Juízo Central Cível de Lisboa - Juiz 15 que declarou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide relativamente ao B………, SA; e, julgando verificada a exceção de dilatória da incompetência absoluta, declarou aquele Tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo, consequentemente, os RR. da instância (cf. fls. 499 e ss.).

4. Inconformado com esta decisão, o A. recorreu, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido acórdão a confirmar a decisão recorrida (cf. fls. 662 e ss).

5. De novo irresignado, o A. interpôs recurso de revista para o STJ, o qual foi admitido apenas quanto segmento que julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide relativamente ao B………., SA, não admitindo a revista quanto ao segmento decisório que manteve a decisão proferida pela Relação quanto à incompetência em razão da matéria dos tribunais comuns, atento o disposto no art. 101°, nº2, do CPC.

6. Por decisão de fls. 1431 a 1433 dos autos, foi ordenada a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos.

7. O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido de que a jurisdição administrativa é a competente para conhecer dos pedidos formulados contra o Banco de Portugal e a CMVM, sendo, por seu turno, a jurisdição comum a competente para conhecer da causa quanto aos RR. C………., SA, D……….. e Fundo de Resolução.

8. Cumpre, assim, apreciar e decidir a questão da competência em razão da matéria, sendo os factos a ter em conta os que constam do antecedente relatório.
- II -

9. Da competência em razão da matéria

Como é pacífico, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor (cf., entre muitos, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8.11.2018, conflito nº 20/18, disponível em www.dgsi.pt.).

Sendo a competência dos tribunais judiciais residual, no sentido de que apenas lhes compete julgar as causas não atribuídas a outra ordem jurisdicional (cf. art. 211º, nº1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), art. 40º, nº1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e o art. 64º do CPC) há que determinar, em primeiro lugar, os casos em que a competência pertence aos tribunais administrativos, tendo presente que, de acordo com o disposto no art.º 38.°, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) a competência se fixa no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei (nº1); são igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa (nº2).

Para este efeito, é decisivo o critério constitucional plasmado no art. 212°, nº3 da CRP segundo o qual "compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações administrativas e fiscais".

Por sua vez, a nível infraconstitucional, atenta a data da propositura da ação (18.7.2016), o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal está fixado no art. 4° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº13/2002, de 19 de Fevereiro, na redação conferida pelo DL n° 241-G/2015, de 2 de outubro, em cujo art. 1º, nº1 se dispõe que:

"Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4º deste Estatuto.".


Este art. 1º, do ETAF remete-nos para o seu art. 4º, nº 1, em cujas alíneas se procede à delimitação do âmbito da jurisdição administrativa atribuindo aos respetivos tribunais a competência para a apreciação de litígios que tenham por objeto as questões ali enunciadas.

Como refere Jorge Pação, Comentários à Revisão do ETAF e do CPTA, AAFDL, 2ª edição, 2016, págs. 186-188, "na sua versão de 2002, o artigo 4.º do ETAF encontrava-se estruturado enquanto enunciação exemplificativa dos litígios cuja apreciação competia aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal. Aliás, tal enumeração encontrava-se fielmente suportada no advérbio "nomeadamente", contendo o n.º 1 do artigo 4.º do ETAF o elenco não exaustivo das matérias sujeitas à jurisdição dos tribunais administrativos.

(…)

Com a alteração promovida em 2015, o artigo 4.º n.º 1 do EFAF encontra-se agora estruturado como se de uma enumeração taxativa se tratasse, ainda que esta natureza de elenco fechado seja meramente aparente, por força da "cláusula aberta" constante da alínea o), determinando a extensão da jurisdição às "relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores".

Vejamos, então.
No caso dos autos, como sinaliza o Exmo. Magistrado do Ministério Público no seu douto parecer, "a causa de pedir é complexa. No que concerne ao Banco B………., SA, ao C………., SA e a D………., a factualidade que integra a causa de pedir reflete comportamentos que têm a ver com contratos de depósito bancário e de intermediação financeira que claramente situam os pedidos no âmbito da responsabilidade contratual e no domínio das relações jurídicas de direito privado. Porém, o mesmo não ocorre no que tange ao Banco de Portugal, à CMVM e ao Fundo de Resolução. (…). No caso do banco de Portugal, a factualidade que integra a causa de pedir tem a ver com o incumprimento dos deveres de supervisão, com a aplicação ao B………., SA da medida de resolução e atos antecedentes e subsequentes a essa medida (comunicados, declarações públicas). No que respeita à CMVM, o acento tónico, fundamento da demanda, é colocado no incumprimento dos seus deveres de supervisão (arts. 174 e 175, da p.i.). No que tange ao Fundo de Resolução, o fundamento da demanda parece residir (...) apenas no facto de ser essa entidade o acionista único do C………….".

Ora bem.

Sobre a questão central colocada nestes autos, já este Tribunal dos Conflitos se pronunciou, em situações que, pela similitude com a do caso em apreço, importa ter em consideração (cf. art. 8º, nº3, do CC).

É o caso do acórdão de 14.2.2019, proferido no Conflito n° 46/18, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler:

"Considerando o pedido do A, em si mesmo, e os respectivos fundamentos, a sua pretensão em obter a condenação de todos os RR a pagar-lhe, solidariamente, uma indemnização estrutura-se, por um lado, quanto às 1ª e 2ª RR (Está a referir-se ao Banco B............ SA e a uma pessoa singular que identifica.), na obrigação decorrente da violação de deveres contratuais e da prática de factos tidos por ilícitos, enquanto em relação à 3ª R (C……….. SA), apenas na alegada transferência para a mesma da responsabilidade (originária) do B…….. SA e, por sua vez, o fundamento da responsabilidade do Fundo de Resolução (4º R) pela satisfação de tal obrigação repousaria, simplesmente, no facto de, por força da supra aludida medida de resolução adotada pelo Banco de Portugal, ser ele o único detentor do capital do C………….

Por outro lado, o alargamento dessa suposta responsabilidade solidária ao Banco de Portugal e à CMVM (5º e 6ª RR) já se estribaria, muito diferentemente, no incumprimento dos deveres de supervisão bancária, na prestação de informações erróneas ao mercado e nos atos cometidos no contexto da resolução do B....., nomeadamente, nas deliberações adotadas, logo em 3-08-2014 (medida de resolução) e subsequentemente.

Portanto, no caso em apreço, da análise do pedido formulado na ação e das respectivas causas de pedir resulta que o A aciona a responsabilidade civil contratual e extracontratual das 1ª a 3ª RR, pelo que o conhecimento do pedido contra estas dirigido, incidindo sobre relações inequivocamente privatísticas, compete à jurisdição comum, por não dever nem poder ser deduzido na jurisdição administrativa. Conclusão que se estendeu à 3ª R (C………. SA) porque o A, embora sem a envolver na prática de qualquer dos factos ilícitos em que fundamenta a constituição da obrigação de indemnizar das duas primeiras RR, estrutura a respectiva responsabilidade na sua alegada qualidade de sucessora nos direitos e obrigações da 1ª R (B……… SA).

Quanto aos demais RR, Banco de Portugal, Comissão do Mercado de Valores Mobiliários e Fundo de Resolução, são todos pessoas coletivas de direito público, como resulta do art. 1º da Lei Orgânica do primeiro (Lei 5/98, de 31/1), do art.1º dos Estatutos da segunda (DL 5/2015, de 8/1) e, quanto ao último, do art. 153°-B do RGICSF (DL 298/92, de 31/12, com a atualização da Lei 23-A/2015, de 26/03).

Ora, relativamente às entidades públicas BdP e CMVM, dada a configuração da ação feita pelo A, suscita-se, claramente, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público, radicando os danos que, alegadamente, o mesmo sofreu e que fundam os direitos que pretende exercer - consistentes no ressarcimento de tais danos - em atos cometidos no exercício de funções públicas ou na prossecução de um interesse público, uma vez que, sem a invocação de qualquer relação contratual com eles estabelecida, se fundamentam na falta de cumprimento dos deveres - essencialmente de supervisão - que sobre eles impendiam, tendo em conta as funções determinadas pela lei.

Especificamente quanto ao Fundo de Resolução, que vem demandado, apenas, com base na titularidade do capital do «C………….» - e, igualmente, sem que lhe seja imputado qualquer concreto facto ilícito -, não só essa titularidade tem origem na aludida medida de resolução bancária decretada pelo Banco de Portugal, como a sua responsabilidade apenas se poderia estribar na sua qualidade de instrumento (dependente) da entidade pública junto da qual funciona para lhe prestar apoio financeiro à aplicação de medidas de resolução pela mesma adotadas (cf. art. 153º-C do citado RGICSF), ou seja, no caso em apreço, para a execução das deliberações do Banco de Portugal concernentes à medida de resolução tomada em relação ao B……….. no exercício de funções públicas e na prossecução de um interesse público.

Todavia, no que concerne a este R, considerando o estritamente alegado quanto à fundamentação da sua demanda - ser ele o único detentor do capital do C………… - e o uniformemente decidido nos precedentes arestos deste Tribunal, deve concluir-se que também cabe aos tribunais judiciais a competência para conhecer a pretensão deduzida contra o mesmo.

É certo que, como supra foi relatado, o A formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. Contudo, não enformou os fundamentos dessa sua pretensão com qualquer espécie de intervenção das entidades públicas nos factos ilícitos imputados às 1ªs RR, pelo que não ressuma da PI o fundamento previsto no citado nº 2 do art. 4º do ETAF para deverem ser demandados conjuntamente todos os RR, porquanto não se vê em que medida aqueles entes poderiam estar ligados por vínculos jurídicos de solidariedade com as demais RR (particulares), designadamente por terem concorrido em conjunto com estas para a produção dos mesmos danos (Mário Aroso de Almeida [Em "Manual de Processo Administrativo", Almedina, 3ª ed., pp. 253-254] refere que aquela regra procurou obviar a dificuldades que se vinham suscitando «quanto à competência dos tribunais administrativos para conhecer de ações de responsabilidade civil quando se verifique o chamamento ao processo de sujeitos privados que se encontrem envolvidos com a Administração ou com outros particulares numa relação jurídica administrativa ou no âmbito de uma relação conexa com a relação principal que constitui objeto do litígio».).

Como uniformemente foi ponderado nos arestos deste Tribunal precedentemente referenciados, a solidariedade nas obrigações, tal como decorre do artigo 513º do CC, só existe quando resulta da lei ou da vontade das partes. Não basta, deste modo, pedir ao Tribunal que condene solidariamente, sendo necessário alegar os factos - para os poder vir a demonstrar - «de que deriva a obrigação de indemnizar e, em caso de pluralidade de responsáveis, que as obrigações tenham entre si uma relação de solidariedade, que, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária» [cit. acórdão de 22-03-2018 (p. 56/17)]. (…).”

Este entendimento, que igualmente sufragamos, insere-se, aliás, na linha da jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, como o evidenciam os acórdãos de 14.2.2019, Conflito n° 31/18 e de 23.5.2019, Conflito n° 39/18, todos disponíveis em www.dgsi.pt e, mais recentemente, os acs. proferidos em 31/10/2019, nos processos 3/19 e 14/19, ainda não publicados.

Impõe-se, assim, concluir que, no caso concreto, atendendo aos termos, da relação jurídica controvertida, tal como é modulada pelo A., a competência em razão da matéria para conhecer dos pedidos formulados contra os RR C……….., SA, D………. e Fundo de Resolução deve ser atribuída aos tribunais comuns. Porém, relativamente ao Banco de Portugal e à CMVM a competência deve ser deferida à jurisdição administrativa.
- III -

9. Nestes termos, concedendo parcial provimento ao recurso, acorda-se em:

- Revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu da instância os RR. C…………, SA, D…………….. e Fundo de Resolução, declarando-se competente a jurisdição comum para conhecer dos pedidos contra estes;

- Confirmar o acórdão recorrido na parte em que absolveu da instância os RR. Banco de Portugal e Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, declarando-se competente a jurisdição administrativa para conhecer dos pedidos deduzidos contra estes RR.

Sem custas.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2020. - Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado (relatora) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – José Luís Lopes da Mota – Jorge Artur Madeira dos Santos – Joaquim António Chambel Mourisco – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.