Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:043/18
Data do Acordão:12/13/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANA PAULA BOULAROT
Descritores:ACÇÃO REAL
REIVINDICAÇÃO DE PROPRIEDADE
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS COMUNS
Sumário: A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais, mesmo que cumulativamente se formule um pedido indemnizatório contra a entidade pública.
Nº Convencional:JSTA000P23957
Nº do Documento:SAC20181213043
Data de Entrada:10/16/2018
Recorrente:O MINISTÉRIO PÚBLICO JUNTO DO TAF DE VISEU, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE VISEU - LAMEGO - INST. LOCAL - SECÇÃO CÍVEL – J1 E O TAF DE VISEU
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: CONFLITO 43/18


ACORDAM, NO TRIBUNAL DOS CONFLITOS
I A………e B………, intentaram acção administrativa contra o MUNICÍPIO DE LAMEGO, pedindo: i) a condenação do Réu a reconhecer o direito de propriedade dos Autores sobre o prédio rústico composto de mato, com a área de 1749 m2, sito em ……, freguesia de Avões, concelho de Lamego; ii) a declaração da ilegalidade das construções efectuadas pela Ré no terreno dos Autores, bem como a ocupação do seu terreno; iii) a condenação da Ré a demolir as construções efectuadas no terreno dos Autores, bem como a desocupar e a restituir a estes o imóvel em causa, livre de pessoas e coisas; iv) a condenação da Ré a indemnizar os Autores de todos os prejuízos que lhes ocasionaram, nomeadamente com a desvalorização do terreno e com a impossibilidade de estes o utilizarem e dele usufruírem os respectivos rendimentos; v) e, subsidiariamente, a considerar-se impossível a restituição do trato de terreno em crise no estado em que se encontrava, ser a Ré condenada no pagamento duma indemnização aos Autores no valor de € 50.000,00.

Alegaram para o efeito e em síntese que são donos e legítimos proprietários do prédio, o qual foi ocupado parcialmente pelo Réu, que ali procedeu à construção de um depósito/reservatório de água sem a sua autorização, causando-lhes, além do mais, prejuízos vários.

Citado veio o Réu apresentar a sua contestação, defende que deve a presente ação ser julgada improcedente por não provada, e o demandado ser absolvido dos pedidos, ao invés deve a reconvenção ser julgada procedente, por provada, declarar-se por sentença que o Réu é dono e legítimo proprietário da parcela de terreno dos autos, condenando-se os Autores a reconhecê-lo, com todas as consequências legais.

Na réplica, os Autores responderam às excepções e ao pedido reconvencional pela sua improcedência, concluindo no mais como na Petição Inicial.

Foi realizada a audiência prévia e mediante despacho proferido foram as partes notificadas, nos termos do artigo 3°, nº 3 do CPCivil, para se pronunciarem sobre a eventual incompetência deste Tribunal em razão da matéria e juntar cópia da petição inicial e contestação que apresentaram no processo nº 383/14.5TBLMG, que correu termos no Tribunal de Lamego.

Os Autores pronunciaram-se no sentido da competência do tribunal administrativo em razão de matéria, porquanto entendem dever se perfilado o entendimento preconizado na sentença da Instância local Cível de Lamego, que se havia declarado incompetente em razão da matéria por sentença de 24 de Fevereiro de 2015, transitada em julgado, concluindo pela competência material dos tribunais administrativos nos termos do artigo 4º, alínea g) do ETAF.

Por sentença de 28 de Junho de 2018, constante de fls 144 a 148 v., o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, declarou-se incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado nos autos pelos Autores.

A Digníssima Procuradora da República junto daquele Tribunal, veio suscitar o conflito negativo de competência, pugnado pela atribuição da mesma à jurisdição comum, uma vez que se está perante uma acção de natureza real respeitante a propriedade privada.

II O único problema a resolver no âmbito deste recurso é o de saber a quem pertence a competência para o julgamento da presente acção, mostrando-se assente para a economia da decisão proferenda, o iter processual enunciado supra.

Quid inde?

A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais, cfr Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 88 e 89.

Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido abstracto ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída, ou, a determinação das causas que lhe cabem; em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa, cfr Manuel de Andrade, ibidem e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, 7.

Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação. Infere-se da lei a existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta; a incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral.», cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 128.

ln casu, a questão suscitada, prende-se com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.

Dispõe o normativo inserto no artigo 64° do CPCivil (em consonância com o artigo 211º da CRP «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.») «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.», acrescentando o artigo 65° «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.».

Neste conspectu, convém fazer apelo ao artigo 1º, nº 1 do ETAF no qual se predispõe que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.», estando elencadas no artigo 4º, nº 1 de tal diploma, as questões que, nomeadamente, são da competência de tais Tribunais.

Quererá isto dizer que a intervenção dos Tribunais Administrativos se justificará se houver que dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito de relações jurídicas administrativas, isto é, o que importará para declarar a competência daqueles Tribunais é saber se o conflito entre as partes nestes autos, é um conflito de interesses públicos e privados e se este mesmo conflito nasceu de uma relação jurídica administrativa.

Não obstante as questões enunciadas no supra mencionado normativo sejam meramente exemplificativas, das mesmas poder-se-á retirar a ratio para o enquadramento de outras que ali não vêm expressamente consignadas, mas cuja ambiência seja suficiente para «atrair» a competência dos Tribunais do foro administrativo o que significa que a mera presença da Administração, como contraente num contrato, não é suficiente para qualificar o mesmo de «administrativo», uma vez que, apesar deste se destinar à «(…) realização de um resultado ou interesse especificamente protegido no ordenamento jurídico, se e enquanto se trata de uma tarefa assumida por entes da própria colectividade, isto é de interesses que só têm protecção específica da lei quando são prosseguidos por entes públicos - ou por aqueles que actuam por “devolução” ou “concessão” pública (...)» procura-se trazer ainda «(…) para o direito administrativo todos os contratos que tragam marcas - importantes e juspublicisticamente protegidas (específica ou exclusivamente) - de administratividade (…)», cfr E. de Oliveira, CPAdministrativo Anotado, 2ª edição, 811.

O artigo 4° do ETAF discrimina, nos seus vários segmentos, qual o objecto dos litígios que compete apreciar pela jurisdição administrativa (e fiscal), a saber:
«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integradas na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem titulo que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas; l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence a jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligadas por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:

a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa; b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego publico;
c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.».

Daqui deflui, com mediana clareza, que constituindo o pedido dos autos na apreciação e subsequente declaração pelo Tribunal de um direito de propriedade dos Autores, sobre um determinado prédio que dizem ser seu, por via da ocupação parcial do mesmo pelo Réu, contra a vontade e sem autorização daqueles, estamos no domínio de uma acção de reivindicação de propriedade privada exercida por particulares, embora contra uma entidade pública - o Município de Lamego - que nele efectuou construções abusivamente, com a consequente cumulação de um pedido ressarcitório, enquadrando de pleno os dispositivos legais inserto no artigo 1311º e 483º do CCivil.

Se bem que podemos constatar que ambas as jurisdições puseram os termos da equação de forma correcta, na medida em que enunciaram que a medida da competência se afere pela análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do Tribunal, segundo a versão apresentada em juízo pelo Autor, isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos - pedido e causa de pedir - as conclusões a que chegaram, mostram-se dissonantes, sendo certo que a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, nesta mesma sede, tem entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais, cfr inter alia os Ac de 5 de Junho de 2014 (Relator Paulo Sá); 19 de Junho de 2014 (Relator Alberto Augusto Oliveira); 10 de Setembro de 2014 (Relator Melo Lima); 25 de Setembro de 2014 (Relator Fernandes do Vale); 30 de Outubro de 2014 (Relatora Fernanda Maçãs); 10 de Março de 2016 (da aqui Relatora); 7 de Julho de 2016 (Relatora Benedita Urbano), in www.dgsi. pt.

No caso sujeito, a acção, na configuração resultante dos pedidos e causa de pedir não cabe na competência dos tribunais administrativos, mas nos tribunais da jurisdição comum.

O que temos aqui em tela, é uma acção tipicamente real, já que os Autores invocam a propriedade do prédio rústico, com a consequente obrigação do Réu a restituí-lo livre de pessoas e bens, bem como a indemnizá-los pelos prejuízos causados com a ocupação indevida: estamos no âmbito da defesa de direitos reais, nos termos do artigo 1311º do CCivil, o que transcende manifestamente a competência dos tribunais administrativos, pois não estamos perante o exercício de quaisquer direitos e/ou deveres públicos, cfr Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2ª edição, 167; Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, 1999, 148; Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa - Lições, 3ª Edição, 2000, 79.

Esta asserção conduz-nos inexoravelmente à competência dos tribunais comuns para a apreciação da temática posta na presente acção.

III Destarte, julga-se materialmente competente para conhecer da acção o Tribunal da jurisdição comum.

Sem custas

Lisboa, 13 de Dezembro de 2018 – Ana Paula Lopes Martins Boularot (relatora) – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – António Leones Dantas – José Augusto de Araújo Veloso – Graça Maria de Figueiredo Amaral – José Francisco Fonseca da Paz.