Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02539/21.5T8PRD-S1
Data do Acordão:09/21/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - O Decreto-Lei n.º 214-G/2015, ao introduzir a actual al. i) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para apreciar litígios que tenham como objecto a "condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime".
II - Este preceito não abrange as acções cujo objecto central é o reconhecimento do direito de propriedade alegado pelo autor e a sua defesa contra actuações de entidades administrativas.
Nº Convencional:JSTA000P29961
Nº do Documento:SAC2022092102539
Recorrente:CLÍNICA MÉDICA-DENTÁRIA R......., LDA.
Recorrido 1:MUNICÍPIO DE PAREDES
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:


1. Em 28 de Novembro de 2021, a Clínica Médico-Dentária R..., Lda., instaurou no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes uma ação declarativa contra o Município de Paredes, pedindo:
a) Seja o Réu condenado a reconhecer a natureza de caminho privado do arruamento particular que dá acesso ao logradouro dos imóveis que o ladeiam, com as demais consequências legais.
b) Seja o Réu condenado a repor a floreira que retirou e que dividia em duas vias aquele caminho particular, repondo a configuração do caminho, tal como ela era antes da ilícita intervenção do Réu”.
Alegou que o referido caminho sempre foi particular, tendo sido construído por particulares para servir de logradouro a dois prédios contíguos: “aquele arruamento sempre esteve ao serviço dos condóminos de ambos os prédios que o ladeiam, ou de quem, não sendo condómino utilizou o logradouro para se dirigir aos imóveis em apreço (nem o arruamento tem outra serventia), denunciando um uso circunscrito e subordinado a interesses de carácter meramente privatístico”.
O réu contestou. Por entre o mais, suscitou a incompetência material do Tribunal, por se tratar de litígio do âmbito da jurisdição administrativa, nos termos do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, uma vez que tem por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime.
A autora replicou, sustentando a competência da jurisdição comum.
Recordou que, previamente à instauração da presente ação, demandou o réu no Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel (processo n.º 725/19.7BEPNF), deduzindo, além do mais, pedido coincidente com o que acima foi transcrito como pedido b), assente na mesma relação material, para cuja apreciação o Tribunal Central Administrativo do Norte, em recurso, considerou competentes os tribunais comuns.
Por despacho de 3 de Abril de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes – Juiz 1, julgando verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, declarou-se incompetente em razão da matéria para apreciar o mérito da ação e absolveu o réu da instância. Entendeu o Tribunal que, pretendendo a autora o reconhecimento da natureza de caminho privado do arruamento em causa e a condenação do réu a repor tal parcela no estado em que se encontrava anteriormente à obra que levou a cabo – contra a sua vontade, sem o seu conhecimento ou autorização e sem que previamente a tenha adquirido pela via do direito privado ou da expropriação –, a acção enquadra-se na alínea i) do n.º 1 do art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - condenação à remoção de situação constituída em via de facto, sem título que a legitime.
Notificada, a autora requereu a resolução do conflito negativo de jurisdição pelo Tribunal dos Conflitos.
Por despacho de 20 de Maio de 2022, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes – Juiz 1 determinou a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos.
Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determinou que se procedesse à apreciação do presente conflito negativo de jurisdição, nos termos previstos pela Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro.
Notificadas para se pronunciarem, querendo, as partes nada disseram.
Nos termos do n.º 4 do artigo 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de a competência para conhecer da presente acção caber aos Tribunais Judiciais, concretamente ao Juízo Local Cível de Paredes, do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, uma vez que se trata de uma acção real “em que a controvérsia se centra no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado”.
Citou, em abono da interpretação de que “a nova alínea i), do n.º 1, do artigo 4.º do ETAF" não abrange estas acções, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos com os n.ºs 048/18, 015/20 e 03802/20.8T8GMR-G1.S1.

2. Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.
Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).
«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».

3. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.
Cumpre ainda recordar que, quer nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a propósito dos Tribunais Judiciais, quer segundo consta do n.º 1 do artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência fixa-se no momento da propositura da acção, ou, dito por outras palavras: a competência afere-se pela lei vigente na data em que a acção é proposta; e que se entende que o pedido – o “efeito jurídico”, como o define o n.º 3 do artigo 581º do Código de Processo Civil – é o “efeito prático-jurídico” pretendido (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 219/14.7TVPRT-C.P1.S1).
À data da propositura da acção encontrava-se já em vigor a al. i) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, preceito no qual o Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes – Juiz 1, se fundou para excluir a competência dos tribunais judiciais e atribuí-la aos tribunais administrativos e cuja redação decorre do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, solução que não se acompanha.

4. No caso dos autos, a autora pretende que o réu seja condenado a reconhecer a natureza de caminho privado do arruamento particular que dá acesso ao logradouro dos imóveis que o ladeiam e a repor a floreira que retirou, e que dividia o caminho em duas vias, repondo a sua configuração, tal como era antes da ilícita intervenção do réu.
Para tanto alega, em suma, que o arruamento tem natureza particular, jamais tendo sido caminho público ou objeto de uso público que refletisse a sua afetação à utilidade pública.
Concretiza que o arruamento é um caminho particular, circunscrito a interesses meramente privatísticos, que apenas serve os prédios que o ladeiam, facultando o acesso a um logradouro que não permite a passagem para qualquer outra rua ou lugar.
Conclui que, ao intervencionar o arruamento privado em causa, retirando a floreira que o dividia em duas vias, sem precedência de qualquer processo de expropriação, o réu apropriou-se injustificadamente de propriedade privada.

5. Como se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 3 de Fevereiro de 2011 (proc. n.º 09/10, www.dgsi.pt ), anterior à actual redacção da al. i) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, “Não pode, com efeito, afirmar-se que o exercício da função administrativa se resume à prática de actos administrativos de autoridade. A actuação da Administração Pública compreende também actuações materiais e muitas delas não correspondem necessariamente à execução de um acto administrativo. Essas actuações não deixam de ter natureza administrativa pelo facto de se apresentarem sob a forma de simples operações materiais. O que é necessário é que estejam enquadradas nas funções legais da entidade respectiva. Só uma voie de fait – ou seja, uma actuação material totalmente à margem das atribuições e competências da ré – abriria caminho à competência dos tribunais comuns. A natureza meramente material de um acto gerador de danos não é, portanto, suficiente para excluir a competência dos tribunais administrativos (…)”.
No entanto, o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, como se recorda no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 23 de Maio de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 34/20, ao introduzir a actual al. i) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais «passou a atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios que tenham por objeto questões relativas a "condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime".
Com a referida previsão normativa procurou-se dar resposta às dúvidas que então se suscitavam quanto a saber se o julgamento das situações de “via de facto” competia aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais, ficando com a revisão de 2015, assegurado que "o pedido de restabelecimento de direitos ou interesses violados a que se refere a al. i), do nº 1, do art. 37º, do ETAF pode ser deduzido, não apenas para obter a remoção de efeitos produzidos por atos administrativos ilegais, mas também para reconstituir a situação jurídica que deveria existir, na sequência de operações materiais praticadas pela Administração sem título que o legitime.” (V. Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, pág. 259.)»
Ali como agora, e independentemente de saber se, no caso presente, poderia ou não entender-se tratar-se de uma via de facto, tendo em conta, em abstracto, as atribuições e competências do réu, «discute-se precisamente se a nova alínea i), do art. 4º, nº 1, do ETAF abrange, ou não, as ações reais, como a dos autos, em que a controvérsia se centra primacialmente no reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel reivindicado, face à atuação de uma entidade administrativa alegadamente ofensiva do direito invocado pelo autor.(…) Com efeito, a matéria alegada pelo autor visa, em primeira linha, alicerçar o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel e a condenação do R. na sua restituição. (…)»
No mesmo sentido, a título de exemplo, se decidiu nos Acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 19 de Maio de 2021 (processo n.º 34/20, disponível em www.dgsi.pt ) “Ora, tal como a A. a configura, estamos perante uma causa no âmbito dos direitos reais, já que a requerente alega factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o terreno em causa, que considera ter sido violado pelas requeridas”, de 3 de Novembro de 2020, www.dgsi.pt, proc. n.º 056/19 : “Tal como se apresenta, deparamo-nos com uma causa no âmbito dos direitos reais já que a requerente alega factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o terreno em causa, excluir o mesmo direito por parte da requerida, invoca inclusive ter o prédio sido esbulhado (art. 49 do p.i.) e, em consequência, pede a condenação na restituição da sua posse. Acresce que a requerente refere o processo expropriativo apenas para explicar que a requerida adquiriu por essa via de duas parcelas de terreno desanexadas do prédio da requerente (cfr. art. 15.º da p.i.p). Ora, a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18 e de 23.01.2020, Proc. 041/19, in www.dgsi.pt).”, ou de 23 de Março de 2022, www.dgsi.pt, proc. n.º 015/20: “A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais.”

É esta jurisprudência que se reitera, uma vez que a questão central neste processo é a da titularidade do direito de propriedade invocado pela autora e da sua defesa perante a actuação do réu.

6. Nestes termos, conclui-se que a competência pra apreciar esta acção é dos Tribunais Judiciais; concretamente, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Paredes – Juiz 1 (artigos 40.º, n.º 1, 81.º, n.ºs 1 e 3 e 130.º da Lei n.º 62/2013, e 64.º e 70.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Sem custas (art. 5.º, nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

Lisboa, 21 de setembro de 2022. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.