Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03/22-CP
Data do Acordão:07/05/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONSULTA DE JURISDIÇÃO
CONTRATO DE DIREITO PRIVADO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:Os tribunais judiciais são os competentes para conhecer da acção na qual está em causa o alegado incumprimento de um contrato de direito privado que a Autora, embora concessionária (ou sub-concessionária) do Estado Português, celebrou com a Ré, não se evidenciando o exercício de poder público e não existindo nele a criação de uma relação jurídica administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P31169
Nº do Documento:SAC2023070503
Data de Entrada:07/14/2022
Recorrente:CONSULTA DE JURISDIÇÃO (ART° 16° N° 2 DA LEI 91/2019), SUSCITADA PELA SECÇÃO ADMINISTRATIVA DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LOULÉ NO PROCESSO N° 369/22.6BELLE
REQUERENTE: A..., S.A.
REQUERIDO: B..., UNIPESSOAL, LDA.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Consulta Prejudicial nº 3/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Por despacho da Sra. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF de Loulé), de 12.07.2022, foi decidido suscitar a consulta prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 15º da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, por se haver entendido que se suscitam fundadas dúvidas sobre a questão da jurisdição competente para conhecer da causa.
A presente acção de condenação foi intentada por A..., SA contra B..., Unipessoal, Lda, no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Cível de Loulé, sendo pedida a condenação da Ré no pagamento da quantia de €22.225,51, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a propositura da acção até completo e integral pagamento.
A Autora alega, em síntese, que tem a seu cargo a gestão e administração do porto de recreio denominado A..., na qualidade de subconcessionária do Contrato de Concessão celebrado com a C..., SA, nos termos do DL nº 215/70, de 15 de Maio, alterado pelo DL nº 102/2004, de 7 de Maio.
Nesse âmbito celebrou com a Ré um contrato de cessão de exploração de actividade de oficina, administração e manutenção de embarcações, com ocupação de um compartimento no estaleiro da A..., mediante o pagamento de uma quantia mensal fixa.
Mais refere que tal contrato iniciou a sua vigência em 1 de Março de 2015, tendo a Ré deixado de cumprir as obrigações decorrentes do contrato a partir do mês de Junho de 2016. Em 19 de Setembro de 2017 foi feito um aditamento ao contrato onde a Ré reconhecia a quantia em dívida à data e acordava um plano de pagamentos. Não obstante esse acordo, a Ré continuou em situação de incumprimento facto que originou a resolução do contrato em 28 de Agosto de 2019, pelo que a Autora vem peticionar as quantias mensais vencidas acrescidas de juros de mora vencidos e vincendos.
A Ré não contestou e em 01.02.2022 o Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Cível de Loulé, Juiz 1, proferiu sentença a condenar a Ré no pagamento à Autora “da quantia global de € 22.225,51, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa de juros moratórios anuais legais que foi sendo e que for semestralmente fixada para os créditos de que sejam titulares empresas comerciais, desde o dia 9/6/2021 até efectivo e integral pagamento”.
Inconformada, a Ré recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Évora alegando, além do mais, a incompetência material absoluta do Tribunal. A Autora/Recorrida contra-alegou defendendo, no que ora releva, a improcedência da excepção.
Por acórdão proferido em 28.04.2022, com um voto de vencido, o Tribunal da Relação de Évora decidiu revogar a decisão recorrida “substituindo-a por outra que declara a incompetência absoluta dos Tribunais Judiciais para conhecer da causa, mais ordenando a remessa dos autos para o tribunal competente sem prejuízo do disposto no art.º 99.º, n.º 2, última parte, CPC.”, por entender que é “o exercício de poderes públicos – exercidos sobre um bem público - que fundamentam a causa de pedir”. E, chamando à colação o disposto na alínea d) do nº 1 do art. 4º do ETAF e nº 1 do art. 30º do DL nº 280/2007, conclui que “a recorrida demanda na qualidade de subconcessionária do Porto de Recreio, denominado A... sendo que tal contrato de concessão celebrado com o Estado tem natureza administrativa. Consequentemente o presente conflito que emerge desse contrato de cessão de exploração deve ser apreciado em sede de jurisdição administrativa”.
Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, face ao pedido de consulta, nos termos do nº 1 do art. 15º da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º daquele diploma.
A Exma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material para conhecer da presente acção à jurisdição administrativa – no caso concreto ao TAF de Loulé.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo».
A Autora alega na petição inicial que tem a seu cargo a gestão e administração do porto de recreio “A...” na qualidade de subconcessionária do Contrato de Concessão para construção e exploração de um porto outorgado à C..., SA, nos termos do DL nº 215/70, de 15 de Maio, alterado pelo DL nº 102/2004, de 7 de Maio.
Nessa qualidade celebrou com a Ré um contrato de cessão de exploração de actividades de oficina, administração e manutenção de embarcações, com ocupação de um compartimento no estaleiro da A..., com a área de 29,13 m2, com início de vigência em 01.03.2015. É com fundamento neste contrato que a Autora intentou a presente acção em que peticiona as prestações mensais vencidas e não pagas desde o momento em que a Ré entrou em incumprimento até à resolução do contrato em 28.08.2019.
Assim, nos autos não está em discussão o contrato administrativo de concessão de construção e exploração do porto celebrado entre a Autora e o Estado, que permite à Autora praticar actos no exercício de poderes públicos, mas que não a impede de ter relações de direito privado com terceiros.
Uma vez que cabe à jurisdição administrativa o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas importa saber qual é a natureza jurídica do referido contrato de cessão de exploração.
Ambas as partes são pessoas colectivas de direito privado e a Autora é concessionária da A....
Ora, nos termos da alínea d) do nº 1 do art. 4º do ETAF compete aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos”.
Por meio do acto ou contrato de concessão de exploração “podem ser transferidos para particulares, durante um período determinado de tempo e mediante o pagamento de taxas, poderes de gestão e de exploração de bens do domínio público (…)” (nº 1 do art. 30º do DL nº 280/2007, de 7 de Agosto).
A concessão é, assim, “um meio de privatização da gestão de uma actividade pública, pelo que, em princípio, é o direito privado que regula os actos (de gestão privada) do concessionário; a derrogação desse princípio exige, portanto, suporte legal expresso” (cfr. Pedro Gonçalves, A Concessão de Serviços Públicos, 1998, pág. 292).
E como expendem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira “Para que funcione a estatuição desta alínea d) não basta que se trate de actos jurídicos (ou de regulamentos) desses sujeitos privados (…) exige-se (…) que se trate da produção unilateral dos efeitos jurídicos-administrativos (normativos ou não) vinculativos para os seus destinatários ou para terceiros, nos casos em que a lei confere poderes para tal – ou, então, do exercício de deveres ou sujeições da mesma natureza, como sucede, por exemplo, com o dever de estes entes fazerem preceder os seus contratos (alguns deles) de um procedimento pré-contratual de direito público” (cfr. Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol. I, 2004, pag. 47).
Ora, desde logo se conclui que não estamos perante a fiscalização da legalidade de normas e actos jurídicos praticados por uma concessionária no exercício de poderes públicos. Apesar de lhe competir promover “a instalação e exploração regular e contínua dos serviços operacionais de apoio portuário, quer às embarcações, quer ao pessoal navegante, exigidos pela satisfação das necessidades ligadas à prática do turismo náutico” (Base X, nº 1), a Autora ao celebrar contratos com particulares para desenvolver tal actividade não actua no exercício de poderes públicos, não define unilateralmente a situação, comporta-se como qualquer gestor que cede a utilização e exploração de um seu espaço.
As relações entre as partes são de natureza estritamente privada, a Autora cedeu à Ré a exploração de actividades de oficina, administração e manutenção de embarcações mediante um pagamento mensal. O pedido, tal como a Autora o apresenta, tem como causa de pedir o alegado incumprimento pela Ré da obrigação de pagamento das quantias mensais resultante do referido contrato.
Também não se encontram preenchidos os requisitos previstos na alínea e) do nº 1 do mesmo artigo: “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.
De facto, não estamos perante um contrato administrativo, quer seja por natureza, quer seja por determinação da lei, quer seja por qualificação das partes.
Por outro lado, não sendo a Autora uma pessoa colectiva de direito público também não é uma entidade adjudicante para efeitos do Código dos Contratos Públicos (nºs 1 e 2 do artigo 2.º).
Como explicita Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, 18ª ed., 2020, pag. 109, “Essas ‘entidades adjudicantes’ são, além das pessoas colectivas públicas, os ‘organismos públicos’ – entidades criadas especificamente para satisfazerem necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, desde que financiadas (maioritariamente e regularmente) por pessoas colectivas públicas ou sujeitas ao seu controlo ou à sua influência dominante (art.º 2.º do CCP), bem como, no âmbito dos sectores especiais (água, energia, transportes e serviços postais), quaisquer entidades, incluindo as empresariais, que exerçam essas actividades, quando estejam sujeitas a controlo ou influência dominante de entidades adjudicantes”.
Deste modo, o objecto do presente litígio não integra as referidas alíneas do nº 1 do art. 4º ETAF, pois o que está em causa é o incumprimento de um contrato de direito privado que a Autora, embora concessionária (ou sub-concessionária) do Estado Português, celebrou com a Ré, não evidenciando o exercício de poder público e não existindo nele a criação de uma relação jurídica administrativa, pelo que tem de concluir-se que são os tribunais judiciais os competentes para conhecer da acção (no mesmo sentido, em situações similares, os acórdãos do STJ de 26.05.2015, Proc. 1798/09.6TBCSC.L1.S1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.10.2014, Proc. 4654/06.6TBCSC.L1-6 e de 20.01.2015, Proc 375014/09.5YIPRT.L1-7, disponíveis em www.dgsi.pt).

Pelo exposto, e nos termos do disposto no art. 17º da Lei nº 91/2019, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe aos Tribunais Judiciais conhecer da presente acção, no caso ao Tribunal da Relação de Évora quanto ao mérito do recurso interposto nos autos, se a tal nada mais obstar.
Sem custas.

Lisboa, 5 de Julho de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira da Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.