Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:016/17
Data do Acordão:02/01/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇAO.
CONTRATO DE EMPREITADA.
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:Compete aos tribunais da jurisdição comum conhecer de acção declarativa de condenação em que se pede a condenação da ré contratante a reparar imóvel bem como a cumprir outras obrigações que esta contratualmente assumiu. (*)
Nº Convencional:JSTA00070524
Nº do Documento:SAC20180201016
Data de Entrada:04/21/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 1º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DO FUNDÃO E O TAF DE CASTELO BRANCO.
AUTOR: A...... E OUTRO
RÉU: MUNICÍPIO DO FUNDÃO E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Objecto:TJ FUNDÃO - TAF CASTELO BRANCO.
Decisão:DECL COMPETENTE TJ
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CONST ART211 ART212 N3.
LOSJ ART40.
CPC13 ART64.
ETAF02 ART4.
CPTA02 ART10 N7.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC06/02 DE 2003/02/05.; AC TCF PROC022/03 DE 2004/03/04.; AC TCF PROC013/05 DE 2006/01/19.; AC TCF PROC06/05 DE 2016/04/26.; AC TCF PROC025/10 DE 2011/03/29.; AC TCF PROC08/14 DE 2015/10/09.; AC TCF PROC019/14 DE 2015/01/21.; AC TCF PROC01/04 DE 2004/06/29.; AC TCF PROC015/04 DE 2005/03/15.; AC TCF PROC02/12 DE 2012/09/20.; AC STJ PROC 934/05.6TBMFR.L1.S1 DE 2014/07/09.
Referência a Doutrina:ANTUNES VARELA E OUTROS - MANUAL DE PROCESSO CIVIL 2ED PAG207-209.
ALBERTO DOS REIS - COMENTÁRIO AO CÓDIGO PROCESSO CIVIL VOLI PAG110.
MÁRIO AROSO DE ALMEIDA E CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA - COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 2005 PAG80.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

I . Relatório:

A……….. e B…………, Lda., intentaram no Tribunal Judicial do Fundão acção declarativa de condenação, com processo ordinário, que correu com o nº 271/08.4TBFND, contra C………., Lda., D………, S.A., e E……….., Lda., tendo ali sido requerida a intervenção do Município do Fundão, o qual excepcionou a incompetência material dos tribunais judiciais.
Nessa acção peticionaram as autoras o seguinte:
(a) serem todas as rés condenadas solidariamente a reparar, corrigir e eliminar, no prazo de três meses a contar da sentença, todas as desconformidades (vícios, erros, defeitos, faltas de qualidade) detectados nas fachadas e coberturas dos edifícios que constituem o imóvel denominado "B.……." e enumerados nos artigos 27.º a 75.º da petição inicial;
(b) ser a ré D……….., S.A, condenada a reparar, corrigir e eliminar, no prazo de três meses a contar da sentença, todas as desconformidades (vícios, erros, defeitos, faltas de qualidade) detectados nas fachadas e coberturas do Anexo e bem assim os defeitos detectados no imóvel denominado "B…………" e enumerados nos artigos 76.º a 115.º da petição inicial;
(c) subsidiariamente, para a eventualidade de as rés não cumprirem voluntariamente e no prazo estipulado pelo Tribunal, a condenação no pedido efectuado em A) e B), devem as rés pagar às autoras o valor que vierem a despender com a reparação e eliminação das desconformidades (vícios, erros, defeitos, faltas de qualidade) identificados nos artigos 27.º a 115. º da petição inicial;
(d) bem assim, devem todas as rés ser solidariamente condenadas a cumprir as obrigações que contratualmente assumiram;
(e) deve ainda a ré D……., S.A. ser condenada a cumprir nas obrigações que contratualmente assumiu;
(f) cumulativamente com qualquer das condenações anteriores, devem as rés ser ainda condenadas a pagar à autora A………., a título de danos morais, sumariamente referidos nos artigos 137.º a 146.º da petição inicial, pela privação do uso e gozo do imóvel na sua plenitude, causada pela mora e cumprimento defeituoso das rés, uma indemnização não inferior a € 250 000, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.
Fundamentaram as pretensões deduzidas na seguinte alegação:
- O prédio urbano correspondente ao B…………, de que a 1.a autora é proprietária, está abrangido pelo Programa de Recuperação das Aldeias Históricas, encontrando-se inscrito no Plano de Revitalização da Aldeia Histórica de Castelo Novo;
- em 07 de Outubro de 2003 foi celebrado, entre a autora A………. e o Município do Fundão, um Protocolo de Cooperação com vista à recuperação das fachadas e coberturas do referido prédio "Edifício Principal";
- mediante esse protocolo, a Câmara Municipal obrigou-se a proceder a obras de recuperação das fachadas e coberturas no imóvel;
- a execução dessas obras foi adjudicada às rés, primeiro à ré C………., depois à ré E……….. e por último à ré D………….;
- foram assim realizadas obras de recuperação das coberturas e fachadas do edifício, por ordem e conta da Câmara Municipal do Fundão;
- a A B………. celebrou um contrato de empreitada com a ré D…………., S.A, com vista à recuperação e restauro dos edifícios identificados no art. 5.º de acordo com projecto aprovado pela câmara;
- quer as obras executadas pelas rés no âmbito do protocolo celebrado com a Câmara, quer as constantes do objecto do contrato de empreitada ou foram deficiente e incompletamente executadas, padecendo de vícios/defeitos graves ou foram executadas à revelia do projecto aprovado;
O Tribunal Judicial do Fundão, por decisão transitada em julgado em 11 de Novembro de 2009, julgou a jurisdição comum incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio por estar em causa uma relação jurídico-administrativa, deferindo essa competência à jurisdição administrativa e fiscal e absolvendo todos os réus da instância.
Fundou-se, para tanto, na circunstância de uma das partes ser uma pessoa jurídica de direito público (o Município do Fundão), que agiu nessa qualidade com o proclamado fim de contribuir para o desenvolvimento económico da região, e de o conteúdo do acordo (um contrato de empreitada) conter estipulação que justifica a respectiva qualificação como administrativo (tem por base um protocolo celebrado entre as autoras e o R. Município).
Nesta sequência, intentaram as mesmas autoras A……….. e B……….., Lda., no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, acção administrativa comum, na forma ordinária, que correu termos sob o na 711/09.5BECTB, contra o Município do Fundão, C………., Lda., D..…….., S.A, e E…….., Lda.
Ali deduziram pedidos idênticos aos formulados na anterior acção e invocaram facticidade integradora da mesma causa de pedir.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, por decisão transitada em julgado no dia 17 de Outubro de 2017, julgou, por sua vez, a jurisdição administrativa e fiscal incompetente, em razão da matéria, e competente a jurisdição comum, para conhecer dos pedidos formulados contra a ré D………., S.A., nos pontos B), C), este último na parte em que constitui um pedido subsidiário em relação ao pedido formulado em B), e nos pontos E) e F), este último na parte em que é um pedido cumulado com o pedido formulado em B), na medida em que estes pedidos assentam na celebração de um contrato de empreitada entre dois sujeitos privados, que se rege pelas normas do Código Civil, importando, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a absolvição desta ré da instância.
Foi suscitada oficiosamente a este Tribunal a resolução do presente conflito negativo de jurisdição, ao abrigo do disposto nos artigos 109º nºs 1 e 3 e 111º nº 1 do Código de Processo Civil.
O Ministério Público, em douto parecer, defendeu a atribuição da competência ao tribunal comum.

II. Fundamentos:
Coloca-se a questão de saber a que jurisdição deve ser deferida a competência para apreciar e julgar os pedidos supra indicados relativamente à ré D……….., S.A., - se à jurisdição comum se à jurisdição administrativa e fiscal, posto que ambas as jurisdições declinaram, neste particular, a competência material para deles conhecer.
Como é sobejamente afirmado, a competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, revista e actualizada, Coimbra Editora Limitada, 1985, página 207).
Na base da competência em razão da matéria está, como é sabido, o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, loc. cit.).
Os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada ou de competência genérica, enquanto os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente cometidas pela lei. Quer isto significar que todas as acções que exorbitem das matérias especificamente conferidas aos tribunais especiais (hoc sensu), cabem na esfera (geral) da competência indiscriminada dos tribunais judiciais (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, loc. cit., págs. 208 e 209).
A competência material dos tribunais judiciais é, assim, residual ou negativa, já que é determinada pela exclusão da sua atribuição a outra ou outras jurisdições.
É o que resulta, justamente, do disposto no artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), preceito constitucional que na lei ordinária encontra concretização no disposto nos artigos 64.º do Código de Processo Civil (anterior artigo 66º) e 40.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 13 de Janeiro, alterada pela 40-A/2016, de 22 de Dezembro (preceito correspondente ao anterior artigo 18º nº 1 da LOFT aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro).
Por efeito da aplicação do apontado critério de atribuição de competência residual ou negativa, será competente a jurisdição comum apenas e só no caso de a competência para apreciar e julgar a acção não se encontrar especificamente atribuída à jurisdição administrativa.
Tal aferir-se-á pela forma como o autor configura a acção.
É pacífico o entendimento jurisprudencial e doutrinário segundo o qual a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como o autor a apresenta na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir).
Deverá atender-se ao pedido e, especialmente, à causa de pedir formulados pelo autor, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante ou, nas palavras de Alberto dos Reis, é por esta forma que se caracteriza o "modo de ser da lide" (in Comentário ao Código de Processo Civil, I, Coimbra Editora, 1944, p. 110).
A competência do tribunal em razão da matéria é fixada, deste modo, em função dos termos em que a acção é proposta, ou seja, pelo modo como o autor estrutura a causa, sem que para esse efeito releve a prognose acerca do êxito da acção ou seja lícita qualquer indagação incidindo sobre o respectivo mérito.
Na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos encontramos este entendimento vertido nos seguintes arestos: 06/02, de 05-02-2003; 22/03, de 04-03-2004; 13/05, de 19-01-2006; 06/05, de 26-04-2006; 25/10, de 29-03-2011; 19/14, de 21-01-2015; 08/14, de 01-10-2015 (todos com publicação em www.dgsi.pt).
Retornando ao caso vertente, temos que, com base em pedidos idênticos e idênticas causas de pedir, as autoras demandaram os mesmos réus nas duas acções: a instaurada nos tribunais comuns e a proposta nos tribunais administrativos e fiscais.
Optaram por demandar, conjuntamente, uma entidade pública e várias entidades particulares, em coligação passiva, formulando pedidos autónomos consubstanciados em relações jurídicas distintas: o fundamento dos pedidos formulados contra a entidade pública assenta no mencionado protocolo para a Recuperação de Aldeias Históricas e nos subsequentes contratos de empreitada celebrados com vista à recuperação das fachadas e coberturas do edifício; o fundamento de parte dos pedidos formulados contra a ré D………., SA, radica num contrato de empreitada de natureza privada que teve por objecto a recuperação do interior do mesmo edifício, obra não abrangida pelo referido protocolo.
Segundo o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, aos tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, qualificação que transporta duas dimensões caracterizadoras: (i) as acções e recursos incidentes sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (ii) as relações jurídicas controvertidas reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.
Salvo determinação expressa em sentido diferente contida em lei avulsa, para a determinação da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal valem os critérios contidos no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, com a redacção resultante da lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, atenta a data da instauração da acção nos tribunais administrativos e fiscais - 20.11.2009 -.
Dos referidos critérios, nomeadamente os contidos nas alíneas e) e f) daquele normativo, não resulta a atribuição de jurisdição aos tribunais administrativos para resolver o litígio relativo ao cumprimento defeituoso do contrato de empreitada outorgado entre a segunda autora B…………, Lda., e a ré D.……., SA, respeitante à recuperação do interior do edifício propriedade da primeira autora, estranho ao protocolo celebrado entre esta e o réu Município do Fundão e regido por normas de direito privado.
E não resulta, igualmente, do disposto no artigo 10.º, n.º 7, do CPTA, na redacção anterior ao DL n.º 214-G/2015, de 02-10, nos termos do qual «Podem ser demandados particulares ou concessionários, no âmbito de relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares», regra de legitimidade plural passiva que exige que o envolvimento dos interessados particulares se situe ainda no âmbito de uma relação jurídica administrativa (neste sentido Mário Aroso de Almeida; Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, pág. 80), o que não sucede, manifestamente, no caso vertente.
Em consequência, não sendo atribuível competência à jurisdição administrativa para conhecer e apreciar os pedidos formulados pelos autores contra a ré D………., SA, assentes no incumprimento de um contrato submetido às regras de direito privado, tem aplicação, no caso, o disposto no artigo 5.º, n.º 2, do CPTA, na versão da Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, preceito que determina a absolvição da instância relativamente aos pedidos cumulados que não pertençam ao âmbito da jurisdição administrativa.
A competência para deles conhecer recai na jurisdição comum.
É neste sentido que singra o entendimento vertido em vários arestos, do Tribunal dos Conflitos (v.g., n.º 01/04, de 29-06-2004, 15/04, de 15-03-2005 e 02/12, de 20-09-2012), mas também do Supremo Tribunal de Justiça (Proc. n.º 934/05.6TBMFR.L1.S1, de 09-07-2014), todos disponíveis www.dgsi.pt.
Em conclusão, deverá, na resolução do presente conflito negativo de jurisdição, deferir-se à jurisdição comum competência material para conhecer dos pedidos formulados contra a ré D………, S.A., nos pontos B), C), este último na parte em que é um pedido subsidiário em relação ao pedido formulado em B), e nos pontos E) e F), este último na parte em que é um pedido cumulado com o pedido formulado em B), conforme decisão proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco.

III. Decisão:
Nestes termos, acorda-se em julgar os tribunais judiciais competentes, em razão da matéria, para conhecerem dos pedidos deduzidos pelos autores contra a ré D………., S.A., enunciados na petição inicial nos pontos B), C), este último na parte em que é um pedido subsidiário em relação ao pedido formulado em B), e nos pontos E) e F), este último na parte em que é um pedido cumulado com o pedido formulado em B).
Sem custas.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2018. – Fernanda Isabel de Sousa Pereira (relatora) – José Francisco Fonseca da Paz – Manuel Tomé Soares Gomes – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Nuno de Melo Gomes da Silva – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.