Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:013/21
Data do Acordão:10/18/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO DE EMPREGO-INSERÇÃO
ACIDENTE
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:I - O acidente sofrido por trabalhador, a exercer funções de operário para uma Junta de Freguesia, no âmbito de um contrato emprego-inserção, no tempo e local do trabalho prestado, deve ser considerado como acidente de trabalho, nos termos dos arts. 3º, 8º e 9º, da Lei nº 98/2009, de 4/9.
II – Nos termos do disposto no art. 4º, nº 4, alínea b) do ETAF, incumbe aos Tribunais Judiciais a competência para conhecer do processo visando a reparação dos danos resultantes de tal acidente.
Nº Convencional:JSTA000P28319
Nº do Documento:SAC20211018013
Data de Entrada:03/25/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - INST. CENTRAL –1ª SEC. TRABALHO – J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA
Autor: A..........
Réu: FREGUESIA DE FAMALICÃO DA NAZARÉ E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 13/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………… intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAF de Leiria) acção contra a Junta de Freguesia de Famalicão da Nazaré, o Instituto do Emprego e Formação Profissional, IP (IEFP, IP) e a companhia de seguros B……., ……., pedindo a sua condenação a pagarem-lhe uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de um acidente que sofreu quando executava trabalhos de trabalhador polivalente (operário), por ordem e conta daquela autarquia, com a qual celebrara um contrato de emprego-inserção ao abrigo da Portaria n.º 128/2009, de 30 de Janeiro.

Em acção anteriormente intentada, o Tribunal da Comarca de Leiria – Instância Central – 1.ª Secção Trabalho, [Processo nº 1230/15.6T8LRA] por despacho de 24.10.2015, julgou-se incompetente em razão da matéria, por entender que «não existindo contrato de trabalho de natureza privada entre a entidade promotora e o sinistrado não pode o acidente em causa nos autos, participado ao Tribunal, ser considerado acidente de trabalho à luz do Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho, nomeadamente do seu art 3º».
Esta decisão transitou em julgado.

Em seguida, o A propôs a presente acção junto do TAF de Leiria que, em saneador-sentença proferido em 31.01.2021, apoiando-se em jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que cita, julgou-se também incompetente em razão da matéria. Considerou aquele Tribunal que «Não tendo o autor, enquanto trabalhador, um vínculo para o exercício de funções públicas, seja através de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, o acidente em causa nos autos não pode ser qualificado como acidente em serviço, nos termos admitidos no decreto-lei n.º 503/99, de 20.11 e, em consequência, a competência para apreciação do litígio está excluída da competência dos tribunais administrativos, nos termos previstos no artigo 4.º, n.º 4, al. d), do ETAF».

Suscitado oficiosamente a resolução do conflito no TAF de Leiria por despacho de 23.03.2021, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019. O A veio pugnar pelo envio do processo ao TAF de Leiria.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção aos tribunais judiciais.

2. Os Factos
Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório.

Cumpre decidir.
Em síntese o A. alega que sofreu um acidente no exercício da prestação de trabalho executada ao abrigo do contrato emprego–inserção celebrado a Junta de Freguesia de Famalicão da Nazaré, no âmbito da Portaria 128/2009, de 30 de Janeiro, dele resultando danos patrimoniais e não patrimoniais dos quais se pretende ver ressarcido.
O presente conflito negativo de jurisdição vem suscitado entre Secção do Trabalho do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria e o TAF de Leiria por ambos se terem considerado materialmente incompetentes para apreciar o pedido do autor.
A questão suscitada nos autos - saber qual a jurisdição competente quando está em causa um acidente sofrido por um trabalhador no âmbito de execução de um “contrato emprego-inserção” - já foi apreciada pelo Tribunal dos Conflitos, por diversas vezes, sendo uniforme a posição assumida (cfr. Acórdãos do Tribunal dos Conflitos nº 15/17, de 19.10.2017, nº 53/17, de 25.01.2018, nº 40/18, de 31.01.2019, nº 42/18, de 28.02.2019, nº 15/19, de 30.01.2019 e nº 37/19, de 6.02.2019, 50/2029, 51/2019, 52/2019 de 25.06.2020, nº 44/19, de 03.11.2020, n.º 8/20, de 27.04.2021 e n.º 31/20, de 08.07.2021).
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP).
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do art. 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4.º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4). Deste último preceito importa reter o disposto na alínea b) do nº 4 que excluí do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal os litígios “decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.
O “contrato emprego-inserção” insere-se no regime jurídico do Rendimento Social de Inserção criado pela Lei nº 13/2003, de 21/5, fazendo parte do programa de inserção previsto naquele regime.
A Portaria nº 128/2009, de 20/1 “regulamenta as medidas 'Contrato emprego-inserção' e 'Contrato emprego-inserção+', através das quais é desenvolvido trabalho socialmente necessário” (cfr. art. 1º).
Da celebração do contrato emprego-inserção não decorre o estabelecimento de qualquer vínculo de trabalho em funções públicas nos termos da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP).
Efectivamente, o art. 6º da LTFP (Lei nº 35/2014, de 20/6), prevê as modalidades de prestação de trabalho em funções públicas que se traduzem no vínculo de emprego público e no contrato de prestação de serviço. E, conforme o nº 3 deste preceito, as modalidades do vínculo de emprego público são o contrato de trabalho em funções públicas, a nomeação e a comissão de serviço. Por sua vez, o art. 10º dispõe que “O contrato de prestação de serviço para o exercício de funções públicas é celebrado para a prestação de trabalho em órgão ou serviço sem sujeição à respetiva disciplina e direção, nem horário de trabalho” e o nº 2 que as suas modalidades são o contrato de tarefa e o contrato de avença.
Ora, o DL nº 503/99, de 20/11 (regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública) determina no seu artigo 2º que “O disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços da administração directa e indirecta do Estado” (n.º 1) e que “O disposto no presente decreto-lei é também aplicável aos trabalhadores que exercem funções públicas nos serviços das administrações regionais e autárquicas e nos órgãos e serviços de apoio do Presidente da República, da Assembleia da República, dos tribunais e do Ministério Público e respectivos órgãos de gestão e de outros órgãos independentes” (nº 2). Ao que acresce que “O disposto no presente decreto-lei é ainda aplicável aos membros dos gabinetes de apoio quer dos membros do Governo quer dos titulares dos órgãos referidos no número anterior” (nº 3).
Por outro lado, nos termos do nº 4, “Aos trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelo disposto nos números anteriores é aplicável o regime de acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27 de Agosto, devendo as respectivas entidades empregadoras transferir a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho nos termos previstos naquele Código”.
Por sua vez, de acordo com o nº 5, “O disposto nos números anteriores não prejudica a aplicação do regime de protecção social na eventualidade de doença profissional aos trabalhadores inscritos nas instituições de segurança social”. Por último, dispõe o n.º 6 que “As referências legais feitas a acidentes em serviço consideram-se feitas a acidentes de trabalho”.
Assim, não pode o acidente em apreço considerar-se abrangido pelo regime jurídico dos acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública.
Já a Lei nº 98/2009, de 4/9, que regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, prevê de forma ampla o seu âmbito de aplicação no que respeita a acidentes de trabalho e é parte integrante do regime do contrato de trabalho consagrado no Código do Trabalho. O art. 284º deste Código remete a regulamentação da prevenção e reparação de acidentes de trabalho e doenças profissionais para “legislação específica”, que é justamente a Lei n.º 98/2009.
Na situação em apreço, a relação estabelecida entre a Junta de Freguesia de Famalicão da Nazaré e o trabalhador cabe na previsão normativa do art. 3.º, de acordo com a qual “O regime previsto na presente lei abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer actividade, seja ou não explorada com fins lucrativos” (nº 1) e “Quando a presente lei não impuser entendimento diferente, presume-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços” (nº 2).
E que de acordo com o nº 3 do referido preceito: “Para além da situação do praticante, aprendiz e estagiário, considera-se situação de formação profissional a que tem por finalidade a preparação, promoção e actualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à actividade do empregador”.
A entidade por conta de quem o trabalho é prestado é obrigada a transferir a responsabilidade pela reparação prevista na Lei nº 98/2009 para “entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro”, conforme o art. 79º, n.º 1.
O acidente em causa nos autos é susceptível de ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos dos arts. 3º, 8º e 9º, da Lei nº 98/2009, de 4/9, já que é subsumível ao conceito de acidente de trabalho previsto no art. 8º, nº 1, segundo o qual “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente, lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução da capacidade de ganho ou a morte”.
Assim, e atento o disposto no art. 4º, nº 4, al. b), do ETAF, é de concluir, tal com tem vindo a ser decidido por este Tribunal dos Conflitos em casos idênticos, que o acidente em causa nos autos não pode considerar-se abrangido pelo Regime Jurídico dos Acidentes em Serviço e das Doenças Profissionais no âmbito da Administração Pública. Antes devendo ser considerado um acidente de trabalho, nos termos da Lei nº 98/2009, razão pela qual a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais.

Pelo exposto, acordam em atribuir a competência aos tribunais judiciais [Tribunal da Comarca de Leiria – Instância Central – 1.ª Secção Trabalho – Juiz 1] para conhecer da presente acção.
Sem custas.

Lisboa, 18 de Outubro de 2021. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.