Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:08/19
Data do Acordão:05/30/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24621
Nº do Documento:SAC2019053008
Data de Entrada:01/22/2019
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA E O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA, JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA - JUIZ 4
AUTOR: CENTRO HOSPITALAR DE LEIRIA, E.P.E.
RÉU: MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

I - RELATÓRIO

1. Vem suscitada a resolução de um conflito negativo de competência entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria e o Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Local Cível - Juiz 4, negando ambos a respectiva competência para o processamento dos presentes autos.

O Centro Hospitalar de Leiria, EPE instaurou contra o Ministério da Administração Interna acção administrativa, sob a forma de injunção, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 4.316,81 (capital e juros moratórios) referentes a facturas de dívidas hospitalares resultantes da prestação de cuidados de saúde a beneficiários da «entidade do Ministério da Administração Interna - SAD/PSP - Serviço de Assistência a Doentes PSP».

Alegou, em síntese, que, em várias datas do ano de 2016, prestou cuidados de saúde - tratamento médico ambulatório e fornecimento de medicamentos - a sinistrados beneficiários/funcionários da Entidade Demandada.

Alegou ainda que, nos termos do disposto no artigo 23.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de Janeiro, «os órgãos do Estado respondem pelos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde no quadro do Serviço Nacional de Saúde, entidade que pode ser directamente demandada pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de saúde, ao abrigo do disposto no art. 4.º, n.º 1, do DL 218/99, de 15/06». Para além dos diplomas legais citados, invoca ainda a Portaria n.º 234/2015, de 7 de Agosto.

Por despacho proferido em 9 de Maio de 2018, foi suscitada oficiosamente a excepção da incompetência material do Tribunal Administrativo e, concluindo-se pela sua verificação, foi decidido que «a competência em razão da matéria para o conhecimento do litígio "sub judice", ou seja, para o conhecimento das acções destinadas à efectivação das responsabilidades dos utentes das entidades hospitalares integradas no Sistema nacional de saúde, por cuidados ali prestados, por força do disposto no artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 218/99», pertence à jurisdição comum.

Consequentemente, declarada a incompetência absoluta daquele Tribunal Administrativo, em razão da matéria para o conhecimento da causa, foi o Demandado absolvido da instância.

O Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juízo Cível Local de Leiria - Juiz 4, para onde os autos foram remetidos, julgou-se materialmente incompetente para a acção, entendendo que a competência pertence aos tribunais da ordem administrativa.

Ambas as decisões a enjeitar a competência transitaram em julgado.

Verifica-se a existência efectiva de um conflito negativo de competência sobre a matéria em causa, ou seja, in casu, sobre qual a jurisdição, comum ou administrativa, materialmente competente para a cobrança da dívida hospitalar e de fornecimento de medicamentos peticionada pelo Autor Centro Hospitalar de Leiria, EPE.

É esse o conflito cuja resolução vem pedida e que cumpre decidir.

2. Ouvidos os interessados, pronunciou-se o Ministério Público que, acompanhando a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, considerou que a competência pertence ao tribunal judicial.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Uma vez que dois tribunais integrados em diferentes ordens jurisdicionais declinaram, por decisões transitadas em julgado, a competência para conhecer da mesma questão, desenha-se aqui, sem dúvida, um conflito de jurisdição que cabe a este Tribunal resolver, nos termos do disposto nos artigos 109.º, n.ºs 1 e 3, e 110.º do Código de Processo Civil.

2. Como este Tribunal tem reiteradamente afirmado, a competência afere-se em função dos termos da acção, ou configuração da relação material controvertida, tal como definidos pelo autor (v., entre outros, o acórdão de 21-04-2016, proferido no proc. n.º 042/15 e mais jurisprudência aí referenciada).

3. Proclama o artigo 202.º, n.º 1, da Constituição da República que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conforme disposto no artigo 211.º, n.º 1, da Lei Fundamental e no artigo 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Aos tribunais administrativos e fiscais pertence o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações administrativas e fiscais (artigos 212.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição), estabelecendo o artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na sua actual redacção, conferida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto».

A competência dos tribunais em razão da matéria, ou jurisdição, afere-se em função da configuração da relação material controvertida, dos termos em que é formulada a pretensão.

Ora, como bem se refere na decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, «analisada a relação material controvertida tal como foi configurada pelo Autor da petição, conclui-se que o mesmo pede a condenação do Demandado no pagamento de quantias relativas a dívidas hospitalares, resultante da prestação de cuidados de saúde», invocando-se o regime jurídico de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no serviço Nacional de Saúde, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho, assim como na Portaria n.º 234/2015, de 7 de Agosto, de cujas disposições se extrai, na sua perspectiva, a responsabilidade do demandado pelo pagamento dos encargos resultantes da prestação de cuidados de saúde no quadro do Serviço Nacional de Saúde.

Pelo que, secundado aquela decisão, considerando a matéria em causa nos autos, o seu objecto e, mais concretamente, o regime jurídico que lhe é aplicável, constante do Decreto-Lei n.º 218/99, é de concluir que a competência material para o julgamento da presente causa pertence à jurisdição comum e não à jurisdição administrativa.

Aliás, como se consigna no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 07-03-2006 (Disponível, como os demais que se citarem sem outra menção, nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.), citado na mesma decisão, o litígio em questão não integra uma relação jurídica entre pessoas e direito público desenvolvida sob a égide do direito público, mas antes uma relação jurídica estabelecida no âmbito da gestão privada da entidade credora, pelo que o seu objecto não se enquadra na previsão de qualquer das alíneas do artigo 4.º do E.T.A.F.

E, convocando-se o acórdão deste Tribunal de 14-03-2006 (Proc. n.º 021/05):

«Só na ausência de disposição legal expressa, atributiva de competência «ex vi legis», é que a competência material dos tribunais - tanto a que os diferencia dentro da mesma ordem jurisdicional, como a que os distingue segundo jurisdições diversas - se afere pelo pedido formulado na acção que esteja em presença, caso, aliás, em que a natureza desse pedido deve ser esclarecida ou iluminada pela causa de pedir de que ele dimane. Assim, é prioritário determinar se existe uma qualquer norma que imediata e irresistivelmente defina qual é a jurisdição ou o tribunal competente para resolver o litígio. E, tendo em conta a indiscutível inclusão do hospital autor no denominado serviço nacional de saúde - pois essa inclusão, que era evidente aquando da prestação dos «tratamentos médicos» referidos na acção dos autos em virtude de o hospital ser então uma pessoa colectiva de direito público, persistiu com a transformação dele em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos (cfr. os arts. 1º e 4º do DL n.º 297/2002, de 11/12) - somos imediatamente remetidos para a análise do DL n.º 218/99, de 15/6, já que este diploma, como consta do seu art. 1º, veio estabelecer «o regime de cobrança de dívidas pelas instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde em virtude dos cuidados de saúde prestados».

O DL n.º 218/99 revogou e substituiu o DL n.º 194/92, de 8/9 - diploma em que se atribuíra força executiva às certidões de dívida emanadas das instituições e serviços públicos integrados no serviço nacional de saúde e se determinara que as correspondentes acções executivas seriam «instauradas no tribunal da comarca» em que se encontrasse sediada a entidade exequente (cfr. os arts. 1º e 10º). Portanto, o DL n.º 194/92 excluía qualquer hipótese de os processos daquele tipo correrem nos tribunais administrativos. Logo no preâmbulo do DL n.º 218/99, o legislador anunciou o intuito de, através da «lex nova», alterar «as regras processuais do regime de cobrança das dívidas hospitalares», constantes do decreto-lei revogado; mas, como do mesmo preâmbulo eloquentemente flui, essa alteração de regras centrava-se na substituição da acção executiva pela declarativa, mudança essa justificada pelo facto de se haver entretanto constatado que a força executiva conferida às sobreditas certidões não trouxera as pretendidas celeridade e simplicidade processuais. Ora, se a mencionada «alteração das regras processuais» também passasse por uma redefinição dos tribunais e da jurisdição competentes para o conhecimento das acções previstas no diploma, seria natural que o preâmbulo se lhe referisse - pois dificilmente se compreenderia que uma modificação com essa amplitude permanecesse silenciada nas longas considerações preambulares que o legislador teceu. Portanto, o preâmbulo do DL n.º 218/99, apesar de não dispor, «a se», de força normativa, constitui um primeiro e poderoso indício de que o diploma deve ser interpretado no sentido de que nada inovou quanto à competência dos tribunais que apreciariam as chamadas dívidas hospitalares - os quais continuariam a ser os da jurisdição comum.

O art. 7º do DL n.º 218/99, cuja epígrafe consiste na «competência territorial», estabeleceu que as acções previstas no diploma «devem ser propostas no tribunal da sede da entidade credora». Desapareceu, assim, a alusão ao «tribunal da comarca», que constava do art. 10º do DL n.º 194/92. Mas esta singela mudança não suporta a ideia extrema de que o legislador, ao eliminar a referência à «comarca», quis transferir a competência da ordem dos tribunais judiciais para a jurisdição administrativa. Se a norma assim fosse interpretada, olvidar-se-ia a proporcionalidade que sempre deve existir entre os efeitos e as respectivas causas, entrevendo-se numa minudência literal algo que claramente excede o seu típico horizonte de significação. Assim, a circunstância e o aludido art. 7º não referir que o «tribunal» aí em causa é o «da comarca» deve ser encarada segundo uma justa e equilibrada medida - a de que se trata de um mero «modus dicendi», ainda fiel à linha pretérita de se atribuir aos tribunais judiciais a competência para o conhecimento dos pleitos previstos no diploma.

Por outro lado, o art. 6º do DL n.º 218/99 prevê que as instituições e serviços integrados no serviço nacional de saúde possam «constituir-se partes civis em processo penal relativo a facto que tenha dado origem à prestação dos cuidados de saúde, para dedução de pedido de pagamento das respectivas despesas». Esta possibilidade de se formular um pedido cível fundado nas dívidas hospitalares aponta inexoravelmente para os tribunais comuns, onde correm os processos penais. Ora, seria extravagante e anómalo que a apreciação dos pedidos de condenação por essas dívidas pudesse caber a duas ordens jurisdicionais diferentes - à jurisdição comum, se os devedores fossem demandados naquele processo criminal, e à jurisdição administrativa, se o fossem fora dele - já que a repartição das matérias entre jurisdições diversas funda-se na natureza dos assuntos em presença, e não em aspectos acidentais como sucederia com a existência ou a falta de um processo penal. Deste modo, o mencionado art. 6° vem corroborar aquilo que já indicavam o preâmbulo do diploma e o teor do seu art. 7º - que é à jurisdição comum, e não à administrativa, que compete conhecer das acções em que os hospitais da rede pública intentem cobrar as dívidas resultantes dos cuidados de saúde por si prestados».

Aí se concluindo que essa digressão histórica «vem confirmar a ideia de que é à jurisdição comum, e não à administrativa, que incumbe, à luz do ora vigente DL n.º 218/99, conhecer dos pedidos de condenação no pagamento de dívidas hospitalares, em cujo género se inscreve a acção a que se refere o presente conflito».

No mesmo sentido, acompanhando o acórdão que vem de se citar, referencie-se o acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 19-10-2017 (Proc. n.º 41/17):

«É da competência da jurisdição comum o conhecimento das acções destinadas à efectivação das responsabilidades dos utentes das entidades hospitalares integradas no Sistema Nacional de Saúde, por cuidados ali prestados, por força do disposto no artigo 1º, nº2 do DL 218/99 de 15 de Junho, sendo aplicável o regime jurídico das injunções».

III - DECISÃO

Em face do exposto, resolvendo o presente conflito de jurisdição, os Juízes do Tribunal dos Conflitos decidem atribuir a competência em razão da matéria para o conhecimento da presente acção o tribunal da jurisdição comum.

Sem custas.

Lisboa, 30 de maio de 2019. – Manuel Pereira Augusto de Matos (relator) – José Francisco Fonseca da Paz – Francisco Manuel Caetano – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – José Inácio Manso Rainho – José Augusto Araújo Veloso.