Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:048/15
Data do Acordão:07/07/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA BENEDITA URBANO
Descritores:ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
JURISDIÇÃO COMUM
Sumário:I – É de reivindicação a acção em que a autora peça a declaração da propriedade sobre uma coisa e a condenação do réu, detentor dela, a restituí-la.
II – Este tipo de acções reais não se insere em qualquer das hipóteses delineadas no artigo 4.º do ETAF, motivo pelo qual devem essas acções ser conhecidas pelos tribunais comuns – cuja competência é residual (art. 66.º, actual art. 64.º do CPC).
Nº Convencional:JSTA000P20801
Nº do Documento:SAC20160707048
Data de Entrada:11/24/2015
Recorrente:O MINISTÉRIO PÚBLICO, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A INSTÂNCIA LOCAL DE LAMEGO - SECÇÃO CÍVEL E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 48/15

Acordam no Tribunal de Conflitos

1. Relatório

A………… e B……….., residentes na Rua ………, ………, Apartamento …….., ………., Rio de Janeiro, Brasil, intentaram acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra a Câmara Municipal de Resende, na Avenida Rebelo Moniz, Resende, no então Tribunal Judicial de Resende, com os fundamentos constantes na petição inicial, peticionando:

A - Que a ré seja condenada a reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre a parcela de terreno que se encontra ocupada por terras, e que integra os prédios, rústico e urbano, contíguos entre si, e sitos no Lugar …….., ou ……….., freguesia de ………., concelho de Resende, inscritos na respectiva matriz de finanças sob os artigos 225.º e 260.º;
B - Que a ré seja condenada na restituição daquela mesma parcela de terreno que se encontra ilicitamente ocupada, e bem assim condenada na remoção das terras que ali se encontram depositadas por causa da construção do Parque …………, condenando-se igualmente a ré na subsequente reposição e reparação dos muros de pedra que integram os seus limites, tal como aqueles prédios se encontravam antes do depósito das terras, com execução de um muro de suporte de terras para vencer o desnível de cotas altimétricas, deixando, desta forma, completamente livre e desocupado os prédios dos autores;
C - Que a ré seja condenada no pagamento de uma indemnização aos autores pela privação do gozo da referida parcela de terreno, a contar do dia 27 de Abril de 2010 e até esta se verificar, a liquidar em execução de sentença;
D - Que a ré seja condenada no pagamento de uma indemnização aos autores, no montante de € 1.500,00, a título de danos morais, pelo facto de a sua actuação marginal ao dever de cumprimento da legalidade a que está sujeita a Administração, pois nem sequer quis saber dos interesses e direitos do dono da referida parcela de terreno, devendo a posse da ré presumir-se de má fé, com violação grosseira do direito de propriedade dos aqui autores, o que lhes provocou angústias, arrelias, anseios e preocupações, pois viram os seus prédios ocupados por um aterro, que vence um elevado e asfixiante desnível de cota com o agora vizinho Parque …………….., que com as chuvas provoca deslizamentos e maior ocupação de área, provocando uma significativa desvalorização económica desses mesmos prédios.
Em caso de improcedência do pedido formulado em B., subsidiariamente, pedem:
E - Que a ré seja condenada ao pagamento de uma justa e adequada indemnização aos autores, devida pela aquisição da parcela de terreno que ocupou dos seus prédios, apurando-se a sua área concreta, e por aplicação das livres regras do mercado imobiliário em uso no concelho de Resende, ou, em alternativa, segundo os parâmetros instituídos no Código das Expropriações, ambas a liquidar em execução de sentença.

Citada, a ré apresentou contestação, na qual excepcionou a sua falta de personalidade jurídica, aceitou alguns dos factos alegados pelos autores e impugnou os demais.

Houve resposta, foi proferido despacho no qual se considerou ter-se devido a lapso de escrita a menção feita na petição inicial à Câmara Municipal em lugar de Município, e, após vicissitudes várias, remetido que foi o processo à Comarca de Viseu, por decisão proferida em 2/12/14 foi declarada «a Secção Cível da Instância Local de Lamego incompetente, em razão da matéria para julgamento da ré no âmbito do presente processo» e, consequentemente», «absolver a ré da instância».
Em síntese, entendeu-se nessa decisão que não estava em causa uma mera reivindicação de propriedade cumulada de pedidos de indemnização, mas antes a apreciação de um litígio que assenta na responsabilidade civil extracontratual do réu, pois, como nela se refere, «o que da petição inicial se extrai é que a responsabilidade assacada à ré tem origem na prática de um acto compreendido no exercício de um poder público e integrando ele mesmo a realização de uma função pública, podendo, por isso, dizer-se que estamos perante uma relação materialmente administrativa, a reclamar a intervenção da correspondente jurisdição para o respectivo julgamento.
Sendo assim, tratando-se de ter de efectivar a responsabilidade extracontratual de uma Câmara Municipal, e ainda estando em causa a aplicação de normas de direito administrativo, tal como ressalta da matéria articulada na petição, são competentes os tribunais administrativos para apreciação de todos os pedidos, pois que como já acentuámos a distinção entre questões de direito privado ou público deixou de ter interesse relevante para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa».

Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, como requerido pelos autores, foi, em 23/07/15, proferido despacho em que se declarou ser esse tribunal igualmente «incompetente em razão da matéria para conhecer do presente pedido».
Essencialmente, nele se sustentou, arrimando-se no Acórdão deste Tribunal de Conflitos proferido em 22/04/15, que «Estando em causa nos presentes autos o reconhecimento da propriedade de determinado prédio e, como consequência da violação desse direito de propriedade, a restituição do mesmo e pagamento de indemnização, não se descortina a existência de uma relação jurídico-administrativa.
Pela conjugação dos mencionados dispositivos legais, resulta que os tribunais administrativos não são competentes para a resolução da questão em causa».

Estas decisões transitaram em julgado.

Suscitada, oficiosamente (art. 111.º, n.º 2 do Código de Processo Civil – doravante CPC), a resolução do conflito, foram os autos remetidos de imediato a este Tribunal de Conflitos.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.

2. Enquadramento e apreciação do conflito

2.1. De facto:

Factualmente releva o que se mencionou no antecedente Relatório.

2.2. De direito:

A questão essencial decidenda é a de saber qual é o tribunal materialmente competente para conhecer dos pedidos de condenação mencionados.
Considerando que o que está em causa é o confronto entre a competência dos tribunais da ordem judicial e a dos tribunais da ordem administrativa vejamos qual é o âmbito da competência dos tribunais desta última ordem.

O artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), diz, relativamente à jurisdição comum:
«Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais».
Trata-se da consagração do princípio da competência residual dos tribunais judiciais, uma vez que ela se estende a todas as matérias que não sejam atribuídas a outras ordens judiciais.
Em consonância, o artigo 64.º do CPC confirma que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» formulação reafirmada no art. 40.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013 de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário).
Por sua vez, o artigo 212.º da CRP, no seu n.º 3, quanto à ordem administrativa, refere:
«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».
Conforme estatui o art. 1.º, n.º 1, do ETAF, aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 17/02, na redacção vigente à data da propositura da acção (23/04/13) (A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa (art. 5.º do ETAF). Posteriormente, a redacção deste normativo e dos que a seguir se citam foi alterada pelo DL n.º 214-G/2015, de 02/10.): «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais».
Depois, no art. 4.º, enunciam-se, exemplificativamente, questões ou litígios sujeitos ou excluídos do foro administrativo. O seu n.º 1 expressa de modo genérico os actos sobre que incide a sua competência material, e os seus n.ºs 2 e 3 materializam algumas excepções àquela competência. Nomeadamente, no que aqui importa, dispõe-se no n.º 1, al. g), competir aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto «Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da junção legislativa».

Porém, a aferição de qual das decisões encerra a solução acertada passa, imperativa e previamente, pela resolução de uma outra questão, qual deva ser a do critério ordenador da competência material.
Ora, para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou, nas doutas palavras de Alberto Reis, é assim que se caracteriza o «modo de ser da lide» (Comentário, 1º, 110.).
Por sua vez, a causa de pedir é o facto jurídico concreto integrante das normas de direito substantivo que concedem o direito, e o pedido a pretensão formulada pelo autor ou pelo reconvinte com vista à realização daquele direito ou à sua salvaguarda (art. 581.º, n.º 4, do CPC).
Como acentua Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, págs. 91.) – citando Redenti – a competência do tribunal afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum,em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.
Mais ensinava que a competência em razão da matéria é a competência das diversas espécies de tribunais, diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação, baseada a definição desta competência na matéria da causa, ou seja, no seu objecto, encarado sob o ponto de vista qualitativo o da natureza da relação substancial pleiteada e que o tribunal regra é o da comarca.
Trata-se de uma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e a demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes (Idem, págs. 91 e 94.).
Assim, para determinar o tribunal competente em razão da matéria para o conhecimento da lide, tem de se atentar, sobretudo, na alegação dos autores e no efeito jurídico pretendido. Entendimento doutrinal que tem vindo a ser aceite pela jurisprudência, assumindo hoje foros de unanimidade (Cfr., por exemplo, os Acs. do STJ de 12/01/94, 22/01/97, 26/06/01, in CJ-STJ, 1994, T1, pág. 38; 1997, T1, pág. 65; e 2001, T2, pág.129, respectivamente; e Ac. do Tribunal de Conflitos de 29/03/11, Proc. n.º 025/10, disponível no sítio do IGFEJ, onde se faz uma resenha jurisprudencial do tema.).
Nesta conformidade, importa, então, passar a caracterizar a relação estabelecida tal como apresentada pelos autores.
E, a primeira coisa que se constata de entre os seus pedidos é pretenderem que o Tribunal lhes reconheça o direito de propriedade sobre a parcela de terreno que identificam. A questão a dirimir traduz-se em mera reivindicação de propriedade privada, cumulada com pedidos de indemnização, enquadrável nos artigos 483.º, 501.º, 1305.º e 1311.º do Código Civil.
Neste tipo de acções são dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio), por um lado, e a restituição da coisa (condemnatio), por outro. Isto mesmo resulta com toda a clareza do disposto no art. 1311.º do referido Código.
Portanto, na presente acção é questão dirimenda central a questão do domínio ou da propriedade por banda dos autores. Não pretendem eles uma indemnização com fundamento em responsabilidade civil extracontratual de uma pessoa colectiva de direito público (al. g) do nº 1 do artigo 4.º do ETAF), mas sim, em primeira sede e a título principal, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a parcela de terreno que identificam, de que a sua ocupação pelo réu é ilícita e como tal a deve restituir, livre e desocupada, surgindo os pedidos de indemnização formulados como ressarcimento de alegados prejuízos que lhes terão advindo como efeito dessa pretensa violação do direito de propriedade, como derivados desse pedido.
Ora, a ‘reivindicatio’ não cabe na previsão do art. 4.º, n.º 1, al. g), do ETAF, não devendo, por isso mesmo, ser de atribuir o conhecimento de tais pedidos à jurisdição administrativa, valendo também aqui a máxima ‘acessorium principale sequitur’.
Acontece que a questão sob análise não é nova, e tem merecido por parte deste Tribunal recorrentes e recentes decisões, de molde a poder afirmar-se a constituição de uma jurisprudência que se vem consolidando tendencialmente unânime no sentido da atribuição da competência à jurisdição comum (Vejam-se, a título de exemplo, os Acórdãos deste Tribunal de Conflitos nºs 46/15 de 4/02/16, 12/15 de 3/06/15, 15/14 de 30/10/14, 13/14, de 19/06/14, 18/13, de 18/12/13, 32/13, de 26/09/13, 12/10, de 09/06/10, e 20/11, de 16/02/12, disponíveis no IGFEJ, e o elenco de decisões neles mencionadas.). Porque dela constitui recente paradigma o Acórdão de 22/04/15, no Proc. n.º 1/15 (Disponível na base de dados do IGFEJ.), em que se suportou a segunda daquelas decisões, dele se passa a transcrever, com devida vénia, o que de mais relevante se afirma neste âmbito:
«Analisada, todavia, a estruturação da petição/pedido, na configuração dada à relação jurídica controvertida, constata-se que os AA visam primordialmente (seja, a título principal) a condenação dos RR – ... uma vez obrigados previamente a reconhecerem que aqueles são donos e legítimos possuidores da totalidade dos prédios identificados e que a sua detenção parcial pelos RR é ilegal, por falta de qualquer título que a legitime – ... a desocupar, esvaziar e restituir aos demandantes os ditos prédios, livres e desonerados de pessoas e bens e no estado em que se encontravam à data da sua ocupação.
Apenas para a hipótese de a restituição não ser possível é que se pede, subsidiariamente, nas várias formulações sucedâneas, a condenação dos RR no pagamento do valor dos terrenos correspondente em dinheiro, para além dos juros legais, ou no justo valor, desde a reserva até à data e, acessoriamente, no pagamento de uma indemnização pela reserva e ocupação desde 1981-1982, e ainda no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, mas tudo sempre ... até à efectiva restituição do imóvel (Sublinhado nosso).
(O cumulado pedido de indemnização por danos morais, comungando embora dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, não tem autonomia a se, antes se perfilando, na economia da acção, como um efeito da pretensa violação do direito de propriedade.
Não se vê razão bastante para que não seja considerado no âmbito da mesma jurisdição comum, que é assim global.
Tal circunstância irreleva, pois, em termos da determinação da competência material do Tribunal).
Ante os factos essenciais que enformam a causa petendi e os pedidos principais/dominantes deduzidos pelos AA (de que tudo o mais depende, afinal), mostra-se delineada uma típica acção de reivindicação - art. 1311.º/l do Cód. Civil.
(A acção de reivindicação, típica manifestação do direito de sequela, tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela - Apud Antunes Varela/Pires de Lima, em anotação ao art. 1311.º do Cód. Civil Anotado, Vol. 111, pg. 100).
É perante esta equação que se determina, como se disse, a competência do Tribunal, sendo geralmente entendido e aceite que a tutela dos direitos correspondentes cabe na competência material dos Tribunais comuns».
Por todo o exposto, torna-se despicienda a tessitura de quaisquer outros argumentos, e, no acatamento desta jurisprudência firmada neste Tribunal, para salvaguarda da segurança jurídica das decisões judiciais, do princípio da igualdade e da imagem externa do sistema judiciário, considera-se excluída a competência da jurisdição administrativa.

3. Decisão

Nestes termos, decide-se considerar competente, em razão da matéria, a jurisdição comum para o conhecimento da pretensão formulada pelos autores.

Sem custas.

Lisboa, 7 de Julho de 2016. – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano (relatora) – José Inácio Manso Rainho – Ana Paula Soares Leite Martins Portela - Gabriel Martim dos Anjos Catarino – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – João Moreira Camilo.