Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:048/19
Data do Acordão:01/19/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P27050
Nº do Documento:SAC20210119048
Data de Entrada:10/07/2019
Recorrente:A............, SA NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE AS VARAS CÍVEIS DE LISBOA — 5ª VARA CÍVEL (ATUALMENTE TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LISBOA - JUIZ 15) E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA U. O. 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 48/19

Acordam no Tribunal de Conflitos:

I - Relatório

Em 15 de janeiro de 2013, A…………, SA, instaurou uma ação declarativa de condenação com processo ordinário contra Ambilital- Investimentos no Alentejo, EIM, num Tribunal Cível que se veio a declarar incompetente para conhecer da causa, por considerar serem competentes os tribunais administrativos, decisão que foi confirmada pelo Tribunal da Relação, sustentando que estava em causa a verificação da existência e extensão de uma dívida do réu emergente do fornecimento de bens e serviços, enquadrando-se nos contratos públicos, bem como na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.° do ETAF.
Os presentes autos transitaram então da jurisdição comum para a jurisdição administrativa.
Chamados a pronunciar-se sobre a questão suscitada na presente ação, também os tribunais administrativos se consideraram incompetentes para a julgar, entendendo que a causa de pedir na ação não envolve qualquer litígio administrativo, tendo sido configurada pela autora como exclusivamente decorrente do contrato de factoring, um contrato de direito privado.
Não tendo o tribunal que conheceu da questão da competência remetido oficiosamente o processo ao Presidente do tribunal competente para decidir o conflito, o Supremo Tribunal Administrativo, vem, pois, a autora, requerer, ao abrigo do artigo 111.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a resolução de conflito negativo de jurisdição.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido de serem considerados competentes para a ação os tribunais da jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF.

Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido ao Tribunal de Conflitos para julgamento.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

1. A questão a decidir é a de saber qual a jurisdição competente, em razão da matéria, para decidir a condenação do réu ao pagamento de faturas, correspondentes a créditos de empresa adquiridos pela autora, através de um "contrato de factoring", à "B…………, SA", fornecedora de bens e serviços no âmbito de uma empreitada, que emitiu tais faturas sobre o réu, "Ambilital- Investimentos no Alentejo, EIM".

2. Nos termos definidos pelas disposições conjugadas do artigo 64.º do Código de Processo Civil e do artigo 40.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei 63/2013, de 26 de agosto, são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Sendo residual a competência dos tribunais judiciais, a mesma estará excluída se a competência para julgar a causa estiver acometida a outra jurisdição, como seja - por ser a que importa ao caso sub judice - a dos tribunais administrativos e fiscais.
Ora, a este propósito, dispõe a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 212°, n.º 3, que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir litígios emergentes de relações administrativas e fiscais».
Em conformidade com este comando constitucional, e no desenvolvimento do mesmo, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n° 13/2002, de 29-02, preceitua que «os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais» (artigo 10, n.º 1).
Assim, a pedra de toque de delimitação da jurisdição administrativa, tendo deixado de estar - ao invés do que sucedia na redação original do ETAF, aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27.04 - na destrinça entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, centra-se, ora, no conceito de relação jurídica administrativa e de função administrativa.
Relação jurídico-administrativa é «aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido» (Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 2000, p. 79).
Ou, nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, p. 815), a qualificação como relações jurídicas administrativas ou fiscais "transporta duas dimensões caracterizadoras: as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal".
Por sua vez, no âmbito da jurisprudência firmada por este Tribunal de Conflitos, na relação jurídica administrativa e de função administrativa "avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta actua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma actividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal" - neste sentido, cfr., entre muitos, acórdãos de 16-02-2012 e de 08-11-2012, ambos disponíveis in www.itij.pt.
Do regime do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) resultou uma ampliação das competências dos tribunais administrativos, em face do Decreto-Lei n° 129/84, de 27 de abril.
O artigo 4.º do ETAF, na redação da Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro, passou a dispor nas suas alíneas e) e f) do n.º 1, que é atribuída competência aos Tribunais Administrativos para a apreciação de:
«e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;
f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».
Na redação da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de dezembro, a alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º passou a ter a seguinte redação: «As questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objeto passível de ato administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspetos específicos do respetivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que atue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».
Este normativo atribui, assim, à jurisdição administrativa competência para apreciar questões relativas a: i) contratos administrativos típicos (a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam especificamente aspetos de natureza substantiva); ii) contratos atípicos com objeto passível de ato administrativo (que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados através da prática, pela entidade pública contratante, de um ato administrativo unilateral); iii) contratos atípicos com objeto passível de contrato de direito privado que as partes tenham expressa e inequivocamente submetido a um regime substantivo de direito público (vide Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, pp. 38/41, Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, pp. 104/107, e Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, p. 21).
Nas palavras de Esteves de Oliveira (Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, Anotados, I, p. 114.), «Subsumem-se na justiça administrativa, em primeiro lugar, os contratos expressamente qualificados pela lei como administrativos (são os enunciados no artigo 178°, n.º 2, do CPA e outros avulsos da mesma natureza); depois, os contratos de objecto passível de acto administrativo, ou seja, aqueles que versam sobre a produção de efeitos jurídicos que a lei previra serem atingidos mediante a prática de um acto administrativo (são os contratos cuja legitimidade se encontra no artigo 179° do CPA); em seguida, os contratos cujo regime substantivo esteja especificamente sujeito a normas de direito público - mais uma vez os do artigo 178°, n.º 2, do CPA - e, também, de quaisquer outros contratos regulados, em aspectos "substantivos" do seu regime, por normas de direito público; finalmente, "aqueles contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito administrativo, mesmo que não houvesse lei a prevê-lo"».
Em posteriores alterações legislativas (Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10 e Lei n.º 114/2019, de 12/09), o artigo 4.º do ETAF passou a incluir os contratos administrativos na alínea e), que tem, atualmente, a seguinte redação:
«e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes»,

3. É pacífico o entendimento de que o pressuposto processual da competência se determina em função da ação proposta, tanto na vertente objetiva - atinente ao pedido e à causa de pedir -, como na vertente subjetiva - respeitante às partes -, importando essencialmente para o caso ter em consideração a relação jurídica invocada.
Para o efeito, a Autora peticiona ao réu, uma pessoa coletiva de direito público, o pagamento de faturas correspondentes a créditos que adquiriu, ao abrigo de um contrato de factoring, a uma sociedade que prestou serviços ao réu, no âmbito de contratos de empreitada.
O contrato de "factoring" é um contrato de direito privado, legalmente definido pelo artigo 2.°, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 171/95, de 18 de julho (com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.º 186/2002, de 21 de agosto, n.º 157/2014, de 24 de outubro e n.º 100/2015, de 2 de junho), que «consiste na transferência dos créditos a curto prazo do seu titular (cedente, aderente) para um factor (cessionário), derivados da atividade habitual do primeiro, de fornecimento de bens ou prestação de serviços a terceiros (devedores cedidos), incumbindo-se o cessionário (o factor) da gestão e cobrança dos créditos, podendo assumir o risco de insolvência dos devedores cedidos e antecipar, total ou parcialmente, o valor dos créditos cedidos, tudo mediante o pagamento pelo cedente, de uma retribuição» (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-03-2019, processo n.º 24142/16.1T8PRT.P1.S1).
Segundo o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, «No raio de acção da estrutura do contrato de factoring, encontram-se cessões de créditos, sendo inteiramente aplicável a disciplina dos artºs. 577º e seguintes do Código Civil, nomeadamente, que se verifica uma sucessão do factor (cessionário) na titularidade dos créditos cedidos, e que ocorre a oponibilidade ao factor (cessionário) das excepções fundadas na relação subjacente, sublinhando-se, neste particular, que a oponibilidade das excepções fundadas na relação subjacentes, deve reportar-se, apenas e só, àquelas ocorridas antes da notificação da cessão».
No mesmo sentido, tem entendido a doutrina (cfr. Rui Pinto Duarte, "Notas sobre o Contrato de Factoring", in Novas Perspectivas do Direito Comercial, Coimbra, 1988, p. 144), que «(...) quando observado ao longo da sua execução, o contrato de factoring pode ser descrito do seguinte modo:
a) uma das partes, conhecida por factor, cobra créditos da contraparte (a que podemos chamar cliente) nascidos de vendas de bens ou serviços feitos por esta; por este serviço de cobrança, o cliente paga uma quantia calculada em função do valor dos créditos que indica para cobrança;
b) o factor entrega ao cliente, mediante solicitação deste, quantias correspondentes ao valor dos créditos a cobrar, não aguardando a data do respectivo vencimento; esta antecipação de fundos tem como contrapartida o pagamento de juros;
c ) o factor, também mediante solicitação do cliente, assume o risco de os créditos a cobrar não serem pagos, assunção de risco essa que é obviamente também remunerada (ainda que essa remuneração possa não ser discriminada relativamente à do serviço de cobrança).
Assim delineado, o contrato de factoring, reveste a natureza (não obstante a existência de naturais divergências na doutrina no que concerne à anterioridade ou ulterioridade dos créditos) de um negócio de promessa de cessão de créditos ou de cessão de créditos futuros, pelo que, na ausência de cláusulas contratuais e no silêncio do Dec.lei n.º 171/95, lhe são aplicáveis as regras da cessão de créditos (artigos 577º e seguintes do C.Civil)».
Caracterizam o referido contrato as circunstâncias de: i) o contrato nascer com a aquisição, pelo factor, dentro de um prazo determinado, de créditos existentes na esfera jurídica do aderente; ii) mediante a aquisição de créditos não cobrados, o factor assume-se como uma entidade que adianta meios financeiros ao cliente; iii) com a aquisição de instrumentos creditícios em dívida e de cobrança não certa, o factor assume os riscos económicos e de atividade adstritos aos devedores dos créditos cedidos (cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-01-2013, Revista n.º 345/03.8TBCBC.G1.S1, e de 13-09-2012, Revista n° 384/09.5TVPRT.P1.S1).
Conforme os citados acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, advêm para o factor as seguintes obrigações: i) adquirir os créditos (ou a prestação de serviços) nas condições contratualmente acordadas; ii) pagar ao aderente os créditos cedidos, de acordo com o plano de aquisição aprovado; iii) outorgar a antecipação de fundos ao aderente, pela forma convencionada; iv) proceder à cobrança dos créditos em cujos direitos se haja subrogado, de acordo e pela forma como o cedente havia estabelecido com o devedor.
E, finalmente, para o aderente decorrem do contrato as seguintes obrigações: i) informar o factor do comportamento dos devedores cedidos e contribuir para a cobrança dos créditos cedidos; ii) remeter ao factor o que tiverem pago diretamente os devedores cedidos, a fim de cumprir o compromisso de reembolso pactuado; iii) ceder ao factor os documentos e instrumentos de conteúdo creditício objeto da aquisição.
Deve notar-se que o devedor cedido, no presente caso, o réu, não participa no acordo de vontades, apesar de, como resulta das regras próprias da cessão de créditos (artigo 583º do Código Civil), o acordo só produzir efeitos em relação a ele, conquanto que lhe seja notificado, ainda que extrajudicialmente, ou desde que aceite (de forma tácita ou expressa) a cessão de créditos operada.

4. Contudo, o pedido e a causa de pedir não se baseiam exclusivamente no contrato de factoring, contrato de direito privado que assenta estruturalmente na cessão de créditos prevista no artigo 577.º do Código Civil e no qual o réu nem sequer interveio.
O pedido reporta-se ao pagamento do preço do fornecimento dos bens e da prestação de serviços contratados pelo réu no âmbito de contratos de empreitada (fonte dos créditos cedidos à Autora, sociedade de factoring) celebrados com a sociedade aderente, B…………, SA.
A causa de pedir decorre da relação jurídica que gerou os créditos adquiridos pela Sociedade Autora, que consiste numa relação jurídica administrativa, que resulta de um contrato de empreitada de obras públicas, celebrado entre o réu, uma empresa pública intermunicipal, pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial (artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 58/98, de 18 de agosto), e uma sociedade de direito privado, "B…………, SA", fornecedora de bens e serviços no âmbito de uma empreitada.
O facto de um dos elementos da causa de pedir se basear no contrato de factoring, não significa que a relação jurídica em que se funda esse direito, e que importa conhecer, seja de direito privado. O contrato de factoring não constitui um negócio jurídico isolado e abstrato, tendo, por trás de si, um outro negócio, o negócio constitutivo do direito de crédito cedido. Assim, o contrato de factoring tem por objeto a transmissão de uma obrigação de pagamento fundada numa anterior relação negocial que lhe é causal, sendo-lhe aplicável o estatuído no artigo 585.º do Código Civil. Em consequência, nos termos desta disposição, o devedor (aqui réu) pode opor ao cessionário (a sociedade de factoring) todos os meios de defesa que lhe seria lícito opor ao cedente (o cliente), como se a transmissão do crédito não se tivesse operado (cf. acórdão deste Tribunal de Conflito, de 19-12-2012, proferido no Conflito 020/12). Tal significa, conforme Acórdão de 26-06-2014 (Conflito n.º 6/2014), que, «apesar da cedência do crédito, não ocorre a extinção da obrigação de direito público (que no presente caso emergia de um contrato de empreitada) e o surgimento, em seu lugar, de uma nova obrigação de direito privado».
O Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão, de 2 de março de 2017 (proc. n.º 190/13.2T2STC.E1.S1), afirma, no mesmo sentido que: «O contrato de factoring não constitui um negócio jurídico abstracto, tendo sempre por de trás o negócio constitutivo do direito de crédito transmitido. Sendo um negócio baseado estruturalmente na figura da cessão de créditos, são oponíveis ao factor todos os meios de defesa que poderiam ser invocados pelo devedor contra o seu credor, ainda que aquele os ignorasse (art. 585.º do CC)».
Como resulta do regime jurídico exposto, com o contrato de "factoring" ocorre uma transmissão (cedência de créditos) e não uma novação. O dever de pagamento do réu continua, portanto, a ser um dever de pagamento emergente de um contrato de direito público, in casu, um contrato administrativo de empreitada de obras públicas.
Sendo assim, conclui-se que o crédito peticionado pela autora advém, não do contrato de factoring, mas do contrato administrativo de empreitada, sendo este, aliás, o único em que interveio o réu.

5. O contrato de empreitada dos autos é pacificamente aceite como de obras públicas.
Segundo o 343.º, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos (Decreto-Lei 18/2008, de 29 de janeiro, diploma que transpôs para o nosso ordenamento a Diretiva 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de março de 2004, relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos de empreitada de obras públicas, dos contratos públicos de fornecimento e dos contratos públicos de serviços), «Entende-se por empreitada de obras públicas o contrato oneroso que tenha por objeto quer a execução quer, conjuntamente, a conceção e a execução de uma obra pública que se enquadre nas subcategorias previstas no regime de ingresso e permanência na atividade de construção». Por sua vez, dispõe o n.º 2 do mesmo preceito, «Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se obra pública o resultado de quaisquer trabalhos de construção, reconstrução, ampliação, alteração ou adaptação, conservação, restauro, reparação, reabilitação, beneficiação e demolição de bens imóveis executados por conta de um contraente público».
Um contrato de empreitada de obras públicas é, assim, o contrato administrativo, celebrado mediante o pagamento de um preço, independentemente da sua forma, entre um dono de obra pública e um empreiteiro de obras públicas e que tenha por objeto quer a execução quer conjuntamente a conceção e a execução de obras públicas.

Assumem a categoria de «dono de obra pública», nos termos do artigo 2.º, n.º 1, o Estado, as autarquias locais, os institutos públicos, as fundações públicas, as associações públicas e, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, quaisquer pessoas coletivas que, independentemente da sua natureza pública ou privada: i) tenham sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, entendendo-se como tal aquelas cuja atividade económica se não submeta à lógica do mercado e da livre concorrência; ii) sejam maioritariamente financiadas pelas entidades referidas no número anterior, estejam sujeitas ao seu controlo de gestão ou tenham um órgão de administração, de direção ou de fiscalização cuja maioria dos titulares seja, direta ou indiretamente, designada por aquelas entidades.
A lei considera contraentes públicos "quaisquer entidades que, independentemente da sua natureza pública ou privada, celebrem contratos no exercício de funções materialmente administrativas" (artigo 3.º, n.º 2).
O réu é, assim, uma pessoa coletiva de direito público, pelo que está sujeito à disciplina do Código dos Contratos Públicos (Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro, com as subsequentes alterações), entendendo-se por contratos públicos "todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código".

6. Do exposto resulta que um dos sujeitos, o réu, atuou nas vestes de autoridade pública, investido de ius imperium, com vista à realização do interesse público e que as partes expressamente submeteram o contrato de empreitada, que originou os créditos objeto do contrato de factoring, a um regime substantivo de direito público (artigos 1.º, 2.° e 16.°, do Código dos Contratos Públicos).
Os contratos de empreitada de obras públicas hão de considerar-se incluídos nas alíneas e) e f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF (na redação da Lei n.º 59/2008, de 11 de setembro) e na alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do mesmo Estatuto (na redação introduzida pelo Decreto-lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro).
Conforme orientação do Supremo Tribunal de Justiça, no citado acórdão de 2 de março de 2017, «Tendo-se demonstrado que, por via de um contrato de factoring, a autora adquiriu um crédito que teve origem em empreitadas de obras públicas que foram precedidas de procedimentos concursais encetados pelo réu e respeitando as facturas cujo pagamento é peticionado à execução dos correspondentes contratos (os quais se regem por normas de direito público), é de concluir que a causa se insere na previsão das als. e) e f) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, carecendo, consequentemente, os tribunais judiciais de competência em razão da matéria para dirimir o litígio», solução transponível para estes autos dada a similitude da questão.
Em consequência, tendo a obrigação que é objeto da pretensão da Autora a sua fonte em contrato de direito público, os litígios a ela relativos devem ser dirimidos nos Tribunais Administrativos - uma vez que, no presente caso, como vimos, é indiscutível a natureza pública do contrato de empreitada subjacente (neste sentido, entre outros, cfr. Acórdão deste Tribunal de Conflitos, de 16-01-2014, proferido no processo n.º 27/2013).
São, assim, competentes os Tribunais Administrativos para resolver um litígio emergente da pretensão de exigir o pagamento de créditos devidos por uma entidade pública, em virtude da execução de um contrato de empreitada de obras públicas, e transmitidos por meio de um contrato de factoring ao seu atual detentor.

III - Decisão

Pelo exposto, os Juízes do Tribunal de Conflitos acordam em julgar competente, em razão da matéria, para dirimir o litígio em discussão nos autos, a jurisdição administrativa.
Sem custas.
Lisboa, 19 de janeiro de 2021. - Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor (relatora)
Atesto o voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos:
Juiz Conselheiro Dr. José Augusto Araújo Veloso
Juíza Conselheira Dra. Maria da Conceição Simão Gomes
Juíza Conselheira Dra. Maria do Céu Dias Rosa das Neves
Juiz Conselheiro Dr. António dos Santos Abrantes Geraldes
Juiz Conselheiro Dr. Jorge Artur Madeira dos Santos

Maria Clara Sottomayor (Relatora)