Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:050/19
Data do Acordão:06/25/2020
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JÚLIO GOMES
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P26101
Nº do Documento:SAC20200625050
Data de Entrada:10/28/2019
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO DO TRABALHO DE CASTELO BRANCO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO
AUTOR: A..........
RÉU: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE........... (E OUTROS)
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 50/19


A…………. veio interpor ação especial emergente de acidente de trabalho contra B…………Companhia de Seguros, S.A e Santa Casa da Misericórdia de ……………..….

O Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco (Juízo do Trabalho de Castelo Branco) declarou-se materialmente incompetente, afirmando (f. 186) que “tendo-se já concluído que entre a Autora e a Santa Casa não existia qualquer contrato de trabalho ou equiparado ou uma situação de aprendizagem, e que por isso não estamos em presença de um acidente de trabalho, nessa medida forçoso se torna também concluir que o Tribunal não dispõe de competência em razão da matéria para o conhecimento das questões subjacentes ao evento infortunístico relatado nos autos”. Em abono deste entendimento cita o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.02.2015 em cujo sumário se pode ler que “o Tribunal do Trabalho não dispõe de competência, em razão da matéria, para conhecer de um acidente sofrido no âmbito de execução de um contrato emprego/Inserção celebrado ao abrigo da portaria 128/2009 de 30/01.


Posteriormente A………………. interpôs ação administrativa sob a forma de processo comum contra a Santa Casa da Misericórdia de …………… e o Instituto do Emprego e Formação Profissional.

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, por seu turno, considerou-se materialmente incompetente, tendo determinado a remessa dos autos para o Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco - Juízo de Trabalho. Na fundamentação da sentença refere-se que a competência dos tribunais judiciais para conhecer de acidentes sofridos por trabalhadores beneficiários de Rendimento Social de Inserção tem sido afirmada unanimemente pela jurisprudência do Tribunal de Conflitos, citando a propósito os Acórdãos de 19/10/2017, Processo n.º 15/17 e de 25/01/2018, Processo n.º 53/17.

O Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco considerou existir um conflito negativo de jurisdição, tendo pedido a resolução do mesmo ao Tribunal dos Conflitos.

É, pois, este Conflito Negativo de Jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco - Juízo do Trabalho de Castelo Branco e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco que importa decidir.

O Tribunal dos Conflitos já se pronunciou, em múltiplas ocasiões, quanto à competência para conhecer de acidentes de trabalho sofridos por trabalhadores que realizam trabalhos socialmente necessários ao abrigo de medidas de “contrato emprego-inserção” e de contrato emprego-inserção+”, regulamentadas pela Portaria n.º 128/2009 de 30 de janeiro, podendo, a título de exemplo, mencionar-se os Acórdãos proferidos a 19-10-2017, no processo n.º 015/17, relatado pelo Sr. Conselheiro António Leones Dantas, a 25-01-2018, no processo n.º 053/17, relatado pela Sr.ª Conselheira Maria Benedita Urbano e a 23-05-2019, no processo n.º 040/17, relatado pela Sr.ª Conselheira Maria do Céu Neves.

Em todos esses processos se concluiu que não se pode falar nesta situação da existência de trabalho em funções públicas em sentido próprio, designadamente, não se pode afirmar que daquele tipo de contratos (contrato emprego-inserção+) decorra um vínculo de emprego público, designadamente face ao artigo 6.º da LGTFP (Lei n.º 35/20 14 de 20 de junho). Este preceito no seu n.º 1 estabelece que o trabalho em funções públicas pode ser prestado mediante vínculo de emprego público ou contrato de prestação de serviços “nos termos da presente lei”, indicando quais as modalidades do vínculo de emprego público (o contrato de trabalho em funções públicas, nomeação e comissão de serviço). Por outro lado, o artigo 10º com a epígrafe “prestação de serviço” dispõe no seu n.º 1 que “o contrato de prestação de serviço para o exercício de funções públicas é celebrado para a prestação de trabalho em órgão ou serviço sem sujeição à respetiva disciplina e direção, nem horário de trabalho”, prevendo no seu n.º 2 as modalidades de contrato de tarefa e de avença. Prevê igualmente a nulidade dos contratos de prestação de serviço para o exercício de funções públicas em que exista subordinação jurídica, não podendo os mesmos dar origem à constituição de um vínculo de emprego público. Face ao exposto há que concluir, na esteira dos já mencionados Acórdãos proferidos por este Tribunal sobre a mesma questão que o contrato emprego-inserção+ não dá origem à constituição de um destes vínculos, não podendo ser subsumido no conceito de trabalho em funções públicas.

Assim, não é tão-pouco aplicável ao caso dos autos, o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, previsto no Decreto-Lei n.º 503/99 de 20 de novembro (com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2008 de 11 de setembro). Com efeito, o artigo 2.º n.º 1 deste diploma estabelece que “o disposto no presente decreto-lei é aplicável a todos os trabalhadores que exercem funções públicas, nas modalidades de nomeação ou de contrato de trabalho em funções públicas, nos serviços de administração direta e indireta do Estado”, sendo que o n.º 4 do mesmo artigo 2.º remete os trabalhadores que exerçam funções em entidades públicas empresariais ou noutras entidades não abrangidas pelos números anteriores para o regime dos acidentes de trabalho previsto no Código do Trabalho.

Destarte, os tribunais administrativos e fiscais carecem de competência para conhecer do acidente a que se referem os presentes autos.

Com efeito, e como se pode ler no sumário do Acórdão proferido no processo n.º 040/17, “o acidente em causa preenche todas as condições para ser considerado como um acidente de trabalho, nos termos da Lei n.º 98/2009 de 4 de setembro, e dada a relação do regime destes acidentes com o regime jurídico do contrato de trabalho, por força do disposto no artigo 4.º, n.º 4, alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência para conhecer do presente processo deve ser atribuída aos tribunais judiciais”. Conclusão que vale igualmente para os presentes autos.

Decorre, de resto, da Portaria 128/2009 que deste contrato emprego-inserção+ resulta uma relação de trabalho (embora não uma relação de emprego) com alguma subordinação, ainda que restrita, e com uma contrapartida pecuniária. Com efeito, e apesar da especial precariedade desta relação que não pode visar a ocupação de postos de trabalho (artigo 5.º, n.º 1, alínea b), o trabalhador ou trabalhadora fica sujeito ao regime da duração e horário de trabalho, descansos diário e semanal, feriados, faltas, segurança e saúde no trabalho aplicável à generalidade dos trabalhadores da entidade promotora (artigo 9.º, n.º 1). Por outro lado, “a entidade promotora não pode exigir ao beneficiário o exercício de atividades não previstas no projeto” (artigo 9.º, n.º 7) o que, se por um lado, sublinha o caráter limitado da subordinação, por outro, está de acordo com o facto de que a entidade promotora pode resolver o contrato, mormente quando o beneficiário desobedecer às instruções sobre o exercício de trabalho socialmente necessário (artigo 11.º, n.º 2, alínea d), estando o beneficiário igualmente sujeito ao dever de assiduidade. Também a bolsa paga ao beneficiário pela entidade promotora parece ter uma certa natureza retributiva, como já destacou o Acórdão deste tribunal proferido a 19-10-2017, no processo n.º 015/17 (António Leones Dantas), ainda que comparticipada pelo IEFP.

Mas mesmo que se entendesse que certos traços deste contrato - por exemplo, a possibilidade reconhecida à entidade de promotora de resolver o contrato mesmo na presença de faltas justificadas (artigo 11.º, n.º 2, alínea c) - não permitiriam a sua qualificação como contrato de trabalho, ainda que especial, tal não seria, de todo, obstáculo à aplicação da Lei dos Acidentes de Trabalho.

Com efeito o âmbito de aplicação desta não se restringe às situações de trabalho subordinado. Resulta inequivocamente que o regime previsto na Lei n.º 98/2009 “abrange o trabalhador por conta de outrem de qualquer atividade, seja ou não explorada com fins lucrativos” (artigo 3.º, n.º 1), devendo sempre que a referida lei não imponha entendimento diferente presumir-se que o trabalhador está na dependência económica da pessoa em proveito da qual presta serviços.

Mas a Lei vai ainda mais longe e, além destas situações de dependência económica, estende o seu âmbito de aplicação às situações do praticante, aprendiz e estagiário e a situações de formação profissional que define de modo muito amplo, como tendo por “finalidade a preparação, promoção e atualização profissional do trabalhador, necessária ao desempenho de funções inerentes à atividade do empregador”.

Ora um dos objetivos do trabalho socialmente necessário, segundo o artigo 3.º, alínea a) da Portaria n.º 128/2009 consiste em “promover a empregabilidade de pessoas em situação de desemprego, preservando e melhorando as suas competências socioprofissionais, através da manutenção do contacto com o mercado de trabalho” (sublinhado nosso), o que claramente se aproxima da noção de promoção profissional.

Acresce que é a própria Portaria n.º 128/2009 que impõe à entidade promotora a celebração de um seguro “que cubra os riscos que possam ocorrer durante e por causa do exercício das atividades integradas num projeto de trabalho socialmente necessário” (artigo 14.º n.º 3). Esta menção aos riscos que ocorram “durante e por causa” do exercício das referidas atividades deve ser lida à luz do conceito de acidente de trabalho que decorre dos artigos 8.º e 9.º da LAT que é aplicável a acidentes como o dos autos, até porque um acidente de trajeto é ainda um acidente ocorrido “por causa” do trabalho e tal menção deve ser lida atendendo à Constituição da República Portuguesa e ao seu artigo 59º, n.º 1, alínea f).


Decisão: Termos em que se decide resolver o presente conflito negativo de jurisdição atribuindo a competência para conhecer do presente processo aos Tribunais Judiciais.

Sem custas.

Lisboa, 25 de junho de 2020.

O Relator declara que os Conselheiros Adjuntos -Conselheira Dr.ª Maria Benedita Malaquias Pires Urbano, Conselheiro Dr. Francisco Manuel Caetano, Conselheira Dr.ª Ana Paula Soares Leite Martins Portela, Conselheiro Dr. Pedro Lima Gonçalves, Conselheiro Dr. José Francisco Fonseca da Paz - não assinaram, mas votaram em conformidade com o projeto, ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio.
Júlio Manuel Vieira Gomes
(O Relator)

Lisboa, 25 de junho de 2020. – Júlio Manuel Vieira Gomes (relator) – Maria Benedita Malaquias Pires Urbano – Francisco Manuel Caetano – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – António Pedro de Lima Gonçalves – José Francisco Fonseca da Paz.