Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:019/20
Data do Acordão:04/27/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:Incumbe aos tribunais judiciais o julgamento de uma providência cautelar em que se requer a imediata restituição à requerente das embarcações identificadas no requerimento inicial que são alegadamente de sua propriedade, visto que a questão dos autos emerge de uma relação no âmbito do direito privado.
Nº Convencional:JSTA000P27577
Nº do Documento:SAC20210427019
Data de Entrada:07/24/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE AVEIRO JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ÍLHAVO — JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU
Autor: A..............., LDA.
Réu: APA — ADMINISTRAÇÃO DO PORTO DE AVEIRO, SA E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 19/20


Acordam no Tribunal dos Conflitos

A…………., Lda., identificada nos autos, intentou no Tribunal Judicial de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Ílhavo, procedimento cautelar não especificado, nos termos do art.º 362.º do CPC, contra APA – Administração do Porto de Aveiro, SA (APA), B……, Lda e C…….., requerendo que seja ordenada “a imediata restituição à requerente das embarcações identificadas em 1º deste requerimento inicial”.
Em síntese, a requerente alega ser dona e legítima proprietária de três embarcações que identifica no n.º 1 da p.i. e que, nos meses de Maio e Julho de 2017, as entregou aos 2º e 3º requeridos para reparação, nas instalações destes. A 2ª requerida era uma sociedade comercial que se dedicava ao comércio e prestação de serviços náuticos e o 3º requerido o seu gerente. As referidas instalações eram propriedade da 1ª Requerida e estavam arrendadas à 2ª requerida e esta terá sido daí despejada por falta de pagamento das rendas, tendo abandonado as instalações e aí deixado as embarcações em causa, as quais ficaram na posse, sob a guarda e responsabilidade da 1.ª requerida.
Acrescentou que, apesar de interpelada para efetuar a entrega à requerente, sua legítima proprietária, aquela nunca as entregou ou sequer manifestou vontade de as entregar. Concluiu que a APA mantém a posse não autorizada das três embarcações, privando-a do seu uso e fruição.
Em Oposição, a APA invocou a incompetência material do Tribunal e a impropriedade do meio processual e, em impugnação, defendeu desconhecer e não ter sido provado se as embarcações são propriedade da requerente.
Em resposta às excepções, a requerente pugnou pela improcedência da excepção de incompetência material afirmando que nunca contratou com a APA e que esta está no processo apenas por estar de facto na posse das embarcações e não pela existência de qualquer relação administrativa.
Em 10.01.2020, no Juízo de Competência Genérica de Ílhavo do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, foi proferida decisão (fls. 67/70) a julgar aquele Tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação do procedimento cautelar, por entender “que considerando os pedidos formulados nos presentes autos – entrega de embarcações e motores e indemnização pela sua privação -, sem prejuízo do acertamento do meio processual utilizado, e os factos em que os mesmos radicam – a sua posse administrativa pelo primeiro requerido – não obstante o motivo pelo qual foram objecto da mesma e a eventual responsabilidade da segunda e terceiro requeridos, verifica-se que não podem ser apreciados por este Tribunal por respeitarem a atos praticados no uso dos poderes de autoridade administrativa do primeiro”.
Remetidos os autos ao TAF de Aveiro, a requerente juntou requerimento inicial de providência cautelar aperfeiçoado pedindo a final que seja ordenada “a imediata restituição à requerente das embarcações identificadas”.
Em 11.05.2020, este Tribunal veio a julgar-se incompetente em razão do território, determinando a remessa dos autos ao TAF de Viseu.
Por sua vez, o TAF de Viseu, por decisão de 27.06.2020 (fls. 219/228), veio a julgar-se materialmente incompetente para apreciar a presente providência cautelar. Apoiando-se no Ac. do Tribunal dos Conflitos n.º 01/17, de 24.05.2017, concluiu que a causa de pedir que fundamenta a pretensão resulta de um contrato de depósito regulado pelo art. 1185º do CC, relativamente aos 2º e 3º requeridos; no que respeita à 1ª Requerida, a causa de pedir prende-se exclusivamente com a discussão do direito de propriedade das embarcações previsto nos artigos 1302º e seguintes do Código Civil. Concluindo que “o objecto da presente lide se prende com a existência de relações materiais de natureza civilística, ou seja, do foro estritamente privado, sem que se verifique qualquer actuação daquela entidade no uso de prerrogativas de poder público, para com a Requerente”.
Recebidos os autos neste Tribunal dos Conflitos, as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019. O requerido C…………… veio pugnar pela atribuição da competência ao Tribunal Judicial de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Ílhavo (fls. 245).
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer (fls. 248 a 250) no sentido de que a competência para apreciar a providência cautelar deverá ser atribuída aos tribunais da jurisdição comum.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212º, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Da análise do articulado inicial resulta que, através do presente procedimento cautelar instaurado contra os três requeridos, a requerente pretende que lhe sejam restituídas as embarcações de que alega ser proprietária. Embora invoque prejuízos não formula um pedido de indemnização e não invoca responsabilidade solidária nem pede a condenação solidária dos requeridos, não configurando qualquer relação solidária. Não está aqui em causa um litígio sobre responsabilidade civil extracontratual sujeito ao regime da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Por outro lado, a existir uma relação jurídica administrativa ou exercício de poderes de autoridade só tal se verificaria entra a 1ª e os outros requeridos, sendo a requerente alheia à mesma, como ela própria reconhece. Não está também em causa a interpretação de qualquer contrato sujeito normas de direito administrativo.
Tomando em consideração o pedido e a causa de pedir, concluímos que a questão dos autos não emerge de qualquer relação jurídica administrativa, mas de uma relação no âmbito do direito privado devendo, por isso, ser conhecida pelos tribunais comuns.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente providencia cautelar a jurisdição comum, no caso o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Competência Genérica de Ílhavo.
Sem custas.

Nos termos e para os efeitos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13/3, a relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STJ, Conselheira Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza tem voto de conformidade.

Lisboa, 27 de Abril de 2021

Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa