Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:021/16
Data do Acordão:10/20/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FONSECA DA PAZ
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL.
CONCESSIONÁRIA.
ACIDENTE DE VIAÇÃO.
DEVER DE VIGILÂNCIA.
Sumário:I – Resulta do art.º 4.º, n.º 1, al. h), do ETAF, na redacção introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 2/10, que compete à jurisdição administrativa apreciar os litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas públicas.
II – Nos termos do art.º 1.º, n.º 5, do regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, as disposições que regulam a responsabilidade civil das pessoas colectivas de direito público por danos decorrentes do exercício da função administrativa são aplicáveis à responsabilidade das pessoas colectivas de direito privado por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
III – Atento aos citados preceitos legais, a jurisdição administrativa é a competente para conhecer de uma acção onde se pede a condenação da concessionária de uma auto-estrada na indemnização pelos danos materiais resultantes de um acidente de viação ocorrido nesta via, provocado pela entrada e circulação na mesma de um animal em consequência da omissão de cumprimento de deveres que incumbiam à concessionária nos termos do contrato de concessão.
Nº Convencional:JSTA000P21033
Nº do Documento:SAC20161020021
Data de Entrada:06/23/2016
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE VILA REAL,VILA POUCA DE AGUIAR, INSTÃNCIA LOCAL,SECÇÃO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA - J1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE MIRANDELA.
AUTORA: A........, S.A.
RÉU: B........ - ...........,S.A.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DE CONFLITOS:



1. “A……, SA”, intentou, em 21/6/2013, contra a “B……., SA”, acção declarativa com processo comum, sob a forma sumaríssima, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe a quantia de €1.536,83, acrescida dos juros de mora vincendos, calculados à taxa de 4%, desde a data da propositura da acção até efectivo e integral pagamento.
Como fundamento da sua pretensão, alegou, em síntese, que se dedica à actividade seguradora e que, no exercício da mesma, celebrou, com C……, contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ……., através do qual assegurou a cobertura dos danos sofridos pelo veículo automóvel de matricula …….., sendo que, no dia 5 de Março de 2012, cerca da 1.00 hora, quando este veículo circulava na A7, no sentido Guimarães – Vila Pouca de Aguiar, conduzido pelo referido C……, embateu num animal de pequeno porte que, súbita e imprevisivelmente, apareceu, completamente desorientado, na faixa de rodagem por onde circulava tal veículo, o qual, em consequência, sofreu danos que foram por ela suportados, no montante de €1.342,95, tendo ainda despendido a quantia de €177,20 na regularização do sinistro.
Por decisão de 8/1/2015, transitada em julgado, a Instância Local de Vila Pouca de Aguiar, considerando que a competência para apreciar a acção cabia aos tribunais administrativos, julgou-se materialmente incompetente e absolveu a R. da instância.
Remetido o processo ao TAF de Mirandela, veio este tribunal a declarar igualmente a sua incompetência em razão da matéria, por entender serem os tribunais comuns os competentes para a decisão do litígio.
Transitada em julgado tal decisão, foram os autos remetidos a este tribunal para a resolução do conflito negativo de jurisdição.
O Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, onde concluiu que, de acordo com a jurisprudência largamente dominante deste tribunal, deveria a competência ser atribuída ao TAF de Mirandela.

2. A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar a responsabilidade civil extracontratual da R., emergente de um acidente de viação resultante do embate do veículo automóvel segurado na A. em animal que, em consequência da omissão, por parte daquela, dos deveres de vigilância e de segurança no tráfego a que se encontrava adstrita, atravessou a faixa de rodagem de uma auto - estrada que lhe fora concessionada.
O Tribunal Judicial, baseando-se no Ac. do T. Conflitos de 20/1/2010, proferido no Proc. n.º 025/09, entendeu que a actividade a desenvolver pela R. no âmbito da concessão da auto-estrada em causa desenvolvia-se num quadro de índole pública, por esta ser chamada a colaborar com a Administração na execução de uma tarefa administrativa de gestão pública, pelo que, nos termos dos arts. 4.º, n.º 1, al. i), do ETAF e 1.º, n.º 5, da Lei n.º 67/2007, de 31/12, ela estava subordinada a um regime de responsabilidade administrativa e sujeita ao contencioso administrativo.
Diversamente, o TAF, aderindo à jurisprudência constante do Ac. do T. Conflitos de 18/12/2013 – Proc. n.º 028/13, considerou que, sendo a R. uma pessoa colectiva de direito privado que, de acordo com a Base LXXIII da concessão anexa ao DL n.º 248-A/99, de 6/7, respondia perante terceiros “nos termos da lei geral”, era de afastar a aplicação dos citados arts. 4.º, n.º 1, al. i) e 1.º, n.º 5, sendo, por isso, a jurisdição administrativa incompetente para conhecer a acção.
As decisões em conflito fundaram-se, assim, em jurisprudência contraditória deste tribunal, sendo certo, porém, que se mostra esmagadoramente maioritária (e ultimamente mesmo unânime) a orientação jurisprudencial que em situações como a que está em apreço se pronuncia pela competência dos tribunais administrativos (cf., entre outros, os Acs. de 21/4/2016 – Proc. n.º 06/16, de 4/2/2016 – Procs. nºs. 017/15 e 025/15, de 22/10/2015 – Proc. n.º 016/15, de 15/10/2015 – Proc. n.º 030/15, de 7/5/2015 – Procs. nºs. 05/15 e 010/15, de 22/4/2015 – Proc. n.º 011/15, de 23/3/2015 – Proc. n.º 053/14, de 12/3/2015 – Proc. n.º 049/14, de 27/3/2014 – Proc. n.º 046/13 e de 27/2/2014 – Proc. n.º 048/13).
E é esta via jurisprudencial que se adopta, sendo de acordo com ela que se passará a decidir o caso concreto.
Vejamos então.
Resulta do art.º 4.º, n.º 1, al. h), do ETAF, na redacção introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 2/10 (e já resultava da al. i) do mesmo preceito na redacção anterior), que compete à jurisdição administrativa apreciar os litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e das demais pessoas colectivas públicas.
A Lei n.º 67/2007, de 31/12, aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, o qual estabeleceu, no seu art.º 1.º, n.º 5, que as disposições que regulavam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, eram também aplicáveis à responsabilidade de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptassem no exercício de prerrogativas de poder público ou que fossem reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
Como escreveu Carlos F. Cadilha (in “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado”, 2.ª edição, pág. 55), “a submissão de entidades privadas ao regime de responsabilidade civil da Administração (com a consequente sujeição ao contencioso administrativo) terá, portanto, de ser definida casuisticamente em função da natureza jurídica dos poderes que tais entidades tenham exercitado em dada situação concreta. Por outro lado, tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime de responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas de direito privado…”.
Ora, “a construção de uma auto-estrada, a sua exploração, manutenção, vigilância e segurança, nomeadamente do tráfego, são tarefas próprias da administração do Estado, não significando que a respectiva concessão a uma entidade privada determine a perda da sua natureza pública administrativa, pois que a mesma se mantém regulada e fiscalizada à luz de normas jurídicas administrativas inscritas no próprio contrato” (cf. citado Ac. do T. Conflitos de 22/10/2015).
No caso em apreço, o contrato de concessão em causa integrou as Bases aprovadas pelo DL n.º 248-A/89, de 6/7, de onde se destacam as seguintes:
- Base XLIV, n.º 1, onde se estabelece que “a concessionária deverá manter as Auto-Estradas em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam”;
- Base LVII, n.º 2, de que resulta que “a concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade a circulação na Auto-Estrada”;
- Base LVIII, n.º 1, que estatui que “a concessionária é obrigada a assegurar a assistência aos utentes das Auto-Estradas, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação, nomeadamente no que respeita à sua fiscalização e à prevenção do acidente”;
- Base LXXIII de onde decorre que “a concessionária responderá, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das actividades que constituem objecto da concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito”.
Constituindo fundamento do pedido de indemnização formulado pela A., o incumprimento destes deveres que oneram a concessionária nos termos do contrato de concessão e que se integram na sua actividade de garantia da segurança do tráfego na auto-estrada, deve-se concluir que esse incumprimento ocorreu no exercício de prerrogativas de poder público e é regulado por disposições de direito administrativo. E não põe em causa esta conclusão o disposto na referida Base LXXIII, pois, como se notou no mencionado Ac. deste Tribunal de 22/10/2015, “a referência feita à lei geral deve significar que esta responsabilidade não vem regulada no contrato/bases da concessão, mas pelas normas gerais que regulam tal matéria, sem contudo se tomar posição sobre a sua natureza, administrativa ou comum”.
Portanto, inserindo-se a eventual responsabilização da R. no âmbito de aplicação do art.º 1.º, n.º 5, da Lei n.º 67/2007, serão os tribunais administrativos os competentes para conhecerem da causa (art.º 4.º, n.º 1, al. h), do ETAF).

3. Pelo exposto, julga-se que a competência para a acção cabe aos tribunais administrativos.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Outubro de 2016. – José Francisco Fonseca da Paz (relator) – Isabel Celeste Alves Pais MartinsCarlos Luís Medeiros de Carvalho – Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego – José Augusto Araújo VelosoManuel Joaquim Braz.