Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:043/15
Data do Acordão:02/18/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:RELAÇÃO JURÍDICA ADMINISTRATIVA.
CONTRATO ADMINISTRATIVO.
CONTRATO PÚBLICO.
Sumário:Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para conhecer de pedido de cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de embalador/importador celebrado no âmbito do SIGRE [Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens].
Nº Convencional:JSTA00069578
Nº do Documento:SAC20160218043
Data de Entrada:11/10/2015
Recorrente:SOCIEDADE A......, S.A. ("A........."), NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DE LISBOA OESTE, SINTRA, INSTÂNCIA CENTRAL, 1ª SECÇÃO CÍVEL - J5 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:CONFLITO NEGATIVO COMARCA GRANDE LISBOA NOROESTE (SINTRA) - TRL 2015/05/14.
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Área Temática 1:*
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB
Legislação Nacional:ETAF02 ART4 N1 E F ART1.
CONST76 ART211 ART212.
CPC13 ART64.
L 62/2013 ART40.
CPTA ART2.
PORT 29-B/98 ART5 ART6 ART7 ART8.
DL 366-A/97 ART2 ART4 ART5 ART15 ART11.
CCIV66 ART428.
Jurisprudência Nacional:AC TC 508/94 PROC777/92 DE 1994/07/14.; AC TC 347/97 PROC139/95 DE 1997/04/29.; AC STA PROC047633 DE 2001/09/27.; AC STA PROC01674/02 DE 2002/11/28.; AC STA PROC047636 DE 2003/02/19.; AC STJ PROC04B875 DE 2003/10/20.; AC TCF PROC06/02 DE 2003/02/05.; AC TCF PROC0375/04 DE 2004/03/09.; AC TCF PROC05/04 DE 2004/09/23.; AC TCF PROC03/06 DE 2006/10/04.; AC TCF PROC05/07 DE 2007/05/17.; AC TCF PROC025/10 DE 2011/03/29.; AC TCF PROC08/11 DE 2012/01/12.; AC TCF PROC021/11 DE 2012/02/16.; AC TCF PROC012/12 DE 2012/12/06.; AC TCF PROC08/13 DE 2013/05/05.; AC TCF PROC023/13 DE 2013/05/15.; AC TCF PROC07/14 DE 2014/12/09.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº43/15
I. Relatório
1. SOCIEDADE A…………., S.A. [A………], apresentou junto do Balcão Nacional de Injunções o requerimento de injunção que levou o nº161704/09.9YIPRT, com subsequente tramitação na Comarca da Grande Lisboa-Noroeste - Sintra, Grande Instância Cível, 1ª Secção - de acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de um contrato, contra B………. [B………] - no qual alegou ter celebrado «contrato de embalador/importador» com a ré, ao abrigo do qual lhe prestou os serviços identificados nas facturas que discriminou, não tendo ainda obtido da sua parte os respectivos valores, apesar de a ter interpelado para tal, e culmina com o pedido de condenação da B…….. a pagar-lhe ao montante global de 485.165,31€ [446.871,80€ de capital e 38.293,51€ de juros] – ver folha 2.

2. Foi apresentada a defesa, por excepção e por impugnação [folhas 6 a 36], réplica [folhas 79 a 210] e tréplica [folhas 259 a 261].

3. Por despacho de 18.10.2011 foi determinada a apensação a estes autos dos autos nº161705/09.YIPRT, também a correr seus termos na Instância Cível da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste - 2ª Secção -, a qual tinha sido requerida na réplica. Nestes outros autos de acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, a mesma autora demandou a identificada ré alegando, e em síntese, a falta de pagamento de facturas relativas a período diverso do mesmo contrato, pedindo a sua condenação no pagamento da soma de 978.284,33€, acrescida de juros de mora vencidos, e liquidados na quantia de 237.192,75€, e juros de mora vincendos até integral pagamento [folhas 326 a 329 e 207 e seguintes].

4. Por despacho de 21.02.2014, e por se entender que o litígio a dirimir poderia inserir-se no âmbito da «competência material da jurisdição administrativa», as partes foram notificadas, ao abrigo do disposto no artigo 3º, nº3, do CPC, para se pronunciarem sobre a questão [folhas 566/573].

5. Apenas a autora se pronunciou, pugnando pela competência do Tribunal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste [ver folhas 576 a 581].

6. Subsequentemente, pelo saneamento de 17.06.2014 [folhas 583 a 594], julgou-se procedente a excepção de «incompetência material» e, em conformidade, foi o Tribunal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste declarado incompetente para conhecer dos autos e a ré absolvida da instância.

7. Inconformada, a autora A……… apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa [ver folhas 599 a 631] que, por acórdão de 14.05.2015, manteve o julgamento da questão da «incompetência material» feito pela 1ª instância [folhas 645 a 652].

8. A autora A………, inconformada com este acórdão da 2ª instância, por manter a decisão sobre a «incompetência material» da jurisdição comum por o litígio ser da competência material da jurisdição administrativa, vem nos termos do artigo 101º, nº2, do CPC, interpor este recurso para o Tribunal de Conflitos [folhas 818].

9. A A…….., ora recorrente, conclui assim as suas alegações [folhas 819 a 862]:

1. Vem o recurso interposto do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, na parte em que manteve a sentença proferida pelo Juízo de Grande Instância Cível da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste, e julgou incompetente o tribunal judicial com fundamento em a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa, tendo mantido a absolvição da recorrida da instância;

2. É motivado pela impossibilidade de conformação da recorrente com uma decisão violadora das regras relativas à competência material dos tribunais – ver artigo 4º, alíneas e) e f), do ETAF;

3. Sobretudo quando, precisamente no mesmo dia em que foi notificada do acórdão recorrido, a A……. foi notificada de outro acórdão, proferido pelo mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito da acção com o nº2961/14.3TBOER, que corre termos na 2ª secção cível da Comarca de Lisboa Oeste - J4, intentada pela A…….. contra outro aderente ao SIGRE, com um objecto idêntico ao dos presentes autos, no qual o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu que a A…….. se apresenta como entidade particular, ou seja, não estando imbuída de vestes de «autoridade pública», com «prorrogativas de autoridade» nada determinando ou impondo a submissão da questão apresentada pela autora ao Tribunal Administrativo;

4. E quando não consta da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância, ou do acórdão recorrido, um único facto que permita subsumir o presente caso àquelas normas;

5. Para se aferir da subsunção de determinado processo numa norma que fixa um determinado índice de competência há que atender-se apenas e em primeiro lugar, ao modo como o autor delineia o pleito na petição inicial, quer quanto aos elementos objectivos - pedido e causa de pedir - quer quanto aos elementos subjectivos - identidade dos sujeitos;

6. Atentando aos pedidos formulados pela recorrente e à sua causa de pedir [ou seja, o contrato firmado entre a A……. e o B……….], verifica-se que a A………assenta os seus pedidos na responsabilidade contratual da ré, nos termos do artigo 798º do Código Civil, matéria que não se inclui em qualquer das alíneas do artigo 4º do ETAF;

7. Relembra-se que a A……… é sociedade anónima, que tem como objecto social a organização e gestão de sistemas de retoma e de valorização de resíduos de embalagens não reutilizáveis, no quadro do sistema integrado previsto pelo DL nº366-A/97;

8. Tem como accionistas, conforme explicitado na petição inicial: [i] a C………, SGPS, S.A., que representa as empresas e associações de empresas produtoras e importadoras de produtos embalados; [ii] a D……….., SGPS, S.A., que representa as empresas do comércio e da distribuição; [iii] a E……………., que representa as empresas de produção de embalagens e de materiais de embalagem; e [iv] outros accionistas privados;

9. O referido DL nº366-A/97 concretiza, no ordenamento jurídico português, os princípios da responsabilidade alargada do produtor, do poluidor-pagador e os demais princípios associados à prevenção da produção de resíduos, resultantes da legislação europeia aplicável aos resíduos em geral e às embalagens e resíduos de embalagens em particular;

10. As entidades que a lei corresponsabiliza por assegurar a gestão de resíduos de embalagens são, por conseguinte, os operadores económicos que retiram utilidade económica da própria comercialização de embalagens, todos eles entidades privadas, pelo que, se a lei atribui a responsabilidade de assegurar a gestão de resíduos de embalagens a privados - e não à Administração Pública - isso significa que a tarefa em causa é necessariamente privada, mesmo que a lei, a jusante, regulamente determinados aspectos do seu exercício;

11. De acordo com o artigo 5º do DL nº366-A/97 e o artigo 9º da Portaria nº29-B/98, de 15.01, que o regulamenta, a responsabilidade pela gestão das embalagens não reutilizáveis pode ser assumida de duas formas: através do sistema consignado ou do sistema integrado de gestão de embalagens;

12. O sistema consignado é o sistema supletivo - em vigor caso os operadores não optem pelo sistema integrado - a responsabilidade pela gestão de embalagens e seus resíduos não chega a abandonar as esferas dos seus titulares originários [privados];

13. O sistema integrado, por outro lado, é um sistema voluntário que pressupõe que os embaladores, os responsáveis pela colocação de produtos embalados no mercado nacional e os industriais de produção de embalagens ou matérias-primas para o fabrico de embalagens acordem na transmissão da sua responsabilidade pela gestão de resíduos para uma entidade gestora [ver artigo 7º nº1 da Portaria nº29-B/98];

14. O que distingue o sistema consignado do sistema integrado não são, por isso, os objectivos de gestão ou a distribuição de responsabilidades, mas a forma de organização dos responsáveis pela gestão dos resíduos, que no sistema integrado optam por concentrar numa terceira entidade os deveres e responsabilidades que a lei lhes atribuiu: distingue-se nos métodos e na forma do sistema consignado, mas não na natureza. Continua, pois, a ser actividade privada, titulada e exercida por privados;

15. De facto, a A………., como entidade gestora do SIGRE, é apenas um veículo de concentração de tarefas e delegação de responsabilidades entre as entidades privadas responsáveis pela gestão dos resíduos de embalagens;

16. Não se levantam dúvidas de que, no caso de sistemas consignados - em que cada um dos responsáveis pela gestão de embalagens assegura individualmente essa gestão - as relações jurídicas subjacentes serão sempre privadas;

17. O facto de os operadores concentrarem a gestão das embalagens e seus resíduos numa só entidade - para a qual transferem essa responsabilidade - não pode alterar a natureza privada dessas relações jurídicas;

18. A competência material dos tribunais não pode, por isso, variar consoante esteja em causa um sistema consignado - em que a responsabilidade se mantém na esfera do vendedor, comerciante, fabricante e produtores - ou um sistema integrado - em que a responsabilidade se transfere para a requerida;

19. A demonstração definitiva de que não estamos, no âmbito do DL nº366-A/97, na presença de um serviço público, é a inexistência do poder de resgate da actividade por parte da entidade licenciadora - os Ministros responsáveis pelas áreas da Economia e do Ambiente: a ausência desse poder indica que nenhuma autoridade administrativa assume responsabilidade pela actividade a título principal ou subsidiário - ou qualquer obrigação de a garantir;

20. Em suma, a responsabilidade pela gestão de resíduos de embalagens pertence, a todo o tempo e independentemente das circunstâncias, a operadores privados, embaladores, que são responsáveis pela colocação de produtos no mercado nacional e industriais de produção de embalagens ou de matérias-primas para o fabrico de embalagens;

21. No que concerne à alínea e) do artigo 4º do ETAF, nada do que é referido no acórdão recorrida está em causa na presente acção - muito menos tal como delineada pela autora - não tendo a recorrente pedido ao tribunal que apreciasse a validade de qualquer acto pré-contratual ou que apreciasse um contrato submetido a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

22. A recorrente peticionou na presente acção que a recorrida fosse condenada ao pagamento de 485.165,31€ e de 1.215.477,08€, titulados por facturas não liquidadas e referentes a VPV devidos pela ré/recorrida relativamente à transferência da responsabilidade pela gestão de embalagens secundárias que colocou no mercado, acrescidos dos juros aplicáveis, vencidos e vincendos;

23. Tendo invocado a recorrida, nas suas oposições, que [i] a recorrente não cumpre «a sua contraprestação no que diz respeito à gestão de embalagens secundárias» e que «pressupondo o contrato [tipo] em causa relação sinalagmática, em que as partes se encontram numa relação de interdependência, teria o direito de recusar o cumprimento da sua prestação nos termos dos artigos 428º e seguintes do Código Civil [direito privado], e [ii] subsidiariamente, que estariam preenchidos os pressupostos de aplicação dos artigos 802º do CC [direito privado];

24. O ponto decisivo para determinar o âmbito contratual da jurisdição administrativa nos termos da alínea e) é a natureza do procedimento que antecedeu - ou devia ou podia ter antecedido - a sua celebração;

25. É patente a inexistência no acórdão recorrido de qualquer facto que permita subsumir o objecto da presente acção e a relação contratual existente entre a recorrente e a recorrida a qualquer uma das realidades reguladas por esta alínea e) do artigo 4º do ETAF: do acórdão recorrido - ou sequer dos articulados das partes - não consta uma única menção [i] a um acto pré-contratual cuja validade esteja a ser questionada ou afirmada pela recorrente, [ii] a um único procedimento pré-contratual que tenha precedido a celebração do contrato celebrado entre recorrente e recorrida; ou [iii] a uma única norma legal [a lei específica a que se refere a alínea e) do artigo 4º do ETAF] que submeta o contrato existente entre recorrente e recorrida a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público ou que admita que seja submetido a um procedimento pré-contratual dessa natureza;

26. Como expressamente refere o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.03.2014, já citado, bem como os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 16.02.2012, processo nº021/11, e de 21.02.2013, processo nº027/12, o «acento tónico indiciador da natureza administrativa da relação jurídica é colocado, não no conteúdo do contrato, nem na qualidade das partes, mas nas regras de procedimento pré-contratuais aplicáveis»;

27. Como se vê, o acórdão recorrido apenas refere [muito genericamente] aspectos relativos à qualidade da A……… [o facto de ser uma entidade licenciada e «ter por missão a satisfação» de «necessidades de interesse público»] e ao conteúdo do contrato que constitui a causa de pedir na presente acção [o facto de os VPV serem aprovados pela APA];

28. No entanto, o acórdão recorrido nada diz quanto a procedimento pré-contratuais aplicáveis;

29. O Tribunal «a quo» apenas refere genericamente, numa transcrição dos ensinamentos de Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, o DL nº197/99, de 08.06, que aprovou o Regime Jurídico de Realização de Despesas Públicas e da Contratação Pública, em particular quanto à aquisição de bens e serviços, em geral, pelas entidades a que se referem os nºs 1 e 2 do artigo 3º do DL nº197/99 [ver página 5 do acórdão recorrido];

30. Ora, esse artigo 3º do DL 197/99 referia-se a pessoas colectivas sem natureza empresarial que, cumulativamente, sejam criadas com o objectivo específico de satisfazer necessidades de interesse geral e financiadas maioritariamente pelas entidades referidas no artigo 2º [o Estado, alguns organismos públicos dotados de personalidade jurídica, regiões autónomas, autarquias locais, entidades equiparadas sujeitas a tutela administrativa e associações exclusivamente formadas por autarquias locais e ou por outras pessoas colectivas de direito público mencionadas nas alíneas anteriores] ou sujeitas ao seu controlo de gestão ou tenham um órgão de administração, direcção ou fiscalização cujos membros sejam em mais de 50% designados por aquelas entidades;

31. Sendo que, para além de o tribunal a quo não referir um único facto que permita subsumir a presente acção ao artigo 3º do DL nº197/99, a verdade é que, efectivamente, a A………. não se encontra em nenhuma das circunstâncias elencadas nessa disposição legal;

32. Refira-se, ademais, que o DL nº197/99 foi revogado pelo DL nº18/2008, de 29.01, que aprovou o Código dos Contratos Públicos. Sobre as normas do Código dos Contratos Públicos o tribunal a quo nada disse;

33. E, como salientou o Tribunal da Relação de Lisboa no acórdão proferido no processo nº2961/14.3TBOER, relativamente à A…….. e a contratos praticamente iguais ao que se encontra em discussão nos presentes autos [ver documento nº1 ora junto], a A…….. não está sujeita à disciplina do Código dos Contratos Públicos;

34. Em suma, «in casu», não existe qualquer lei específica que submeta o contrato celebrado entre a A……….. e o B……… a um procedimento administrativo pré-contratual, como sucede, por exemplo, relativamente ao DL 223/2001, de 09.08, que estabelece os procedimentos a observar na contratação de empreitadas, fornecimentos e prestações de serviços nos sectores da água, da energia, dos transportes e das telecomunicações das entidades aí referidas;

35. Não existe sobre este contrato - nem foi identificado pelo tribunal a quo - qualquer norma sobre a procedimentalização administrativa da sua formação e que sujeite a A……… a deveres pré-contratuais de natureza administrativa, havendo total liberdade de determinação do modo de contratar;

36. Como não estão verificados os pressupostos de aplicação da alínea f) do artigo 4º do ETAF na medida em que esta alínea apenas se refere a causas relativas à interpretação, validade e execução: [i] de contratos de objecto passível de acto administrativo; [ii] de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de [iii] contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

37. Desde logo, o tribunal a quo não identifica nem explica em qual ou quais das diversas situações reguladas nesta alínea se enquadram os contratos que constituem a causa de pedir nesta acção;

38. Ao referir-se aos contratos de objecto passível de acto administrativo, a lei reporta-se aos contratos celebrados ao abrigo da autonomia pública contratual e que versem sobre a produção de efeitos jurídicos que a lei haja previsto serem atingidos mediante a prática de um acto administrativo, substituindo o acto administrativo pelo concreto negócio do conteúdo da relação jurídica - acto administrativo definido, nos termos do artigo 120º do CPA, como as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta;

39. São exemplos desses os contratos substitutivos de actos administrativos [previstos no artigo 179º do CPA, entretanto revogado pelo DL nº18/2008, de 29.01], o contrato pelo qual, em substituição de uma declaração de expropriação já projectada, a Administração celebre com o proprietário um contrato de compra e venda do prédio expropriandiver Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, obra citada, páginas 54 e 55;

40. Não é o caso: o objecto do contrato celebrado entre a A…….. e B…….. [a transferência, mediante o pagamento de contrapartidas financeiras, das responsabilidades desta, enquanto embaladora] não pode ser substituído por qualquer acto administrativo praticado unilateralmente por qualquer entidade;

41. Nem o acórdão recorrido sequer menciona qual seria o acto administrativo susceptível de substituir o contrato celebrado entre a A…….. e o B………., ou a entidade que o pudesse unilateralmente emitir ou a legislação ao abrigo da qual tal suposto acto administrativo pudesse ser emitido;

42. Quanto aos contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, o que se analisa a este propósito é o regime do contrato em causa, não o regime legal do exercício de uma actividade profissional que seja objecto de uma prestação contratual, sendo certo que hoje em dia praticamente todas as actividades de particulares estão jurídico-publicamente reguladas e condicionadas [ver Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, obra citada, página 56];

43. Ora, embora em qualquer caso - consignação ou gestão integrada -, a gestão de resíduos de embalagens esteja enquadrada pelas normas do DL nº366-A/97, isso não lhe dá, nem à actividade em si, nem a eventuais verbas obtidas através dela, natureza pública;

44. Aliás, sendo a gestão do sistema integrado de retoma e valorização de resíduos de embalagens uma actividade privada, a mesma desenvolve-se, enquanto tal, no quadro das regras de mercado nacionais e da União Europeia aplicáveis a todas as outras actividades, com as especificidades próprias do sector;

45. Nem do facto de a actividade da recorrente ser actividade licenciada decorre a competência dos tribunais administrativos, dado que a relação estabelecida entre as partes nos presentes autos é exclusivamente de cariz privado;

46. Sendo que é neste tipo de relação, de cariz contratual, paritário, entre duas sociedades privadas, que ocorre o presente litígio;

47. Foi assim que a recorrente delineou a causa, ao integrar a causa de pedir dos pedidos formulados no âmbito da responsabilidade contratual, nos termos dos artigos 798º e seguintes do Código Civil. Foi também no contexto de uma relação de cariz contratual paritário que a recorrida contestou os pedidos ao sustentar as excepções dilatórias por si invocadas nos artigos 428º e seguintes e 802º do Código Civil;

48. Resultam do contrato celebrado entre as partes um conjunto de cláusulas que evidenciam o carácter privatístico e paritário da relação em que acordaram, de que são exemplos as cláusulas vigésima primeira e vigésima segunda do contrato celebrado entre a A……… e o B……., onde, de resto, as partes não deixaram de acordar que qualquer litígio será «decidido nos tribunais Judiciais»;

49. O entendimento [errado] do tribunal a quo se extrapolado para outras actividades licenciadas levaria, por exemplo, à conclusão [também errada] de que [i] uma dívida entre particulares, relativa ao fornecimento de serviços de restauração e bebidas, caberia aos tribunais Administrativos porque a actividade do prestador é uma actividade licenciada, regulada no DL nº234/2007, de 19.06, ou que [ii] uma dívida entre particulares, resultante de um contrato de arrendamento seria da competência dos tribunais administrativos porque o referido contrato tem subjacente uma licença de utilização do edifício;

50. Também não é pelo facto de os VPV serem aprovados pela APA que estamos perante um «contrato especificamente a respeito do qual existem normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo»;

51. Nem seria pelo mero facto de a recorrente ter por «missão a satisfação das referidas necessidades de interesse público» que se poderia concluir pela competência dos tribunais administrativos para a presente causa;

52. Como salientado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.11.2008, processo nº747/07.OTBCVL.C 1: «Em todos os contratos celebrados pela Administração, mesmo nos privados, está presente o interesse público. Era preciso que, na relação concreta, fossem conferidos poderes de autoridade ao município perante as rés»;

53. Recorda-se que a relação emergente dos contratos é uma simples relação contratual entre dois particulares não intervindo na relação em causa nos presentes autos qualquer entidade pública investida do poder de utilizar, quando e se necessário, prerrogativas de jus imperii;

54. Com efeito, a relação jurídica administrativa «é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração» [Freitas do Amaral, Direito Administrativo, volume III, página 439, Curso de Direito Administrativo, volume II, Almedina, 6ª reimpressão, página 518];

55. Seguindo a definição de VIEIRA DE ANDRADE [A Justiça Administrativa, Lições, 2000, página 79] a relação jurídica administrativa é «aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido»;

56. É, portanto, pacífico que pelo menos um dos sujeitos tem de actuar na veste de autoridade pública, investido de ius imperium, com vista à realização do interesse público [Freitas do Amaral, obra citada, Vieira de Andrade, obra citada, página 79; José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, página 239];

57. É, aliás, este o conceito de relação jurídica administrativa tal como unanimemente definido pela jurisprudência assente do Tribunal de Conflitos, melhor identificada nas alegações supra, segundo a qual as relações jurídico-administrativas definem-se pelo exercício, por banda de pelo menos uma das partes, de uma função pública, com prerrogativas de autoridade;

58. Acresce que também não está em causa uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão;

59. Sendo certo que não consta dos autos - nem do acórdão recorrido - a referência a uma qualquer qualificação da A……… como entidade pública ou a menção a um qualquer contrato de concessão que vincule a A…….. ou o B……..;

60. Assim, em suma, também não é pelo modo como se encontram fixadas as contrapartidas nos contratos em causa nos presentes autos que os mesmos têm conexão administrativa suficiente para que seja reconhecida competência aos tribunais administrativos;

61. Ao decidir diferentemente o Tribunal a quo violou o artigo 4º, alíneas e) e f), do ETAF;

62. Deve, atendendo ao exposto, este Tribunal de Conflitos fixar definitivamente a competência dos Tribunais Judiciais para a presente acção, ordenando-se o prosseguimento dos autos, o que se requer para todos os efeitos legais.

10. A B……… contra-alegou concluindo assim [folhas 901 a 914]:

A. O Tribunal a quo concluiu que a apreciação da matéria objecto dos presentes autos é da competência dos tribunais administrativos, por força das alíneas e) e f) do artigo 4º do ETAF;

B. Defende a recorrente que o artigo 4º, alíneas e) e f), do ETAF, não têm aplicação nos presentes autos, pois que não existe uma relação jurídico-administrativa entre recorrente e recorrida, porque a que se estabeleceu é de cariz contratual paritário, nem se verifica qualquer dos pressupostos de aplicação daquelas normas;

C. Relativamente à natureza jurídica da relação estabelecida entre recorrente e recorrida, a mesma só pode ser qualificada como administrativa;

D. Como a recorrente alega para fundamentar o pedido, a sua actividade está regulada e balizada por uma licença, que o Estado lhe atribuiu para, em seu nome, atingir um fim público de protecção do ambiente, garantindo o cumprimento das metas de reciclagem e valorização que impendem sobre o Estado português;

E. E, por causa disso, apurar se os valores que nos presentes autos a recorrente reclama são ou não devidos envolve necessariamente a apreciação de normas de natureza administrativa;

F. A relação que as partes estabeleceram entre si rege-se por normas de direito público e não por regras de direito privado;

G. O que até se demonstra pela total ausência de liberdade de conformação do conteúdo do contrato;

H. A recorrente tem obrigatoriamente que contratar com os responsáveis pela colocação de embalagens no mercado nacional, como resulta da sua licença;

I. O objecto desse contrato é o que a recorrente, por força da licença, impõe que seja, isto é, a recorrida não tem qualquer margem de negociação relativamente ao tipo de embalagens abrangidas pelo contrato;

J. E também o preço é regulado pelo Estado, na medida em que é a Agência Portuguesa do Ambiente que aprova os valores de prestação financeira que a recorrente cobra aos seus aderentes, incluindo, naturalmente, a recorrida;

K. Além disso, a recorrida não podia deixar de celebrar contrato com a recorrente, porquanto a responsabilidade que sobre si recai, nos termos da lei, na qualidade de produtor de resíduos, apenas pode ser acautelada pela transferência dessa responsabilidade para uma entidade gestora;

L. Só existe uma entidade gestora licenciada para a gestão de resíduos de embalagens: a recorrente;

M. Portanto, a recorrida viu-se efectivamente forçada a celebrar o contrato com a recorrente nos termos que esta definiu;

N. É que a alternativa legal - o sistema de consignação - não é exequível, na medida em que, por força do tipo de produtos que a recorrida comercializa, as embalagens que coloca no mercado transformam-se em resíduos nas habitações dos consumidores, sendo, por isso, impossível à recorrida assegurar a respectiva gestão [já que não pode ir a casa de cada um dos consumidores recolher os resíduos de embalagens dos produtos que lhes vendeu].

Termina pedindo que seja negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão que julgou os tribunais judiciais materialmente incompetentes para conhecer da matéria em litígio.

11. O Ministério Público emitiu parecer, no sentido de os presentes autos serem da competência dos tribunais comuns [folhas 964 a 967].

12. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar, e decidir, o recurso interposto pela A……. ao abrigo do artigo 101º, nº2, do CPC.

II. Apreciação

1. A questão colocada a este Tribunal de Conflitos reconduz-se apenas a definir se a «competência em razão da matéria» para a apreciação do litígio vertido na acção especial aqui em causa caberá aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.

Tanto a 1ª como a 2ª instância da «jurisdição comum», que sobre a questão se pronunciaram, arredaram essa «competência material» por considerarem, e em súmula, que o litígio objecto da acção especial se inseria no âmbito das alíneas e) e f), do nº1, do artigo 4º do ETAF, cabendo o seu julgamento, portanto, aos tribunais da «jurisdição administrativa».

A autora da acção especial, A……., discorda desta atribuição de competência em razão da matéria porque em seu entender, e fundamentalmente, o que está em causa é uma «relação contratual entre duas entidades privadas, desprovidas de qualquer poder público», e a «actividade em causa é, também ela, de natureza privada», embora a montante «a lei regulamente determinados aspectos do seu exercício».

Além disso, aduzem, não constam das decisões tomadas, tanto na 1ª como na 2ª instância da jurisdição comum, «quaisquer factos que permitam subsumir o presente caso às alíneas e) e f) do nº1 do artigo 4º do ETAF».

2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo [artigo 202º da CRP], sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e actual 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e aos tribunais administrativos a competência para julgar as causas «emergentes de relações jurídicas administrativas» [artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].

Assim, na sequência das normas constitucionais e legais, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais, ou da chamada jurisdição comum assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».

Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95].

A cada uma destas duas jurisdições, comum e administrativa, caberá, portanto, um determinado «quinhão» do poder jurisdicional que, em bloco, pertence aos «tribunais», sendo que o mesmo é determinado essencialmente em função das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional.

E tais matérias são aferidas através de determinados «índices de competência», entre os quais sobressaem «os termos em que a acção se mostra proposta pelo autor», isto é, o pedido formulado e a causa de pedir que o fundamenta.

Doutro modo, e como tem sido dito, «a competência dos tribunais em razão da matéria, ou jurisdição, afere-se em função da configuração da relação material controvertida, ou seja, em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os seus fundamentos» [entre muitos, ver AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC do STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC STJ de 20.10.2003, Rº04B875; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/04; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 12.01.2012, 08/11; AC Tribunal de Conflitos de 16.02.2012, 021/11; AC Tribunal de Conflitos de 06.12.2012, 012/12; AC Tribunal de Conflitos de 15.05.2013, 08/13; AC Tribunal de Conflitos de 15.05.2013, 023/13; AC Tribunal de Conflitos de 09.12.2014, 07/14].

3. No artigo 4º do ETAF aqui aplicável [em vigor desde 01.01.2004, e antes da alteração que lhe foi efectuada em 2015] é feita uma enumeração exemplificativa de matérias litigadas cujo conhecimento pertence [alíneas do nº1] ou não pertence [alíneas do nºs 2 e 3] aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.

Entre elas se destacam, por serem esgrimidas no presente caso, as alíneas e) e f) do seu nº1. Nos termos da primeira [e)], compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto «Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público». E nos termos da segunda [f)], compete à mesma jurisdição a apreciação de litígios que tenham por objecto «Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».

E nesta precisa linha de concretização de competência material estipula agora o nº2 do artigo 2º do CPTA, sobre imposições da tutela jurisdicional efectiva, que «A todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para efeito de obter: […] g) A resolução de litígios respeitantes à interpretação, validade ou execução de contratos cuja apreciação pertença ao âmbito da jurisdição administrativa».

4. A integração do presente litígio no âmbito material de uma ou outra dessas referidas jurisdições determina-se, assim, sobretudo pelo pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos invocados para o sustentar, isto é, pelos termos em que a acção foi por ele proposta.

Na presente acção especial - para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de um contrato - a autora A……. pede a condenação da ré B…….. a pagar-lhe o montante global de 485.165,31€ [446.871,80€ de capital e 38.293,51€ de juros], relativo a contrapartidas financeiras que lhe são devidas - designadas de Valores Ponto Verde [VPV] - por força do contrato de embalador/importador celebrado entre elas em 15.12.97, e com aditamento de 29.12.2005.

Ou seja, os montantes facturados, cujo pagamento a A………. peticiona, têm origem num contrato de adesão da B……… ao SIGRE - Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagem - através do qual a ora recorrida transferiu para a ora recorrente, mediante o pagamento de contrapartidas financeiras, as suas responsabilidades, enquanto embaladora, derivadas da legislação em vigor relativamente à gestão e destino final das embalagens por si colocadas no mercado.

Esta legislação, que constitui o quadro normativo em que se louva tal contrato, é constituída, como a própria autora refere no articulado inicial, pelo DL nº366-A/97, de 20.12 - transpôs para a ordem interna a Directiva nº94/62/CE, do Parlamento e do Conselho, de 20.12.1994 - e pela Portaria nº29-B/98, de 15.01 [O DL nº366-A/97, de 20.12, foi subsequentemente alterado pelo DL nº162/2000, de 27.07; pelo DL nº92/2006, de 25.05; pelo DL nº178/2006, de 05.09; pelo DL nº73/2011, de 17.06; pelo DL nº110/2013, de 02.08; e pelo DL nº48/2015, de 10.04. E, por sua vez, a Portaria nº29-B/98 foi alterada pela Portaria nº158/2015, de 29.05].

Há todo o interesse, para o devido enquadramento da questão da competência material que nos ocupa, fazer uma breve e sintética abordagem desse «regime jurídico».

5. Trata-se de um regime jurídico que intenta prosseguir «objectivos explícitos de política ambiental», visando a redução não só da quantidade de embalagens usadas no trato industrial e comercial, como também a «redução, reutilização e reciclagem» dos respectivos resíduos de embalagens [ver preâmbulo do DL nº366-A/97, de 20.12].

O DL nº366-A/97, de 20.12, transpõe para a ordem jurídica nacional a Directiva nº94/62/CE, do Parlamento e do Conselho da União Europeia, de 20.12.1994, e estabelece as regras e os princípios gerais a que deverá obedecer a «gestão de embalagens e resíduos de embalagens», na mira da sua redução, reutilização e reciclagem, como condição necessária a obter um crescimento sustentável.

A Portaria nº29-B/98, de 15.01, vem, na sequência do estipulado nos artigos 5º e 9º desse diploma, regulamentar, além do mais, os «dois sistemas de gestão» das embalagens reutilizáveis e dos resíduos de embalagens não reutilizáveis por ele criados.

Nestes diplomas estabelece-se a co-responsabilização dos operadores económicos, segundo o princípio do poluidor-pagador, pela gestão das embalagens e resíduos de embalagens usadas no exercício da respectiva actividade, tudo para «defesa do ambiente, da saúde, segurança e higiene», e criam-se, para esse efeito, dois sistemas de gestão: o de consignação e o integrado [artigos 4º nº1, do DL nº366-A/97; e 6º, nº1, da Portaria nº29-B/98].

No sistema de consignação, aplicável às embalagens reutilizáveis e às que não são reutilizáveis, o consumidor da embalagem paga um determinado valor de depósito no acto da compra, valor esse que lhe é devolvido quando da entrega da embalagem usada; no sistema integrado, aplicável somente às embalagens não reutilizáveis, o consumidor da embalagem é informado, por marcação que nela é aposta, de que deverá colocar a embalagem usada, como resíduo, em locais devidamente identificados [artigos 2º, nº1, alíneas p) e q) do DL nº366-A/97; e 1º da Portaria 29-B/98].

Porém, no âmbito do referido sistema integrado, a responsabilidade dos agentes económicos - entre os quais o «embalador» - pela gestão dos resíduos de embalagens pode ser transferida para uma entidade devidamente licenciada para exercer tal actividade, ou seja, para «desenvolver operações de recolha selectiva e triagem dos resíduos de embalagens, bem como a retoma e a reciclagem dos mesmos», mediante o pagamento de contrapartidas financeiras [artigos 2º, nº1, alíneas l) e m), 5º, nº2 e nº3, do DL nº366-A/97; e 7º, nº2, alínea d) da Portaria nº29-B/98].

A referida licença é concedida por decisão conjunta dos Ministros da Economia e do Ambiente, e a transferência da responsabilidade do operador económico para a entidade gestora, devidamente licenciada, é feita por contrato escrito, com a duração mínima de três anos, e contendo obrigatoriamente: a) A identificação e caracterização das embalagens abrangidas pelo contrato; b) A previsão da quantidade de resíduos dessas embalagens a retomar anualmente pela entidade; c) Os termos do controlo a desenvolver pela entidade, por forma a verificar as quantidades e a natureza das embalagens a seu cargo; d) As contrapartidas financeiras devidas à entidade tendo em conta as respectivas obrigações, definidas na presente portaria [artigos 7º, nº2, e 8º, da Portaria nº29-B/98].

Foi criada, também, uma Comissão de Acompanhamento da Gestão de Embalagens e Resíduos de Embalagens [CAGERE], presidida por um representante do Ministério do Ambiente, à qual cabe zelar pelo cumprimento das disposições do «regime jurídico» em referência [artigo 15º do DL nº366-A/97].

Diga-se, por fim, que constitui «contra-ordenação», punível com coima e ainda, eventualmente, com sanções acessórias, a «colocação no mercado, pelo embalador ou importador, de produtos embalados sem que a gestão das respectivas embalagens ou resíduos de embalagens tenha sido assegurada através de um dos dois sistemas referidos [artigo 11º, nº1, alínea a), do DL nº366-A/97].

6. Como emerge do articulado inicial, a autora, A……., é uma sociedade anónima que tem por objecto social a organização e gestão de sistemas de retoma e de valorização de resíduos de embalagens não reutilizáveis, no quadro do sistema integrado previsto pelo DL nº366-A/97, de 20.12.

Nos termos da licença que lhe foi concedida por decisão conjunta dos Ministros da Economia e do Ambiente, em 07.12.2004, a A……. deverá «assegurar a gestão dos resíduos de embalagens provenientes dos embaladores e de outros responsáveis pela colocação de produtos acondicionados no mercado nacional».

No articulado inicial, o contrato celebrado entre a autora e a ré, invocado como parte integrante da causa de pedir da acção, configura um contrato através do qual a B……., enquanto «embalador», transferiu para a A………, enquanto entidade gestora devidamente licenciada, a sua responsabilidade pela «gestão e destino final» das embalagens e resíduos de embalagens por si colocadas no mercado.

Ou seja, o que está em causa, na relação contratual gerada entre a autora e a ré, é a responsabilidade desta pela gestão de resíduos de embalagens derivada do regime jurídico referenciado. Como diz o ponto 1 da cláusula 3ª do contrato - referida no artigo 23º do articulado inicial - «O presente contrato aplica-se aos resíduos de embalagens não reutilizáveis de mercadorias e produtos cuja primeira colocação no mercado nacional seja da responsabilidade do segundo outorgante», a ré B……...

Este contrato de adesão ao SIGRE tem, como vimos, uma parte substancial do seu conteúdo imposta por lei, integrando esse conteúdo imposto a previsão de contrapartidas financeiras a pagar pelo «operador económico», nomeadamente pelo «embalador», à entidade gestora do sistema integrado, tendo em conta as respectivas obrigações.

O que significa que o pagamento de facturas que a autora A…….. exige da ré B…….. tem origem nesse contrato de adesão ao SIGRE e traduzir-se-à, alegadamente, na contraprestação que é devida pelo «embalador», no caso pela B………, relativa à transferência da sua responsabilidade pela gestão de resíduos de embalagens para a entidade gestora do SIGRE, a A……..

Em concreto, e como resulta do articulado inicial, o que está em causa é o «não pagamento» pela B…….. das facturas relativas às contrapartidas financeiras - VPV - que respeitam à gestão das «embalagens secundárias» que, alegadamente, a ré declara à autora, mas não paga [por exemplo: um pacote de leite será a «embalagem primária», mas a película retráctil que agrupa seis pacotes de leite será a «embalagem secundária»].

Como resulta do exposto, obviamente que o pagamento destes VPV supõe que a entidade gestora, a A……., esteja a cumprir devidamente a sua contraprestação, isto é, supõe que esteja a cumprir integralmente a responsabilidade pela gestão de resíduos de embalagens que lhe foi transferida pela B………, nos termos da lei.

Aliás, foi esse cabal cumprimento que a ré veio pôr em causa na contestação ao invocar a «exceptio non adimpleti contratus» [artigo 428º do CC]. Segundo alega, a A………. «não cumpre a sua contraprestação no que diz respeito à gestão de embalagens secundárias».

7. Constata-se, destarte, que para além do contrato em causa ser gerado num ambiente denso de direito público, a sua execução é substancialmente regulada por «normas de direito público».

São, efectivamente, as normas de direito público, do regime jurídico supra dito, que regulam a execução das obrigações impostas à entidade gestora do SIGRE, obrigações que lhe foram transferidas pelo contrato de adesão celebrado com o B…….. e consubstanciam a «prestação» que lhe é devida em função do pagamento das contrapartidas financeiras.

Não resta dúvida, assim, de que na apreciação e resolução do presente litígio o tribunal se confronta com a necessidade de interpretar e de aplicar normas que são de «direito público», que impõem obrigações ao embalador e foram por ele transferidas para a entidade gestora.

Tudo aponta para que estejamos no domínio da relação jurídica administrativa, tal como ela é legalmente desenhada, a título exemplificativo, na alínea f) do nº1 do artigo 4º do actual ETAF: Questões relativas à […] execução […] de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo […]».

Porém, não dispomos de qualquer elemento, quer nos autos, quer resultante da lei, nomeadamente do regime jurídico em referência, que permita enquadrar o presente caso no âmbito da alínea e), do nº1, do artigo 4º do ETAF, como foi entendido, também, nas decisões das duas instâncias da jurisdição comum.

8. Por fim, a alegação feita pela recorrente, segundo a qual essas duas decisões não integram «um único facto» que permita subsumir este caso em qualquer das alíneas referidas, faz pouco sentido.

Na verdade, tais decisões limitam-se a trabalhar «elementos factuais integrados no próprio processo», e que consistem essencialmente no conteúdo da petição inicial apresentada pela autora A……., pelo que não se impunha ao tribunal, pois, a particularização de dados factuais que resultavam ostensivamente dos autos.

9. Nos termos de quanto fica exposto, e considerando a competência residual dos tribunais judiciais [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e em particular, no que respeita à competência da jurisdição administrativa o que é disposto nos artigos 212º, nº3, da CRP, 1º, nº1, e 4º, nº1 alínea f), do ETAF, impõe-se decidir este recurso no sentido da atribuição da competência material para conhecer da acção em causa aos «tribunais da jurisdição administrativa».

III. Decisão

Nestes termos, decidimos o presente recurso, destinado a fixar a jurisdição competente para conhecer do objecto da acção especial em causa, mediante a atribuição de competência aos tribunais da jurisdição administrativa.

Sem custas.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2016. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – José Francisco Fonseca da Paz – Armindo dos Santos Monteiro – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – João Moreira Camilo – José António Henriques dos Santos Cabral (vencido na medida em que entendo que pedido e causa de pedir configuram uma relação obrigacional do âmbito do direito privado sendo competente para a conhecer o tribunal comum).