Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:039/21
Data do Acordão:03/23/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P29172
Nº do Documento:SAC20220323039
Data de Entrada:12/20/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA, JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE GUIMARÃES -JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA UO1.
AUTOR: A........., LDA
RÉU: CNPD - COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:

Conflito n.º 39/21


Acordam no Tribunal dos Conflitos

Relatório
A………… Lda, devidamente identificada nos autos, impugnou judicialmente a decisão da COMISSÃO NACIONAL DE PROTECÇÃO DE DADOS (CNPD), proferida em 27.04.2021, no âmbito do processo de contra-ordenação n.º AVG/2019/186, que lhe aplicou uma coima no valor de € 500,00 (quinhentos euros), pela prática de uma contraordenação prevista e punida nos termos das disposições conjugadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, com a alínea b) do n.º 1 do artigo 38.º, ambos da Lei da Protecção de Dados Pessoais (LPDP), aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, alterada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto.
A arguida é proprietária de um estabelecimento comercial da área hoteleira consistente num restaurante sem serviço de mesa e, segundo participação lavrada pela Autoridade para as Condições do Trabalho, na sequência de uma acção de fiscalização, foi apurada a existência, em funcionamento, de um sistema de videovigilância que permitia a visualização em tempo real da cozinha na sua plenitude, viabilizando a identificação de pessoas e bens, num lugar que corresponde a área utilizada pelos trabalhadores no âmbito do exercício da actividade laboral e de acesso exclusivo dos mesmos (zonas ou postos de trabalho referentes à preparação e confecção das refeições).
A impugnação judicial foi enviada ao Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Braga, Juízo Local Criminal de Guimarães, e aí distribuída em 07.09.2021.
Em 13.09.2021 foi proferida decisão a julgar aquele Juízo Local Criminal de Guimarães materialmente incompetente para apreciação do recurso de impugnação, face ao disposto nos artigos 4.º, n.º 1, alínea l) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e art.º 34.º da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto (LPDP), e ordenada a remessa dos autos, após trânsito, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (TAF de Braga).
O TAF de Braga, Juízo Administrativo Comum, por decisão de 26.10.2021, também se julgou “incompetente, em razão da jurisdição, para conhecer do presente processo”, nos termos dos artigos 61.º do RGCO e 4.º, n.º 1, alínea l), do ETAF.
Transitadas ambas as decisões, a Juíza do TAF de Braga suscitou oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição.
Neste Tribunal dos Conflitos, a impugnante notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 11.º, n.º 3 da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro, nada veio dizer.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência deverá ser atribuída aos tribunais comuns.

Apreciação da questão
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Guimarães e o Juízo Administrativo Comum do TAF de Braga.
A questão que está em causa nos autos é a de saber qual a jurisdição competente para apreciar a impugnação judicial apresentada pela arguida, respeitante à aplicação de uma coima pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida nos termos das disposições conjugadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º, com a alínea b) do n.º 1 do artigo 38.º, ambos da Lei da Protecção de Dados Pessoais (LPDP), aprovada pela Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, alterada pela Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º 1, da CRP; 64.º do CPC; e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» [artigos 212.º, n.º 3, da CRP, 1.º, n.º 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art.º 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
A alteração ao ETAF realizada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02 de Outubro, incluiu, no âmbito da jurisdição administrativa, a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
Essa opção restrita é assim explicada no preâmbulo do DL 214-G/2015: “Entendeu-se, nesta fase, não incluir no âmbito desta jurisdição administrativa um conjunto de matérias que envolvem a apreciação de questões várias, tais como as inerentes aos processos que têm por objeto a impugnação das decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social noutros domínios. Pretende-se que estas matérias sejam progressivamente integradas no âmbito da referida jurisdição, à medida que a reforma dos tribunais administrativos for sendo executada”.
Com aquela alteração ao ETAF quis o legislador atribuir competência aos tribunais administrativos e fiscais para o conhecimento das impugnações judiciais, no âmbito de ilícitos de mera ordenação social, apenas por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
A Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, veio dar a actual redacção da alínea l) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, com um aditamento: “1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias”.
No presente caso, é evidente que a violação de norma que está na origem da aplicação da coima – tratamento de dados pessoais - não se integra no conceito de matéria respeitante a urbanismo nem a normas tributárias.
Acresce que, ao contrário do que se afirma na decisão do Juízo Local Criminal de Guimarães, não estamos aqui perante uma “acção contra a CNPD”, que seria da competência dos tribunais administrativos nos termos do n.º 2 do artigo 34.º da LPDP, mas antes perante um recurso em matéria de ilícito de mera ordenação social. E, como se disse, as impugnações relativas às matérias tipificadas em sede de ilícito de mera ordenação social, para além das referidas na alínea l) do n.º1 do artigo 4.º, estão excluídas da competência dos tribunais administrativos e fiscais.
Por sua vez, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) atribui competência aos juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica “para julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contraordenação, salvo os expressamente atribuídos a juízos de competência especializada ou a tribunal de competência territorial alargada” (alínea d) do n.º 2 do artigo 130.º).
Assim, estando excluída da previsão do artigo 4.º, n.º 1, alínea l) do ETAF, a apreciação da impugnação judicial em causa nos autos é da competência dos tribunais da jurisdição comum.
Pelo exposto, acordam em julgar competente em razão da matéria a jurisdição comum, concretamente o Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães.
Sem custas.


Lisboa, 23 de março de 2022. - Isabel Cristina Mota Marques da Silva (relatora) - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.