Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/22-CP
Data do Acordão:11/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONSULTA PREJUDICIAL
ERRO JUDICIÁRIO
TRIBUNAIS COMUNS
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais conhecer de um litígio no qual se pretende a condenação dos réus por responsabilidade civil extracontratual, resultante de decisão jurisdicional errónea proferida nos tribunais comuns que veio a ser revogada, constituindo a mesma o fundamento determinante do pedido indemnizatório formulado.
Nº Convencional:JSTA000P31566
Nº do Documento:SAC2023111502
Recorrente:CONSULTA DE JURISDIÇÃO (ARTº 16º Nº 2 DA LEI 91/2019), SUSCITADA PELA SECÇÃO ADMINISTRATIVA DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA NO PROCESSO Nº 774/15.4BELRA.
REQUERENTE: A..., LDA
REQUERIDO: ESTADO - INSTITUTO DA VINHA E DO VINHO, I.P.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Consulta Prejudicial nº 2/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

Por despacho da Sra. Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (doravante TAF de Leiria), de 23.06.2022, foi decidido suscitar a consulta prejudicial deste Tribunal dos Conflitos, ao abrigo do artigo 15º, nº 1 da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, por se haver entendido que a questão da jurisdição competente levanta fundadas dúvidas.
Em audiência prévia e na sequência da notificação do despacho de 14.06.2022 para as partes se pronunciarem quanto à intenção de submeter a questão da jurisdição competente à apreciação do Tribunal dos Conflitos, o Instituto da Vinha e do Vinho, IP (IVV) disse que quanto a ele a acção sempre teria que ser julgada no âmbito de uma relação jurídica administrativa porque actuou numa posição de autoridade, no âmbito do controlo oficial, e quanto ao Réu Estado considera que também se está no âmbito da competência administrativa pois, da forma como a acção está construída, não lhe parece estar em causa um erro judiciário para poder afastar a competência dos tribunais administrativos, pelo que entende não haver necessidade de remeter a questão da competência ao Tribunal dos Conflitos.
Por sua vez, o Ministério Público (MP) em representação do Estado veio dizer que a questão não é líquida, mas que é seu entendimento não ser o TAF de Leiria competente para conhecer da acção, nos termos da alínea a) do nº 4 do artigo 4º do ETAF.
A presente acção de condenação foi intentada por A..., Lda (anteriormente B..., Lda) no Tribunal Judicial do Bombarral (tendo posteriormente sido remetida ao Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Instância Central - Secção Cível - Unidade 2, por força das alterações na organização do sistema judiciário efectuadas pela Lei nº 62/2013 de 28 de Agosto), contra o Estado Português e o Instituto da Vinha e do Vinho, IP (IVV) com fundamento em responsabilidade civil extracontratual, peticionando o pagamento de:
a) €136.887,04 (cento e trinta e seis mil oitocentos e oitenta e sete euros e quatro cêntimos) pelos custos com análises ao vinho e à aguardente apreendidos realizadas pela “C..., SA”;
b) €4.535,98 (quatro mil quinhentos e trinta e cinco euros e noventa e oito cêntimos) pelos custos com viagens e alojamento;
c) €1.844,31 (mil oitocentos e quarenta e quatro euros e trinta e um cêntimos) pelos custos com o envio das amostras para a “C...”;
d) €3.585,09 (três mil quinhentos e oitenta e cinco euros e nove cêntimos) pelos custos com o transporte do vinho e da aguardente;
e) €275.688,00 (duzentos e setenta e cinco mil seiscentos e oitenta e oito euros) pelos custos relativos ao armazenamento dos produtos apreendidos;
f) €36.701,15 (trinta e seis mil setecentos e um euros e quinze cêntimos) pelo custo do seguro de existências;
g) €2.167,87 (dois mil cento e sessenta e sete euros e oitenta e sete cêntimos) pelo custo do seguro multi-riscos;
h) €15.667,31 (quinze mil seiscentos e sessenta e sete euros e trinta e um cêntimos) pelos encargos com a garantia bancária;
i) €47.711,20 (quarenta e sete mil setecentos e onze euros e vinte cêntimos) pelos custos das análises aos produtos apreendidos;
j) €95.122,14 (noventa e cinco mil cento e vinte e dois euros e catorze cêntimos) pelas despesas com assessoria jurídica e de engenharia;
l) €124.940,61 (cento e vinte e quatro mil novecentos e quarenta euros e sessenta e um cêntimos) pelos custos com remunerações de funcionários da Autora;
m) €4.857.561,97 (quatro milhões oitocentos e cinquenta e sete mil quinhentos e sessenta e um euros e noventa e sete cêntimos) pelo custo da imobilização do dinheiro correspondente ao valor dos produtos apreendidos;
n) €595.430,22 (quinhentos e noventa e cinco mil quatrocentos e trinta euros e vinte e dois cêntimos) pelo custo da imobilização do dinheiro gasto pela Autora para pagamento das despesas e encargos referidas nas alíneas anteriores, calculado até ao dia 02.05.2014, ao qual acresce o custo da imobilização, calculado à taxa de juros de mora legalmente estipulada para os créditos de que sejam titulares as empresas comerciais, até que a Autora seja integralmente ressarcida pelos Réus dessas quantias;
o) €2.600.869,15 (dois milhões seiscentos mil oitocentos e sessenta e nove euros e quinze cêntimos) pelos prejuízos decorrentes da deterioração e perda de valor dos produtos apreendidos;
p) o valor correspondente ao custo de oportunidade, cuja liquidação se remete para execução de sentença;
q) €1.000.000 (um milhão de euros) referente à quebra da margem de lucro da Autora;
r) €15.000.000 (quinze milhões de euros) a título de danos não patrimoniais;
s) juros de mora, sobre cada um dos montantes referidos nas alíneas anteriores, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento, calculados à taxa aplicável às dívidas do Estado e demais entidades públicas.”.
Os Réus contestaram defendendo-se por excepção, suscitando a incompetência material do Tribunal Judicial por considerarem serem competentes os Tribunais Administrativos e Fiscais, e por impugnação.
A Autora, em resposta, pugnou pela improcedência dessa excepção.
O Tribunal da Comarca de Leiria – Instância Central – Secção Cível – Unidade 2 proferiu sentença em 05.03.2015 na qual se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, por entender que “É certo que, no caso dos autos, houve uma primeira sentença objeto de recurso perante o Tribunal da Relação de Lisboa, que determinou o reenvio do processo para novo julgamento. Tal deveu-se à circunstância de ter sido considerado o cometimento de uma nulidade processual, consubstanciada na valoração de um meio de prova inadmissível - a perícia feita em sede de inquérito.
Note-se que a sentença não foi revogada no sentido de ter sido objeto de uma decisão de mérito - e definitiva para a solução do litígio - em sentido contrário ao decidido pela primeira instância. Apenas se descortinou o cometimento de uma nulidade e se mandou repetir o julgamento. Não se acolheu a perícia determinada pelo Ministério Público e também não se deu crédito à perícia mandada fazer pelos arguidos ao laboratório C..., também ela com os vícios melhor enunciados a fls. 1997.
A meu ver, o ato lesivo não adveio, para a Autora, dessa sentença, pois que, como a mesma reconhece ao longo da sua douta petição, tudo começou com as apreensões feitas pelo IVV e validadas pelo Ministério Público em termos que a Autora considera de levianos. E quem mandou fazer a perícia inquinada não foi o Juiz, mas outras autoridades. O juiz foi alheio a tudo isso. Aliás, em face da apontada nulidade pelo Tribunal da Relação, o Tribunal da primeira instância cuidou de ordenar a realização de novas perícias a entidade credenciada. E se as apreensões se mantiveram até à prolação de decisão final, tal deveu-se às regras do processo penal.
Poder-se-ia, em abstrato, argumentar que a sentença de primeira instância proferida em 2002, ao condenar a Autora, agravou os danos que, para esta, já advinham das apreensões e validações anteriormente feitas em sede de inquérito. Mas a Autora não o alega tal como não alega que o juiz da condenação tivesse, em face da realidade processual com que se deparava, que ter conhecimento ou fundada suspeita de que as perícias estavam feridas de nulidade e, ainda assim, persistiu em condenar a Autora. Por isso, qualquer imputado erro judiciário conduziria à absolvição dos RR logo no saneamento dos autos por não se poder concluir, em face da falta de alegação, que o erro eventualmente cometido pelo juiz era, de acordo com o acima exposto, «grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativas de uma atividade dolosa ou gravemente negligente».
Se é certo que, depois da prolação do douto acórdão da Relação de Lisboa, o processo demorou vários anos, a responsabilidade civil por atrasos na justiça é da competência dos tribunais administrativos (art° 4º, n° 1, al. g), do ETAF), uma vez que os atrasos na justiça são coisa diferente do erro judiciário (vide, de novo, a noção de erro judiciário plasmada no citado art° 13°, n° 1, da Lei n° 67/2007, de 31.12).
Assim, tal como configurado na douta petição, foi um ato da Ré IVV, validado pelo Ministério Público no seio de um inquérito crime de que era titular, que esteve na génese dos alegados danos. (…)
E repete-se que o caso dos autos não é uma ação de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunal, caso em que, aí sim, a competência estaria excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal (artº 4º, nº 3, al. a), do ETAF). O erro que esteve na génese dos peticionados danos traduz-se nas apreensões indevidas (porque injustificadas atenta a normalidade depois constatada aos produtos), feitas pelo IVV e validadas pelo Ministério Público. (…)
Consequentemente, este tribunal judicial é incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio em causa nos autos, por se entender que tal competência pertence aos tribunais administrativos e fiscais – artº 4º, nº 1, al. g), do ETAF.”
Remetidos os autos a este Tribunal dos Conflitos, face ao pedido de consulta prejudicial, a Exma Senhora Presidente deste Tribunal admitiu a consulta nos termos do nº 1 do art. 15º e dos nºs 1 e 2 do art. 16º da Lei 91/2019. Na sequência do que foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º daquele diploma.
A Exma Procuradora Geral Adjunta pronunciou-se no sentido de dever ser emitida decisão que atribua a competência material para conhecer da presente acção aos tribunais comuns – no caso concreto ao Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Instância Central – Secção Cível – Unidade 2.

Vejamos.
A Autora intentou a acção supra indicada pedindo a condenação dos Réus, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, sustentando que a previsão do artigo 22º da CRP, “foi densificada pelo legislador ordinário, designadamente, no Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967, e na Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro”. Alega que “As apreensões levadas a cabo pelo IVV, a validação dessas apreensões e a ordem de apreensão da totalidade dos produtos armazenados pela Autora no IVV do Bombarral, a manutenção dessas apreensões por mais de 10 anos e a condenação da Autora pela prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios, devido a erro grosseiro na valoração da prova produzida e à total desconsideração da defesa apresentada pela aqui Autora no âmbito do aludido processo-crime, consubstanciam actos ilícitos do Estado, geradores de responsabilidade civil extracontratual” (art. 278º da p.i.).
Explica que as apreensões foram feitas e ordenadas com base em suspeitas do IVV que assentavam na alegação de ter sido visto um funcionário da Autora a adicionar água a um dos depósitos de vinho. Nesse mesmo dia e no dia seguinte, o IVV procedeu à apreensão de milhares de litros de produtos vínicos, que foi validada pelo Ministério Público o qual, além disso, ordenou a apreensão da totalidade do conteúdo de 120 depósitos, bem como a sua selagem. O volume total de produtos apreendidos à Autora ascendeu a 21.923.124 litros, mas, após a realização de análises, foi ordenado pelo Ministério Público a “desapreensão” de 10.788.149 litros.
Na sequência, em 22.07.2002 o Tribunal Judicial do Bombarral condenara os arguidos pela prática de crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares sendo que, na sequência de recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que o juízo técnico-cientifico sobre as análises aos produtos em causa tinha sido feito por uma entidade que não estava habilitada para o emitir por falta de creditação e concluiu que “ao assentar na dita prova o seu juízo para dar como provados factos determinantes para o preenchimento do tipo legal de crime, a decisão recorrida incorreu em erro notório na apreciação da prova” e determinou o reenvio do processo para novo julgamento.
Refere, ainda, que os restantes produtos vínicos, num total de 11.469.655 litros, foram mantidos apreendidos durante 10 anos, até à sentença proferida pelo Tribunal Judicial do Bombarral em 2.06.2011, transitada em 4.07.2011, e que absolveu os três arguidos e determinou a “desapreensão” e restituição dos produtos vínicos.
A Autora argumenta que “Se o Ministério Público não tivesse validado e ordenado a apreensão e se a mesma não tivesse sido efectivada pelo IVV, se a defesa e as provas produzidas pela aqui Autora no âmbito do processo-crime não tivessem sido totalmente desconsideradas pelo Ministério Público e pelo Juiz do Tribunal do Bombarral e se a decisão de levantamento da apreensão tivesse sido proferida num espaço de tempo razoável, a Autora não teria sofrido os prejuízos que, efectivamente, sofreu” (art. 322º da pi).
Na opinião da Autora, existe um nexo causal directo e inequívoco entre a manutenção da apreensão durante mais de 10 anos e os prejuízos sofridos (artigos 304º e 323º da p.i.). Alegando concretamente nos artigos “317.º A falta de diligência com que actuaram manifestou-se nas decisões de validar e ordenar as apreensões e nos próprios actos de apreensão de uma quantidade exorbitante de vinho e aguardente, sem qualquer fundamento sério e válido, 318.º /como, e sobretudo, na ausência de decisão que pusesse fim à apreensão ilegal dentro de um período de tempo razoável. 319.º E, ainda, na valoração eivada de erros grosseiros em que assentou a condenação da Autora, em 2002, pela prática do crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artigos 211º, nº 1, da CRP e 40º, n.º 1, da LOSJ). Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do artigo 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data de propositura da acção - 27.06.2014 - é a que aqui releva, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro) replicava no nº 1 do art. 1º essa genérica previsão que era concretizada no art. 4º, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. n.º 08/14, «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo».
Em matéria de responsabilidade civil extracontratual no âmbito da jurisdição administrativa releva, para o caso, a alínea g) do nº 1 do art. 4º do ETAF (aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/2, na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro), que estabelece competir aos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios que tenham por objecto: “Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”.
Aqui relevantes, o mesmo artigo elenca as exclusões do âmbito da jurisdição: o nº 2 reporta-se exclusivamente aos “litígios que tenham por objecto a impugnação” de decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal (alínea b) ou de actos relativos ao inquérito e à instrução criminais, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões (alínea c), e o nº 3 exclui a apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como as correspondentes acções de regresso [alínea a)].
Relacionado com esta regra de competência, o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro, regula nos arts. 12º a 14º o regime substantivo da responsabilidade por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional, distinguindo entre responsabilidade pela administração da justiça e a responsabilidade por erro judiciário.
Importa, portanto, determinar se a acção, tal como foi configurada pela Autora se deve incluir na competência da jurisdição administrativa e fiscal ou se estamos perante um erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição e, portanto, excluída da apreciação pelos tribunais administrativos e fiscais.
Como escreve Carlos Cadilha, em anotação ao artigo 12º da referida Lei: “a expressão administração da justiça é aqui utilizada em sentido amplo, abrangendo quer os actos materialmente administrativos dos serviços da justiça (assim se compreendendo que aí se faça exemplificativamente referência aos danos resultantes da violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável), quer os actos jurisdicionais em sentido próprio. Por conseguinte, a remissão para o regime de responsabilidade civil da função administrativa engloba, à partida, quaisquer direitos indemnizatórios por danos derivados do exercício da função jurisdicional lato sensu (…)” (cfr. Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, pág. 196).
Assim, “A competência da jurisdição administrativa compreende todas as acções de responsabilidade por actos e omissões da função jurisdicional que se fundem na (má) administração da justiça, no seu deficiente funcionamento, «designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável», seja qual for a jurisdição a que pertença o tribunal em causa. (…) Diversamente, quando a responsabilidade por acto da função jurisdicional se fundar em erro judiciário, em erro evidente na determinação, interpretação ou aplicação dos factos ou do Direito — ou, numa outra fórmula, quando respeitar aos danos decorrentes de decisões jurisdicionais “manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto” -, a jurisdição administrativa só é competente se tal erro provier de um tribunal administrativo [alínea a) do art. 4.°/3 do ETAF, a contrario] (cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, pág. 60).
Neste sentido decidiu-se no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 10.03.2011, Proc. nº 13/10 [por referência ao ac. deste Tribunal de 29.11.2006, Proc. nº 03/05], “hoje, é pacífico o entendimento jurisprudencial, na linha deste último aresto, de que estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa; todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à especifica função de julgar, inscrevem-se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição administrativa - (cfr. entre outros, além do supra transcrito aresto de 12-05-1994, os acórdãos deste Tribunal de Conflitos de 23-01-2001, Conflito n.º 294, e de 21-02-06, Conflito nº 340, e, ainda, entre outros, os Acórdãos do STA de 13.02.1996, Proc. nº 38.474, in AP DR de 31-8-98, 1095; de 15.10.98, Proc. nº 36.811; de 12.10.2000, Proc. n.° 45.862, in AP DR de 12-2-2003, 7360; de 12.10.2000, Proc. n.º 46.313, in AP DR de 12-2-2003, 7378; e de 22-05-2003, Proc. n.º 532/03). Apesar de que naquele Conflito não estava em causa a responsabilidade derivada da função de julgar, mas apenas “a ineficiência da actuação dos orgãos do Estado encarregados da investigação criminal que, na óptica do A., não procederam às diligências de investigação da queixa crime apresentada contra os denunciados.”
Neste processo a causa de pedir é complexa, conforme decorre da petição inicial, por alegação de factos relativos a erro judiciário, atraso na administração da justiça, actuação ilícita do Ministério Público e do IVV, todos no âmbito do processo-crime.
Com efeito, face aos termos em que se encontra formulado o pedido, verifica-se que a Autora invoca, por um lado, a existência de erro grosseiro da condenação – um erro judiciário -, como, por outro lado, a prática e/ou omissão de actos e diligências que terão contribuído para o arrastar das apreensões por tempo irrazoável. Invoca a A. além da “leviandade e incúria do IVV e do tribunal” na manutenção das apreensões por tempo excessivo, que podem configurar um deficiente funcionamento da administração da justiça, mas, igualmente, invoca a ocorrência de erro judiciário consubstanciado na decisão que determinou a sua condenação, proferida com erro grosseiro.
Ou seja, no caso concreto, estamos perante acção de responsabilidade civil fundada em erro judiciário com erro grosseiro, cometido em processo que correu os seus termos nos tribunais comuns, e não num tribunal administrativo, imputando-se danos à concreta decisão proferida nesse processo-crime, embora conjugada com outros actos de manutenção das apreensões.
Assim, verifica-se a previsão contida na alínea a) do nº 3 do art. 4º do ETAF [actualmente o art. 4º, nº 4, alínea a) do ETAF], razão pela qual se conclui pela incompetência do tribunal administrativo para conhecer e decidir a acção, cabendo a competência material para o seu conhecimento aos tribunais comuns.
É que, como se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 22.09.2011, Conflito nº 05/11 (citado pela EMMP e disponível em www.dgsi.pt), onde se sumariou: “I – De acordo com o disposto no art. 4º, nº 3, alínea a) do ETAF (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.2, alterado pela Lei n.º 10/D/2003, de 31.12) fica excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometida por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como as correspondentes acções de regresso”.
II – Esta norma tem ínsita a ideia de que cada jurisdição deve julgar as acções de indemnização fundadas nos erros judiciários por si cometidos.
III – O conceito de erro judiciário encontra-se definido no art. 13º, n.º 1 da Lei n.º 67/07, de 31.12, reportando-se para além das sentenças penais condenatórias e da privação injustificada da liberdade, às “decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto”.
IV – Os tribunais comuns são competentes para apreciarem uma acção com fundamento em responsabilidade civil extracontratual do Estado que tem “como causa de pedir, em matéria de ilicitude, actos praticados por Magistrado do MºPº e Judiciais, Órgãos de Polícia Criminal, Inspecção Geral de Jogos, por terem ordenado e efectuado buscas e apreensões de bens, autorizadas pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal de Setúbal, nas instalações da B…, de que os Autores eram sócios e ainda nas suas residências”.
Diz-se neste acórdão, nomeadamente, o seguinte: “Vista a petição inicial verifica-se que os autores, para lá do inadequado funcionamento da máquina judicial, imputam a actos ilegais ou injustificados de um juiz de um tribunal comum (ao ordenar buscas e escutas telefónicas) a causa dos prejuízos que sofreram tendo de qualificar-se tais actos como “erro judiciário”, por corresponderem a uma apreciação indevida dos respectivos pressupostos de facto, sendo que, tais actos foram já erradicados nos termos do n.º 2 do referido preceito (“O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”).
Tendo, consequentemente, e, nos termos do disposto no art. 4º, nº 3, alínea a) do ETAF, resolvido o conflito, com a atribuição da competência para conhecimento da acção aos tribunais da jurisdição comum.
Também no presente caso se nos afigura aplicável o entendimento adoptado neste acórdão, tendo em conta que no caso dos autos a decisão jurisdicional errónea invocada pela Autora veio a ser revogada, constituindo a mesma o fundamento determinante, embora não único, do pedido indemnizatório formulado (cfr. no mesmo sentido o acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 27.09.2023, Proc. nº 32/23.0YFLSB).

Pelo exposto, e nos termos do disposto no art. 17º da Lei nº 91/2019, de 4 de Setembro, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe aos Tribunais Comuns conhecer da presente acção - no caso ao Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Instância Central – Secção Cível – Unidade 2.

Lisboa, 15 de Novembro de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.