Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:05016/19.0T8MTS.P1.S1
Data do Acordão:09/13/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:I - A Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, não é aplicável à ligação à rede pública de saneamento, que “não assume a qualificação de serviço público essencial, como acto prévio ao serviço a prestar” (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Fevereiro de 2021, disponível em www.dgsi.pt, proc. n.º 01685/18.7BEBRG).
II - Deve ser qualificada como taxa a quantia paga pelo respectivo serviço.
III - A sua cobrança coerciva segue o regime das execuções fiscais, ficando na dependência e sob o controlo dos tribunais tributários.
Nº Convencional:JSTA000P28155
Nº do Documento:SAC2021091305016
Recorrente:INDAQUA MATOSINHOS - GESTÃO DE ÁGUAS M. S.A.
TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO- JUÍZO LOCAL CÍVEL DE MATOSINHOS-JUIZ 3
TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO DO NORTE
Recorrido 1:.......
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 10 de Outubro de 2019, Indaqua - Gestão de Águas de Matosinhos, S.A. instaurou no Juízo Local Cível de Matosinhos, Comarca do Porto, uma ação contra AA, pedindo a sua condenação a pagar-lhe “a quantia total de 2.283,63€, sendo 2.122,93 € de capital, e 123,80€ de juros vencidos calculados à taxa legal de mora comercial em vigor desde a data de vencimento das supra citadas faturas (22/11/2018) até hoje (26/09/2019), e ainda os vincendos às sucessivas taxas legais comerciais de mora em vigor até efetivo e integral pagamento, bem como as despesas administrativas havidas no valor de 36,90€”.
Para o efeito, e em breve síntese, alegou ser concessionária da exploração dos serviços municipais de distribuição de água, de recolha e de tratamento de água residuais no concelho de Matosinhos, por contrato em vigor desde 17 de Setembro de 2007; ter construído, no âmbito do contrato de concessão e na sequência do pedido de ligação ao sistema público que a ré lhe dirigiu, um ramal de ligação de água e saneamento junto do imóvel da ré; mas que a ré não pagou as facturas emitidas para liquidação da tarifa correspondente à “construção do ramal de água, ramal de abastecimento de água, vistorias efetuadas ao imóvel do mesmo e tarifas de ligação de águas residuais”, no valor total de € 2.122,93, que oportunamente lhe foram remetidas; facturas essas que estão de acordo com os tarifários em vigor, devidamente publicitados anualmente.
Citada, a ré não contestou.
Notificada para se pronunciar sobre a competência material do tribunal para a presente acção, a autora pronunciou-se no sentido da respectiva competência.
Por sentença de 26 de Fevereiro de 2020, o tribunal (Juízo Local Cível de Matosinhos - J 3) absolveu a ré da instância, por incompetência do tribunal em razão da matéria. Para assim decidir, o tribunal considerou que, no caso dos autos, não estava em causa uma relação de consumo tal como entendida pelo artigo 4.º, n.º 4, alínea e) do ETAF, uma vez que a autora não pretendia cobrar o preço de um serviço disponibilizado, como sucederia com o fornecimento de água ou de tratamento de resíduos, mas impor uma taxa/tarifa pela mera colocação à disposição dos meios para tal fornecimento.
Assim, considerou aplicável o disposto na al. e) do n.º 1 do referido artigo 4.º e, portanto, ser a acção do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal.
Inconformada, a autora interpôs recurso de apelação, defendendo que a situação dos autos, apesar de não configurar um contrato de fornecimento de bens em si mesmos (água e saneamento), integra uma relação contratual de consumo, iniciada por solicitação expressa da ré (consumidora) junto da autora (concessionária), com vista à execução de ramais de ligação para prestação de serviços de fornecimento de água e de saneamento públicos.
Sustentou ainda ser uma entidade privada, que não actuou como titular de um poder público, e estar apenas em causa uma relação de consumo privada para prestação de um bem público essencial e não um contrato ou acto administrativo.
Sublinhando, por fim, a ausência de aplicação de quaisquer taxas com caráter tributário, a autora concluiu serem competentes para conhecer da causa os tribunais cíveis comuns.
Por acórdão de 24 de Novembro de 2020, o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso, concluindo que o conhecimento da acção compete à jurisdição administrativa e fiscal, nos termos da al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, porque:
“A causa de pedir da presente acção consiste na construção pela Autora, a pedido da Ré, de um ramal de abastecimento de água, com as inerentes vistorias do imóvel e tarifas de ligação de águas residuais, com um custo global de € 2 122,93”;
– “o contrato de Parceria Pública celebrado entre a Autora e o Município de Matosinhos é um contrato administrativo, através do qual a Autora se obrigou a explorar um serviço de utilidade pública, na sequência de uma Parceria Pública, celebrada à luz de regras públicas e sujeito ao regime de direito público”;
– contrariamente ao contrato de fornecimento de água, “a construção do ramal de água e saneamento não é de índole estruturalmente civil”, mas antes “uma atividade subsequente a uma decisão de um poder soberano, por a ligação ao sistema de água e saneamento ser obrigatória, cabendo em exclusivo à entidade administrativa a decisão de definir o modo de execução do ramal (cf. art.° 69.° do D.L. n.° 194/2009, de 20/08)”.
– “Por inerência, tais serviços teriam necessariamente que ser ordenados por uma entidade pública ou por uma entidade privada dotada de prorrogativas de autoridade pública, como é o caso da aqui Autora”;
“Em face deste carácter de serviço público, a contrapartida a pagar é uma tarifa ou taxa (e não um preço)”.
A autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes:
«1. Os presentes autos têm por base as faturas emitidas e enviadas à Recorrida na sequência dos pedidos de ligação desta à rede pública de fornecimento de água e drenagem de águas residuais, e que originou a disponibilização por parte da Recorrente dos respetivos ramais com os inerentes custos peticionados.
2. A fatura nº ……266, no valor de 1.470,18€, datada de 2/11/2018, com vencimento a 22/11/2018, e a fatura nº ……267, no valor de 652,75€, datada de 02/11/2018, com vencimento a 22/11/2018, respeitam aos custos/preço inerentes à construção do ramal de abastecimento de água, do ramal de saneamento, vistorias ao imóvel da Recorrida e tarifa de ligação de águas residuais.
3. Trata-se, assim, de serviços ligados à prestação de bens públicos essenciais, conforme resulta da causa de pedir e pedido formulado.
4. Concretamente, trata-se de uma relação contratual entre a Recorrente (concessionária) e a Recorrida (consumidor), após esta última ter solicitado expressamente (cfr. docs. 1 e 2 da p.i.) junto da Recorrente, a execução de ramais de ligação para prestação de serviços de fornecimento de água e de saneamento públicos.
5. Relação contratual esta que, apesar de não configurar o contrato de fornecimento do bem em si (água e saneamento), trata-se de uma relação de consumo.
6. Sendo a A. a prestadora de serviço: a que exerce uma atividade económica, com caráter profissional, para obtenção de benefícios, incluindo a construção de ramais, a efetiva ligação e contratação do fornecimento do bem: drenagem de águas residuais, e a Ré a consumidora: aquela a quem foram fornecidos bens, no caso, prestados serviços, destinados a uso não profissional.
7. Nos termos do art 1º da Lei 24/96 atualizada, consumidor é cada um de nós, é todo aquele todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.
8. São, assim, elementos da relação de consumo, o consumidor e o fornecedor (elementos subjetivos) o produto ou o serviço (elemento objetivo), independentemente do tipo contratual celebrado entre as partes, o que se verifica preenchido no caso dos autos.
9. A relação de consumo relativa aos bens de serviço público essencial (água e saneamento) não se subsume ao abastecimento mensal de água e saneamento, mas inclui todos os serviços relacionados.
10. Quanto à relação de consumo, é deveras relevante o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2020, proferido no processo 3392/19.4T8MTS.P1, em que a Indaqua Matosinhos era Autora.
11. Por outro lado, a A. não pratica atos administrativos, nem celebra contratos administrativos com os utilizadores, presta apenas, por força do contrato de concessão (este sim público), serviços/bens de caráter público essencial e, a considerar-se – o que por mero dever de patrocínio se admite - que atua no âmbito de poderes públicos transmitidos por força da concessão,
12. Então todos os seus poderes teriam que ser considerados de natureza pública, e todos os seus atos teriam natureza pública incluindo os praticados no abastecimento mensal de água e prestação de saneamento a todos os consumidores.
13. Dado que todos os seus poderes e atos têm a mesma origem: o contrato de concessão.
14. E a verdade é que a alteração efetuada pela Lei 114/2019 ao art. 4º do ETAF não refere contratos de consumo ou contratos respeitantes a bens públicos essenciais mas, de uma forma muito mais abrangente, refere-se a relações de consumo, aqui incluídos todos os atos relacionados com o contrato de consumo.
15. Nos termos do disposto na alínea e) do atual art. 4º do ETAF, na redação dada pela Lei 114/2019 publicada, recentemente, a 12.09.2019 em Diário da República está excluída da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva. - leia-se o Anteprojeto de Proposta de Lei - in http://www.smmp.pt/wp-content/uploads/Oficio-n-452-de-14-03-2018.pdf.
16. Ou seja, a alteração legislativa veio no sentido de clarificar as questões interpretativas, nomeadamente jurisprudenciais, e com conflitos de competência, que se levantavam no âmbito da anterior redação do art. 4º do ETAF.
17. Consequentemente, e desde logo, não faz sentido fazer tábua rasa da clarificação interpretativa que veio a ser plasmada na nova disposição legal – a própria lei, com justificação expressa no seu anteprojeto, veio resolver as dúvidas de interpretação até aí existentes. Em simultâneo, não faz sentido igualmente, fundamentar as atuais decisões nesta matéria com base na jurisprudência anterior à entrada em vigor da supra citada Lei, que se tornaram obsoletas, na medida em que se tratava até aí de uma questão de interpretação da Lei, agora ultrapassada.
18. Muito menos sentido fará, a mesma matéria vir a ser discutida nuns casos/processos no TAF com base em tal entendimento e, noutros casos/processos, vir a ser discutida nos tribunais comuns com base no entendimento da atual Lei.
19. No fundo, o que a alínea e) do art. 4º do ETAF diz é o seguinte: mesmo que esteja em causa a prestação de um serviço público essencial no âmbito de uma relação de consumo, os Tribunais Administrativos e Fiscais não são competentes para decidir sobre tal matéria.
20. Obviamente, tratando-se de uma relação de consumo particular, serão sempre competentes os tribunais cíveis comuns.
21. Neste sentido, e nos demais supra invocados, leia-se o Acórdão da Relação do Guimarães de 04.03.2020, proferido no processo 202/18.3T8MTC-A.G1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2020, proferido no processo 3392/19.4T8MTS.P1, os muito recentes Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 12.10.2020, de 27.10.2020 e de 24.11.2020, em que a Indaqua Matosinhos era parte.
22. E, em complemento, o Acórdão da Relação do Porto de 13.09.2018 bem como o Acórdão da Relação do Porto de 13.06.2019 (processo 22456/18.5T8PRT-A.P1 do Juízo Local Cível 3 deste Tribunal).
23. Assim sendo, a A. não atua como titular de um poder público, é uma entidade privada, nem em causa está um contrato ou ato administrativo – mas tão só a relação de consumo privada para prestação de um bem público essencial.
24. Tratando-se de uma relação de consumo, como é, para prestação de bens públicos essenciais, dúvidas não restam quanto ao supra exposto na jurisprudência e quanto à letra da lei (alínea e) do art. 4º do ETAF)
25. Por último, em causa nos autos está um preço/tarifa, ou qualquer taxa, muito menos de caráter tributário, relativo aos serviços que a A prestou, por solicitação expressa da Recorrida.
26. Nos termos do artigo 82º da Lei da Água (Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro), resulta que os preços ou, como são chamados, tarifas, são instrumentos de remuneração e, no caso específico de o serviço estar concessionado, visam, ainda, assegurar o equilíbrio económico-financeiro da concessão e uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária, nos termos do respetivo contrato de concessão.
27. Rege o “Princípio da recuperação dos custos”, nos termos do qual os tarifários (preçários) dos serviços de águas e resíduos devem permitir a recuperação tendencial dos custos económicos e financeiros decorrentes da sua provisão, em condições de assegurar a qualidade do serviço prestado e a sustentabilidade das entidades gestoras, operando num cenário de eficiência de forma a não penalizar indevidamente os utilizadores com custos resultantes de uma ineficiente gestão dos sistemas;” – cfr. RECOMENDAÇÃO ERSAR Nº 01/2009 in http://www.ersar.pt/pt/o-que-fazemos/recomendacoes
28. Sentido este – falta de ius imperi da A. e inexistência de caráter de tributo – sufragado igualmente nos supra referidos Acórdão da Relação do Guimarães de 04.03.2020, no processo 202/18.3T8MTC-A.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2020 no processo 3392/19.4T8MTS.P1.
29. Resta ainda acrescentar a última sentença proferida pelo TAF do Porto a 30.10.2020, no processo 2854/19.8BEPRT, em que a Indaqua Matosinhos era Ré, que declarou ser materialmente incompetente para decidir.
30. Em suma, quer pela existência de uma relação de consumo privada quer pela inexistência de aplicação de quaisquer taxas com caráter de tributo, verifica-se a competência do tribunal comum para decidir nos presentes autos.
31. Terá de concluir-se pois que, o douto Acórdão recorrido violou os artigos 89º nº 1 do CPC, o art. 157º do CPTA, os arts. 1º e 4º nº 1 al. e) do ETAF, art. 211º nº 1 e art. 212º nº 3 da CRP, art. 18º nº 1 da LOTJ e do art. 6º, nº 1, al. c) do Código dos Contratos Públicos, por errada interpretação jurídica.
Termos em que deverá ser admitido o presente recurso de revista, por legal e tempestivo, e dar-se provimento ao mesmo, revogando-se o douto Acórdão recorrido, devendo os autos prosseguir até final».
Não houve contra-alegações.

2. Por despacho da Senhora Conselheira Relatora foi determinada a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos.
Após diversas vicissitudes constantes dos autos, o recurso foi enviado ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que proferiu o despacho de fls. 85, determinando que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos). O Ministério Público emitiu parecer, no sentido de ser atribuída competência, em razão da matéria, para conhecer da presente ação, ao Juízo Local Cível de Matosinhos - J3.
Cumpre, assim, definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio em causa caberá à jurisdição comum ou à jurisdição administrativa e fiscal.

3. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.
Com a especificação que adiante se fará, está em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Tendo em conta o objecto do presente recurso, tem especial relevo a (actual, isto é, resultante da Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro) al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF, que, como se escreveu por exemplo no acórdão de 20 de Janeiro de 2021, www.dgsi.pt, proc. n.º 1574/20.5T8CSC.S1, veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” (al. e) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais). Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII, da qual veio a resultar a Lei n.º 114/2019, consta expressamente que se “Esclarece (…) que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
A Lei 114/2019 entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo.
Tratando-se de uma alteração respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal, a aplicação no tempo dessa exclusão não atinge as acções pendentes, de acordo com o disposto no artigo 5.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O mesmo princípio consta, aliás, do n.º 2 do artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, preceito incluído no Título V, relativo aos Tribunais Judiciais, e que prevê duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente (recorde-se que no requerimento de injunção indica-se como “tribunal competente para distribuição o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra).
Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 27 de Novembro de 2018, na falta de disposições de direito transitório aplicáveis, é por referência às versões da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 2, da Lei de Organização do Sistema Judiciário; recorda-se que a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que alterou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo).
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).
Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…».”.
A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.4. No caso dos autos a autora, concessionária dos serviços municipais de distribuição de água, recolha e tratamento de águas residuais do concelho de Matosinhos, invoca como causa de pedir a prestação dos serviços acima descritos, a solicitação da ré, no âmbito das suas funções de concessionária; e pede o pagamento respectivo, cujo montante não resultou de acordo das partes, mas de um tarifário fixado nos termos do Regulamento do Serviço Público Municipal de Abastecimento de Água do Concelho de Matosinhos, disponível em https://www.cmmatosinhos.pt/cmmatosinhos2020/uploads/document/file/49/regulamentoindaquamatosinhos.pdf
À data da propositura da ação, a redação do n.º 1 do artigo 1.º do ETAF, resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, era a seguinte: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. Não obstante não conter a menção aos “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (como sucede atualmente), certo é que a al. o) do n.º 1, do artigo 4.º, para o qual remetia aquele art. 1.º, contemplava expressamente as relações jurídicas administrativas e fiscais.
Sobre a noção de “relação jurídica administrativa”, escreveu José Carlos Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53: “na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.


4. Nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Regulamento do Serviço Público Municipal de Abastecimento de Água do Concelho de Matosinhos:
A Indaqua Matosinhos, ao abrigo do Contrato de Concessão da Exploração e Gestão dos Serviços Públicos de Abastecimento de Águas e de Recolha, Tratamento e Rejeição das Águas Residuais ao Município de Matosinhos, fornecerá em regime de exclusividade na área do Município, água destinada ao consumo doméstico, comercial, industrial, público ou outro, salvo nos casos previstos na Lei, bem como procederá à recolha, tratamento e rejeição das águas residuais domésticas e industriais, nas condições previstas no presente Regulamento.
Segundo o art. 25.º, do mesmo Regulamento:
1 - Por cada ramal de ligação ao sistema público a Indaqua Matosinhos cobrará os serviços prestados, de acordo com o tarifário em vigor.
2 - A importância devida será paga de uma única vez, previamente à execução do ramal, pelo requerente interessado, mediante fatura emitida pela Indaqua Matosinhos.”.
O Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto, estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos.
Prevê-se no respetivo preâmbulo que “As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente. Estes serviços devem pautar-se por princípios de universalidade no acesso, de continuidade e qualidade de serviço e de eficiência e equidade dos tarifários aplicados.
O actual regime de abastecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos assenta na dicotomia entre sistemas municipais, situados na esfera dos municípios, onde se incluem também os sistemas intermunicipais, e sistemas multimunicipais, situados na esfera do Estado.
No quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais, os municípios encontram-se incumbidos de assegurar a provisão de serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, nos termos previstos na Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, sem prejuízo da possibilidade de criação de sistemas multimunicipais, de titularidade estatal.(…)
E resulta dos artigos 2.º, n.º 1, 6.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20/08, na redação da Lei 12/14, de 6 de Março, que a gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos é uma atribuição dos municípios, podendo ser concessionada a entidades terceiras.
Apesar de ser uma entidade privada, a autora exerce funções de interesse público (descritas no preâmbulo do Decreto-Lei nº 194/2009 como serviços públicos de carácter estrutural), que lhe foram atribuídas pelo município através de um contrato de concessão e que têm de ser executadas segundo “princípios de universalidade no acesso, de continuidade e qualidade de serviço e de eficiência e equidade dos tarifários aplicados”.
Por sua vez, a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente. Entre os serviços públicos abrangidos encontra-se o serviço de fornecimento de água (n.º 2, alínea a), do mesmo diploma).
Coloca-se então a questão de saber se deve entender-se que, nesta acção, está ou não em causa um litígio correspondente à prestação de serviços públicos essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96.
Ora, no acórdão de 17 de Fevereiro de 2021 do Supremo Tribunal Administrativo, disponível em www.dgsi.pt, proc. n.º 01685/18.7BEBRG, entendeu-se que «a ligação à rede pública de saneamento, como acto prévio ao serviço a prestar, não assume a qualificação de serviço público essencial, daí não lhe ser aplicável a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho» e que «uma coisa é a ligação ao sistema público de saneamento, facturada uma única vez ao utilizador, ocorrida antes do início da utilização, outra, a prestação do serviço de recolha de águas residuais que são facturadas aos utilizadores, de forma periódica (artigo 67.º do Dec. Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto – que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos), englobando, entre outros, a prestação dos serviços de manutenção, conservação e renovação de ramais, de recolha e encaminhamento de águas residuais, a manutenção, conservação e renovação de caixas de ligação de ramal (salvo se por motivo imputável ao utilizador) e a instalação de medidor de caudal individual) (…)».
É este entendimento que aqui se reitera.

5. Tal como se considerou no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo acabado de citar, assumem a natureza de taxas as quantias pagas pelos serviços que aqui estão em causa: são fixadas unilateralmente nos termos do Regulamento citado, correspondendo à prestação de um serviço público; a sua cobrança, nos termos do disposto no artigo 12.º do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro), segue o regime das execuções fiscais («2. As dívidas que não forem pagas voluntariamente são objecto de cobrança coerciva através de processo de execução fiscal, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário»). Recorde-se, seguindo novamente de perto o mesmo acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, que “O processo de execução fiscal tem a natureza de processo judicial, que está expressamente reconhecida pelo n.º 1 do art. 103.º da LGT. O que significa, para além do mais, que, logo que instaurada, a execução fiscal fica na dependência e sob o controlo do juiz do tribunal tributário, não obstante a intervenção deste fique reservada para as situações de conflito de direitos que cumpra dirimir, tarefa constitucionalmente reservada aos tribunais, como resulta do disposto nos arts. 110.º, 111.º, 202.º, n.º 2, e 212.º, n.º 3, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP), (…)».

6. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso, declarando-se que o conhecimento do presente litígio pertence ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, concretamente aos tribunais fiscais.

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).

A relatora atesta que a adjunta, Senhora Vice-Presidente do STA, Conselheira Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa, votou favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.

Lisboa, 13 de Setembro de 2021

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Henrique Araújo