Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:029/21.5TYFLSB
Data do Acordão:06/22/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANA PAULA BOULAROT
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P29800
Nº do Documento:SAC20220622029
Recorrente:A.......
Recorrido 1:DIREÇÃO GERAL DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA
CONSELHO DOS OFICIAIS DE JUSTIÇA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: CONFLITO 29/21.5TYFLSB


ACORDAM, NO TRIBUNAL DOS CONFLITOS

I AA, intentou ação administrativa contra DIREÇÃO GERAL DA ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA E CONSELHO DOS OFICIAIS DE JUSTIÇA, pedindo que seja declarada a nulidade da sua suspensão comunicada por notificação de 17 de Novembro de 2020, tendo em consideração que a Inspeção Extraordinária n.º 120-EXT./19, através da qual lhe foi atribuída a classificação de ..., por violação do n.º 2 do Decreto-Lei 343/99 e do n.º 3 do RICOJ, a violação dos artigos 64º, n.º 1, 59.°, n.° 1, alínea b) e 13.º, todos da CRPortuguesa, restabelecendo-se a situação anterior.
Alega, em síntese, que na aludida ação inspetiva extraordinária não foram ponderadas as circunstâncias em que decorreu o exercício das suas funções, não tendo sido avaliados os elementos complementares que reportavam ao período da inspeção (cf. n.° 2 do DL 343/99 e n.º 3 do RICOJ); não poderia ter sido avaliado e classificado, já que a classificação dos oficiais de justiça é realizada em regra de 3 anos; o COJ procedeu à sua avaliação e classificação fazendo crer que alguns dos seus superiores apenas tinham como intento afastar o Autor da atividade dos tribunais e concluir pela sua suspensão e proceder à abertura de inquérito.

O Ministério da Justiça/Direção-Geral da Administração da Justiça (DGAJ) e o Conselho dos Oficiais de Justiça contestaram excepcionando primeiramente a incompetência material absoluta dos Tribunais Administrativos e Fiscais, porquanto o acto cujos efeitos o Autor pretende ver declarados nulos é a deliberação do Conselho Superior de Magistratura de 19 de Maio de 2020, tal como decorre de toda a sua argumentação, que constitui a causa de pedir, na qual centra o ataque no Relatório da Inspeção que fundamenta a classificação de serviço atribuída. E da conjugação do disposto nos artigos 169° e 170º, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei 21/85, de 30 de Julho, na redação atualmente em vigor, decorre que os meios de impugnação jurisdicional de atos administrativos do Conselho Superior da Magistratura, seguem a forma da ação administrativa prevista no Código de Processo nos Tribunais Administrativos, sendo competente para o seu conhecimento a secção de contencioso do STJ. Por sua vez, estabelece a alínea c) do n.° 4 do artigo 4º do ETAF, que a apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente, estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição
administrativa e fiscal. Portanto, o Tribunal competente para apreciar e decidir as impugnações contenciosas das deliberações do CSM é o Supremo Tribunal de Justiça, que não integra a jurisdição administrativa, pelo que, nos termos dos dispositivos legais referidos, deveria o Autor ter apresentado recurso para o STJ da deliberação do CSM, de onde resulta a incompetência do TAF (...), em razão da matéria para julgar a acção.

O Autor não respondeu.

O Tribunal Administrativo ... produziu decisão a julgar-se incompetente em razão da matéria.

Foram os autos remetidos à secção de contencioso deste Supremo Tribunal de Justiça, na qual foi proferido o Acórdão de fls 77 a 89, a declarar este Órgão incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, tendo absolvido as demandadas da instância.

O Exº Senhor Conselheiro Relator, após o trânsito em julgado daquele Aresto, por despacho de fls 104 e 105 suscitou o conflito negativo de jurisdição, nos termos dos artigos 109º, nºs 1 e 2 do CPCivil e 9º, nº 1 da Lei 9/2019, de 4 de Setembro, tendo ordenado a remessa dos autos ao Tribunal de Conflitos para a resolução do dissenso.

Notificadas as partes, nada disseram.

O Exº Senhor Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de a competência ser deferida ao Tribunal Administrativo.

II O único problema a resolver no âmbito deste recurso é o de saber a quem pertence a competência para o julgamento da presente acção, mostrando-se assente para a economia da decisão proferenda, o iter processual enunciado supra.

Quid inde?

A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais, cfr Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 88 e 89.

Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido abstracto ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída, ou, a determinação das causas que lhe cabem; em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa, cfr Manuel de Andrade, ibidem e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, 7.

Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação. Infere-se da lei a existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta, a incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral.», cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 128.

In casu, a questão suscitada, prende-se com a incompetência absoluta do Supremo Tribunal de Justiça (secção de contencioso), em razão da matéria.

Começamos por referir, como ponto de partida, que o acto cuja invalidade o Autor pretende ver declarada é o despacho da Senhora Vice-Presidente do COJ, datado de 15 de Setembro de 2020, que determinou a suspensão de funções daquele e ordenou a instauração de um processo de inquérito.

Dispõe o normativo inserto no artigo 64º do CPCivil (em consonância com o artigo 211º da CRP «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.») «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.», acrescentando o artigo 65° «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.».

De outra banda, com interesse para a dilucidação da problemática em tela, fazemos apelo aos normativos insertos nos artigos 164º a 173º do EMJ, dos quais decorre a competência da secção de contencioso do STJ, confinada à acção de anulação de deliberações do CSM.

Neste conspectu, ainda, por último, convém chamar à colação o artigo 1º, nº 1 do ETAF no qual se predispõe que «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.», estando elencadas no artigo 4º, nº 1 de tal diploma, as questões que, nomeadamente, são da competência de tais Tribunais.

Quererá isto dizer que a intervenção dos Tribunais Administrativos se justificará se houver que dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito de relações jurídicas administrativas, isto é, o que importará para declarar a competência daqueles Tribunais é saber se o conflito entre as partes nestes autos, é um conflito de interesses públicos e privados e se este mesmo conflito nasceu de uma relação jurídica administrativa.

O artigo 4º do ETAF discrimina, nos seus vários segmentos, qual o objecto dos litígios que compete apreciar pela jurisdição administrativa (e fiscal), a saber:
«1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:
a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;
b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;
c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;
b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;
c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;
d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.».

Daqui deflui, com mediana clareza, que constituindo o pedido dos autos na apreciação e subsequente declaração pelo Tribunal da invalidade de um acto administrativo, tal como o mesmo nos vem definido pelo artigo 148º do CPAdministrativo, consistente na atribuição de uma notação de serviço e subsequente instauração de um inquérito, consubstanciado na decisão da Vice-Presidente do COJ, sem embargo de tal acto provir de uma deliberação anterior do CSM - a decisão produzida no recurso hierárquico necessário interposto da deliberação do COJ de 19 de Maio de 2020 no âmbito da providência inspectiva de que resultou a atribuição da notação de «...», o que aconteceu nos termos do artigo 118º, nº2 do DL 343/99, de 26 de Agosto -, é aquele o objecto das irregularidades imputadas e é esse o acto cujos efeitos se visam destruir, tendo em atenção o disposto no artigo 94º, nº1 do DL 343/99, de 26 de Agosto, a qual poderia, como pode, interpor, tendo em atenção o preceituado no artigo 198º, nº4 do CPA, face ao indeferimento ocorrido naqueloutra impugnação, cfr Novo Código do Procedimento Administrativo, Anotado e Comentado, 6ª Edição, Fernando Gonçalves, Manuel João Alves, Vítor Manuel Freitas Vieira, Rui Miguel Gonçalves, Bruno Correia, Mariana Violante Gonçalves, 508/509.

Se bem que podemos constatar que ambas as jurisdições puseram os termos da equação de forma correcta, na medida em que enunciaram que a medida da competência se afere pela análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do Tribunal, segundo a versão apresentada em juízo pelo Autor, isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respectivos fundamentos - pedido e causa de pedir - as conclusões a que chegaram, mostram-se dissonantes, sendo certo que a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos, nesta mesma sede, tem entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem actos de natureza estritamente administrativa cabe apenas na esfera dos Tribunais Administrativos.


No caso sujeito, a acção, na configuração resultante dos pedidos e causa de pedir, não cabe na competência do Supremo Tribunal de Justiça, na sua Formação contenciosa, por não estar em causa a nenhuma deliberação a se do CSM sujeita a impugnação jurisdicional nos termos do artigo 169º do EMJ, mas antes na dos Tribunais Administrativos, por ter sido posta em causa a legalidade da decisão tomada pela Vice-Presidente do COJ, artigo 4º, nº 1, alínea b) do ETAF, a qual se pretende ver declarada nula e de nenhum efeito, estando em causa uma acção tipicamente administrativa, cfr Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Volume II, 2ª edição, 167; Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, 1999, 148; Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa - Lições, 3ª Edição, 2000, 79.

III Destarte, julga-se materialmente competente para conhecer da acção o Tribunal Administrativo
....

Sem custas

Lisboa, 22 de junho de 2022. - Ana Paula Lopes Martins Boularot (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Henrique Luís de Brito Araújo.