Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:08/23
Data do Acordão:11/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO EMPREGO - INSERÇÃO+
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL
Sumário:É da competência da Jurisdição Administrativa e Fiscal a apreciação de uma acção proposta contra entidade, ainda que de natureza privada, na qual o autor invoca a celebração de contrato “Emprego – Inserção+” e a cessação ilícita do mesmo, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe as remunerações a que tinha direito até à verificação do termo do contrato celebrado.
Nº Convencional:JSTA000P31568
Nº do Documento:SAC2023111508
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE SANTA COMBA DÃO - JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU
REQUERENTE: AA
REQUERIDA: ASSOCIAÇÃO PROFISSIONAL DE DESPORTO E DE EDUCAÇÃO FÍSICA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Conflito nº 8/23

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão, Juiz 2 [Processo nº 483/18.3T8SCD] acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra a Associação Profissionais Desporto Educação Física ..., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 8.087,27, referente à celebração (e respectiva cessação) de um “contrato emprego-inserção+”, celebrado entre o Autor e a Ré.

Por despacho de 26.02.2019, o Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão julgou-se incompetente em razão da matéria, por entender que «(…) o “contrato emprego-inserção +” ao abrigo do qual as partes se vincularam, atenta a respectiva regulamentação tal como emerge Portaria nº 128/2009 de 30/01, além de não configurar uma relação jurídica de trabalho subordinado, também não é subsumível à figura do contrato de prestação de serviços de natureza cível, antes se insere num programa de nítido cariz social que, em complementaridade a outros instrumentos de protecção social, visa melhorar os níveis de empregabilidade e estimular a reinserção no mercado de trabalho de trabalhadores que se encontram em situação de desemprego ao mesmo tempo que desenvolvem uma actividade socialmente útil que reverte a favor da colectividade, ou seja, descortina-se nele um interesse do trabalhador beneficiário, mas já não o interesse do “promotor do programa” pois que o benefício da actividade daquele reverte a favor da comunidade.
Estamos perante uma relação de segurança social, mais especificamente de acção social, fundamentalmente estabelecida entre o IEFP e os trabalhadores beneficiários intervindo as “entidades promotoras”, necessariamente entidades colectivas públicas ou privadas sem fins lucrativos, como colaboradoras da Administração na execução dessas finalidades de solidariedade e interesse social.
A relação jurídica que subjaz a tal contrato é, pois, de natureza administrativa pelo que a competência para dirimir os litígios dela emergentes cabe à jurisdição administrativa (…)». Concluiu, portanto, que a relação jurídica estabelecida entre as partes revestia as características de uma relação administrativa cujos conflitos são dirimíveis perante os tribunais administrativos.
Termos em que declarou a incompetência em razão da matéria do Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão para a apreciação do pedido deduzido pelo Autor, absolvendo a Ré da instância (arts. 64º, 96º, alínea a), 97º, nº 1 e 99º, nº 1, 278º, nº 1, alínea a), 576º, nº 1 e 577º, alínea a), todos do CPC, e art. 4º, nº 1, alínea e) do ETAF).
Esta decisão transitou em julgado.

O Autor intentou então no Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu (TAF de Viseu) acção administrativa de impugnação de acto administrativo cumulada com a respectiva cumulação da Administração, contra a Associação Profissionais Desporto Educação Física ..., formulando o seguinte pedido: “Nestes termos deve a ação ser julgada procedente e, em conformidade com os fundamentos constantes dos anteriores artigos 26º, 79º, 84º, 130º ser declarado nulo o ato administrativo de resolução do contrato de emprego-inserção+, ou em última instância, ser o mesmo anulado por violação do disposto nos artigos 152º e 163º do CPA e, em consequência ser a Ré condenada a: 1- pagar ao A. os salários e o subsídio de alimentação que o mesmo deixou de auferir por força daquele ato nulo / anulável, e a que tinha direito até à verificação do termo do contrato celebrado, ou seja, até 14-10-2018; 2- Pagar ao A. compensação pelos danos morais resultantes da sua conduta,
Tudo em quantia global de 8.087, 72€ (oito mil e oitenta e sete euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros á taxa legal desde a citação até integral pagamento.
O TAF de Viseu por sentença proferido em 03.03.2023, apoiando-se em jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que cita, julgou-se também incompetente em razão da matéria. Concluiu aquele Tribunal que «(…), não podendo qualificar-se como relação jurídica de emprego público, tampouco como relação jurídica administrativa (em sentido lato), a relação estabelecida entre o A. e a R. no âmbito do contrato aqui em discussão, conclui-se que este Tribunal é materialmente incompetente para conhecer da presente acção, incluindo do pedido de condenação ao pagamento de uma indemnização (que se presume seja a título de responsabilidade civil extracontratual) por alegados danos não patrimoniais sofridos pelo A., porquanto tal litígio não se enquadra em nenhuma das alíneas do nº 1 do art.4º do ETAF.
Por conseguinte, o litígio em causa está excluído da competência dos tribunais administrativos, recaindo nos tribunais judiciais a competência para o julgamento da causa, conforme esta vem delineada pelo A.. (…)».

Suscitado oficiosamente a resolução do conflito no TAF de Viseu por despacho de 26.04.2023, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019, de 4/9.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer a fls. 146 e 147 dos autos, no sentido de dever ser atribuída a competência material para apreciar a presente acção ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.

2. Os Factos
Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
O presente conflito negativo de jurisdição vem suscitado entre o Juízo de Competência Genérica de Santa Comba Dão, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu e o TAF de Viseu por ambos se terem considerado materialmente incompetentes para apreciar o pedido do autor.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211º, nº 1, da CRP).
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do art. 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
O “contrato emprego-inserção” insere-se no regime jurídico do Rendimento Social de Inserção criado pela Lei nº 13/2003, de 21/5, fazendo parte do programa de inserção previsto naquele regime.
A Portaria nº 128/2009, de 20/1 “regulamenta as medidas 'Contrato emprego-inserção' e 'Contrato emprego-inserção+', através das quais é desenvolvido trabalho socialmente necessário” (cfr. respectivo art. 1º).
Nos termos do art. 2º desta Portaria (alterada e republicada pela Portaria nº 20-B/2014 de 30 de janeiro, que entrou em vigor em 31 de Janeiro de 2014), “Considera-se trabalho socialmente necessário a realização, por desempregados inscritos no Instituto do Emprego e da Formação Profissional, I.P. (IEFP, I.P.), de atividades que satisfaçam necessidades sociais ou coletivas temporárias”.
Sobre questão e numa situação semelhante à suscitada nos autos - saber qual a jurisdição competente quando está em causa uma relação como a presente [subordinada à disciplina da Portaria nº 128/2009] - já se pronunciou o STJ no acórdão de 16.12.2020, processo nº 1064/18.6BEBRG.G1.S1, nos seguintes termos: «3- Os contratos de “emprego – inserção” e «emprego – inserção+» disciplinados na Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro, titulam as relações jurídicas entre a entidade promotora – no caso dos autos o Município Réu e o trabalhador – e enquadram a prestação de trabalho levada a cabo, com a definição do complexo de direitos e obrigações das partes.
O conteúdo desses contratos e as finalidades visadas pelos mesmos estão amplamente escrutinados nos autos, não se justificando aqui qualquer retoma dos mesmos.
A referida Portaria n.º 128/2009, de 30 de janeiro, disciplina também o regime de cessação ou suspensão do contrato, no seu artigo 11.º, dispositivo à luz do qual poderá ser enquadrada a resolução do litígio dos autos.
É líquido que o regime de cessação do contrato de trabalho emergente dos artigos 338.º e ss. do Código de Trabalho nada tem a ver com estes contratos, o que é questão completamente diversa do enquadramento jurídico do acidente de trabalho ocorrido na sua execução, matéria a que se refere o acórdão do Tribunal dos Conflitos proferido no referido processo n.º 015/17, de 19 de outubro de 2017 e outra jurisprudência daquele Tribunal invocada nos autos.
O que se torna evidente é que os contratos em causa, face ao regime que resulta da mencionada Portaria e dos regulamentos emitidos pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, nos termos do seu artigo 17.º, titulam relações jurídicas enquadradas pelo Direito Administrativo, que por tal motivo devem ser consideradas como relações jurídicas administrativas, o que implica que os litígios emergentes dos mesmos se insiram no âmbito da competência dos Tribunais Administrativos, tal como já resultava do acórdão desta Secção de 14 de novembro de 2001, no que se refere aos acordos de atividade ocupacional.
Na verdade, a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais veio a ser concretizada no artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovada pela Lei n.º 13/2002, de 17 de fevereiro, reafirmando-se no n.º 1 do artigo 1.º daquele diploma que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» e nos termos do n.º 1, al. a) do seu artigo 4.º «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto: a) Tutela dos direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal».
Na determinação do conteúdo do conceito de relação jurídico administrativa ou fiscal, tal como referem J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa, Volume II, Coimbra Editora, 2010, p.p. 566 e 567, deve ter-se presente que «esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada» ou «jurídico civil».
Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal».
Aqui chegados, pode concluir-se que o litígio em causa se insere na competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, (…)». Tendo-se declarado a incompetência material dos Tribunais Judiciais para conhecer da acção em questão, absolvendo-se o Réu da instância.
Neste sentido se tendo pronunciado também este Tribunal dos Conflitos no acórdão de 05.05.2021, Proc. nº 01064/18.6BEBRG-A.S1.
Esta jurisprudência não pode deixar de se aplicar ao caso em presença, a isso não obstando a natureza privada da Associação Ré, e, apesar de nos acórdãos indicados [do STJ e deste Tribunal dos Conflitos] a entidade promotora ser um Município. Mas, como bem salienta a EMMP, nem a Portaria nº 128/2009, quis estabelecer qualquer diferença, nem é a natureza pública ou privada do promotor que no caso, parece, relevar.
Com efeito, embora o designado contrato “Emprego- Inserção+” tenha sido celebrado entre a entidade promotora e o beneficiário do apoio (resultante de situações de desemprego), é o IEFP, IP que seleciona tais beneficiários (em colaboração com outras entidades públicas) e aprova, antes da outorga do contrato, o projecto de trabalho, sendo o projecto para celebração do contrato apresentado pelo promotor ao IEFP, impedindo o promotor de alterar o objecto do contrato exigindo o cumprimento de quaisquer tarefas aí não previstas.
Tal deve-se à singularidade e complexidade desta relação, exclusivamente disciplinada por normas de direito público, na qual a entidade principal é o IEFP, IP, enquanto promotor activo de políticas que prosseguem o interesse público de protecção no desemprego e de promoção da inserção social (cfr. quanto aos objectivos do trabalho socialmente necessário, o art. 3º, al. a), b) e c) da Portaria nº 128/2009), prevendo especificadamente a referida Portaria como promotores as entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos, designadamente, entidades de solidariedade social que ofereçam ocupação ao desempregado (art. 4º da Portaria), nos condicionalismos definidos legalmente.
Assim, é de entender que nos presentes autos estamos perante uma relação jurídica administrativa, a qual está submetida à jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos do disposto no art. 4º, nº 1, alínea a) do ETAF.
Pelo exposto, acordam em atribuir a competência à Jurisdição Administrativa e Fiscal - Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu - para conhecer da presente acção.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Novembro de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.