Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:053/14
Data do Acordão:03/25/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
CONCESSIONÁRIA
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário:I – A concessão de serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respectivas actividades percam a sua natureza pública administrativa e por essa circunstância adquiram intrinsecamente natureza de actos privados a serem regulados pelo direito privado.
II – Apesar de ser uma sociedade anónima, a lei atribuiu à Concessionária, no contrato de concessão aprovado pelo DL nº 86/2008, de 28/5, poderes, prerrogativas e deveres de autoridade típicos dos atribuídos ao Estado, que representa.
III – Assim, a sua eventual responsabilização por actos ou omissões dessa sua actividade insere-se no quadro de aplicação da norma do art. 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007, e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes, em razão da matéria, para conhecer do litígio, nos termos do disposto no art. 4º, nº 1, alínea i) do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P18787
Nº do Documento:SAC20150325053
Data de Entrada:11/27/2014
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE AMARANTE E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE PENAFIEL
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

1. Relatório
A…………….., com os sinais dos autos, deduziu no TAF de Penafiel a presente acção declarativa de condenação, com processo sumarissimo, contra B………………., S.A., com sede em Sintra, pedindo a condenação da demandada no pagamento de uma indemnização no montante de € 2.715,07, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.
Alega, em síntese, que, no dia 23.04.2012, pelas 00h30, conduzia o seu veículo automóvel, de matrícula ….-…..-BJ, na A4, quando ao Km 60,7 (Padronelo-Amarante), sentido Amarante-Vila Real, foi surpreendido por um cão, de cor escura e médio porte, provindo do lado direito, que se atravessou à frente do veículo BJ, embatendo no animal. Do embate e acidente resultaram danos para o autor, da responsabilidade da ré, porquanto a demandada não tomou as precauções necessárias a prevenir o acidente.
Por sentença de 30.04.2013, o TAF de Penafiel declarou-se incompetente em razão da matéria e absolveu a ré da instância.
No Tribunal Judicial de Amarante foi proferido despacho no qual se decidiu declarar a incompetência absoluta do Tribunal Judicial de Amarante, em razão da matéria para conhecer da acção, absolvendo-se a ré da instância.
O autor recorreu da sentença, para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 30.06.2014 decidiu pela improcedência do recurso, mantendo a decisão recorrida, “…tendo presente a competência residual dos tribunais judiciais, nos termos dos artºs 211.º, nº 1 da CRP, 18.º, nº 1 da LOFTJ e 66º do CPC (actual artº 64º), e atento em particular ao disposto no artº 212º, nº 3 da CRP e nos artºs 1º, nº 1 e 4º, nº 1, i) do ETAF, impõe-se a atribuição aos tribunais da jurisdição administrativa a competência material para conhecer da acção.

O Autor veio requerer, ao abrigo dos arts. 109º e 110º do novo CPC, a resolução do conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel e o Tribunal Judicial de Amarante.

Neste Tribunal o Exmº Magistrado do Ministério Público emitiu parecer a fls. 24 a 27, no sentido de que o presente conflito de jurisdição deve ser resolvido com a atribuição de competência ao TAF de Penafiel.

2. Fundamentação
Os factos a considerar são os referidos no relatório e bem assim, que, pelo DL nº 86/2008, de 28/5 (que aprovou as respetivas bases, de obra pública), foi atribuída à ré a concessão do designado Túnel do Marão (auto-estrada A4/IP4), para concepção, projecto, construção, exploração e conservação da referida via.

Através da presente acção o Autor pretende a condenação da Ré no pagamento de indemnização pelos danos decorrentes de um acidente de viação ocorrido na A4, de que a Ré é concessionária, causado, segundo alega, pelo atravessamento de um cão naquela via, que a Ré devia ter evitado, cumprindo os deveres decorrentes do contrato de concessão celebrado com o Estado.
E, a competência (ou jurisdição) de um tribunal determina-se pela forma como o autor configura a acção, definida pela causa de pedir e o pedido, ou seja, pelos objectivos que prossegue com a acção (cfr., v.g., acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 21.01.2004, proc. 8/04, de 17.05.2007, proc. 5/07 e de 20.09.2012, proc. 02/12).
Nos termos do disposto no art. 211º, nº 1 da CRP os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.
Estabelecendo o art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (também o art. 64º do CPC).
Por sua vez, art. 212º, nº 3 da CRP estabelece que, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Também o art. 1º, nº 1 do ETAF estatui que, “os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.
E a respeito do âmbito da jurisdição administrativa e, no que interessa para o caso dos autos, são da competência dos tribunais administrativos, segundo a alínea i) do art. 4º do ETAF os litígios sobre a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Refere C. A. Fernandes Cadilha, in Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, pág. 49: “tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo o regime de direito administrativo, ficando excluído os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas privadas".
Como se diz no Acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 30.05.2013, nº 17/13, consultável in www.dgsi.pt, “são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa. O primeiro refere-se ao exercício de prerrogativas de poder público, que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade. O segundo respeita a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.”.
Segundo a definição de J.C. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., págs. 57/58, são relações administrativas “aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”. Igualmente neste sentido vai a jurisprudência, v.g., nos acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 04.11.2009, proc. 06/09, de 20.01.2010, proc. 25/09, de 09.09.2010, proc. 11/10, de 28.09.2010, proc. 10/10 e de 12.01.2012, proc. 08/11).
Actualmente, para delimitar a competência material dos tribunais administrativos em matéria de responsabilidade civil extracontratual, há que ter presente a Lei nº 67/2007 de 31 de Dezembro sobre o regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
Neste diploma a respeito do âmbito de aplicação do referido regime preceitua o art. 1º, nº 5, o seguinte: “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo.”
Na prática, o nº 5 do art. 1º da Lei nº 67/2007 concretiza o princípio previsto no art. 4º, nº 1, alínea i) do ETAF, de que compete aos tribunais administrativos apreciar as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
Na Base 4 do contrato de concessão aprovado pelo DL nº 86/2008, de 28/5, estabelece-se que: “1 – A Concessionária deve desempenhar as actividades concessionadas de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço público e adoptar, para o efeito, os melhores padrões de qualidade disponíveis em cada momento, tudo nos exactos termos das disposições aplicáveis do Contrato de Concessão.
E, também das Bases 52 e 53 decorrem para a concessionária obrigações de natureza pública, visando-se a satisfação do interesse público da segurança da circulação e prevenção de acidentes na auto-estrada concessionada, que integra o domínio público do Estado (cfr. Base 7, nº 3, al. a)).
Aliás, a Lei nº 24/2007, de 18/7, que define os direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas (no que agora importa), estabelece no seu art. 12º, uma inversão do ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança a cargo da concessionária em determinadas circunstâncias.
Assim, prevê-se que: “1 – Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito:
(…)
b) Atravessamento de animais;”.
A circunstância de se referir no nº 1 da Base 59 que, “A Concessionária responde, nos termos da lei geral, por quaisquer danos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da concessão, pela culpa ou pelo risco”, não é decisiva para determinar o tribunal competente em razão da matéria.
Tal referência à “lei geral”, no contexto do diploma que estabelece a concessão significa apenas que a responsabilidade pelos prejuízos resultantes da responsabilidade civil extracontratual não está regulada por normas constantes do contrato de concessão, mas pelas normas gerais que regulam tal matéria, sem determinar sobre a sua natureza administrativa ou comum (cfr. neste sentido o acima citado acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 30.05.2013).
E acrescenta este Acórdão, “as entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público) têm a sua actividade regulada sujeita a disposições e princípios de direito administrativo”.
No caso em apreço, estamos perante serviços de segurança rodoviária numa auto-estrada, serviços estes de natureza essencialmente pública e que à partida são próprios e se enquadram nas funções do Estado e são no seu interesse.
E também como bem salienta o citado Acórdão, que estamos a seguir de perto, a concessão desses serviços públicos a uma entidade privada não significa que as respectivas actividades percam a sua natureza pública administrativa e por essa circunstância adquiram intrinsecamente natureza de actos privados a serem regulados pelo direito privado.
Ora, apesar de ser uma sociedade anónima, a lei atribuiu à Concessionária poderes, prerrogativas e deveres de autoridade típicos dos atribuídos ao Estado, que representa, conforme decorre dos normativos citados.
Destas normas é possível inferir-se que a responsabilidade extracontratual por que a Ré é demandada, derivando das suas legais atribuições (designadamente prevenção de acidentes), se desenvolve num quadro de ambiência pública.
Assim, a sua eventual responsabilização por actos ou omissões dessa sua actividade insere-se no quadro de aplicação da norma do art. 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007, acima mencionada, e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes, em razão da matéria, para conhecer do litígio, nos termos do disposto no art. 4º, nº 1, alínea i) do ETAF - cfr. neste sentido o Acórdão do STJ de 16.10.2012, proc. 950/10.6TBFAF.G1 e o Acórdão deste Tribunal dos Conflitos nº 048/13, de 27.02.2014.

Pelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal dos Conflitos em julgar competente em razão da matéria a jurisdição administrativa.
Sem custas.

Lisboa, 25 de Março de 2015. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Isabel Francisca Repsina Aleluia São Marcos – António Bento São Pedro – Raul Eduardo do Vale Raposo Borges – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Gabriel Martim dos Anjos Catarino.