Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:023/16
Data do Acordão:01/31/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDES DO VALE
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P21390
Nº do Documento:SAC20170131023
Data de Entrada:02/07/2016
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DO PORTO, VILA NOVA DE GAIA, INSTÂNCIA LOCAL, SECÇÃO CÍVEL - J3 E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
RECORRENTE: A......., LDA
RECORRIDO: JF DE PEDROSO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Proc. nº 23/16 TCONF. Relator: Fernandes do Vale (50/16)
(ReI. 262)


Acordam, no Tribunal de Conflitos


1 - A sociedade “A…………, S. A.” apresentou, no Balcão Nacional de Injunções, procedimento de injunção, requerendo a notificação da requerida “União das Freguesias de Pedroso e Seixezelo”, para lhe pagar a quantia de € 17 251,50, acrescida de juros de mora no valor de € 1 551,38, discriminada nas faturas relacionadas.

Esse montante corresponde ao preço do serviço de transporte rodoviário de passageiros em autocarro que a requerente prestou à requerida, em 2013, para a realização de um passeio-convívio da 3ª idade organizado pela requerida e por esta adjudicado à requerente mediante ajuste direto, preço que não foi pago.

Na sequência da oposição da requerida, na qual, além do mais, foi arguida a violação de normas de direito público que regeriam a contratação do serviço prestado pela requerente, o procedimento foi remetido à distribuição, como ação declarativa, na Instância Local de Vila Nova de Gaia, comarca do Porto.

Nesta instância, considerando que a competência material para apreciar a causa cabe ao Tribunal Administrativo e não aos tribunais comuns, foi, em conformidade, proferida decisão julgando o tribunal incompetente em razão da matéria e absolvendo a R. da instância.

Por acórdão de 18.02.16, a Relação do Porto julgou improcedente a apelação interposta pela requerente, tendo reafirmado a competência, em razão da matéria, da jurisdição administrativa para o conhecimento da ação.

Ainda inconformada, a requerente interpôs recurso de revista para o STJ, que, nos termos do disposto no art. 101º, n°2 do CPC, houve por competente o Tribunal de Conflitos para a apreciação do recurso.

Culminando as respetivas alegações, formulou a recorrente as seguintes conclusões:


/

1ª- A competência material do tribunal tem de aferir-se face à natureza da relação jurídica material ou subjacente, tal como é apresentada a tribunal, neste caso suportada pelo requerimento de injunção, isto é, no confronto entre o pedido e causa de pedir;

2ª - A competência dos tribunais da ordem judicial reveste-se de natureza residual, no sentido de que são da sua competência as causas que não estejam legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional (art. 64° do CPC e n°1 do art. 40° da L. O. S. J. - Lei de Organização do Sistema Judiciário - aprovada pela Lei n° 62/2013, de 26.08;

3ª - A transação comercial e não qualquer relação jurídico-administrativa que foi colocada em discussão perante o tribunal “a quo” emerge de uma relação entre a recorrida (órgão de administração autárquica local) e a recorrente (empresa privada), no âmbito da qual esta forneceu àquela uma prestação de serviços de transporte público de passageiros, cuja prestação consubstancia um negócio jurídico de natureza privada, sujeito às disposições do direito civil e de legislação específica de sector dos transportes - ao tempo, RTA - por não constituir, modificar ou extinguir qualquer relação de natureza jurídico-administrativa;

4ª - Tal como se escreve no Ac. do TRP (2ª Secção, Proc. n°43048/15.5YIPRT.P1) de 10.11.15, supra citado em caso igual, “em causa nos autos um contrato de foro privatístico de fornecimento de serviços, neste caso, de transporte de passageiros, cujo não pagamento do valor acordado pela demandada esteve na origem da demanda judicial,

(...)

Enfatize-se: a causa de pedir nos autos radica na violação sinalagmática pelo não pagamento do preço acordado; a solução do litígio, tanto quanto ele foi configurado pelas partes, não será regulada por normas de direito administrativo, mas pelas regras comuns do direito civil”;

5ª - A competência material dos tribunais administrativos está imperativamente vinculada e condicionada à existência de um litígio emergente de relações jurídico-administrativas, reguladas por normas materialmente administrativas, no âmbito da atuação de entidades que exercem concretas competências de direito público, dotadas de “jus imperii”;

6ª - Em consonância substantiva e imperativa ao disposto no n°3 do art. 212° da CRP, quando aí determina: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (sublinhado e negrito da nossa responsabilidade), o que não é manifestamente o caso dos autos;

7ª - A decisão em recurso violou, pois, as disposições contidas nos arts. 64°, 96°, al. a), 99°, n°1, 576°, n°2, 577°, n°1, todos do CPC e ainda os arts. 40° e 144°, n°1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n° 62/2013, de 26.08, e, de todo mais importante e decisivo, a violação do disposto no n°3 do art. 212° da CRP.

Não foram apresentadas contra-alegações e, neste Tribunal, o Ex.mo Magistrado do M° Pº emitiu parecer no sentido de que “não chegou a existir um verdadeiro conflito de jurisdição, por não nos encontrarmos perante decisões transitadas em julgado proferidas por tribunais de ordem jurisdicional diferente”.

Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.


*

2 - Como decorre do exposto, a questão que demanda apreciação e decisão por parte deste Tribunal consiste em, no âmbito de um pré-conflito de jurisdição, determinar qual a jurisdição competente, em razão da matéria, para o conhecimento da presente ação: se a comum, como pugna a recorrente; se, pelo contrário, a administrativa, como foi decidido na 1ª instância e na Relação do Porto.

Apreciando, com subordinação à factualidade que emerge do relatório que antecede:


*


3 - Constitui entendimento pacífico o de que a competência do tribunal se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como a configura o A. E aquela fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, bem como as modificações de direito, excepto se for suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa (arts. 38° da Lei nº 62/2013, de 26.08L. O. S. J.Lei de Organização do Sistema Judiciário - e 5°, n°1, do E.T.A F. - Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

De conformidade com o preceituado nos arts. 211°, n°1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), 40°, n°1 da L.O.S.J. e 64° do CPC, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Ou seja, os tribunais judiciais, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não discriminada, por isso sendo chamados de competência genérica, gozando os demais, tribunais especiais, de competência limitada às matérias que lhes são especialmente cometidas. Que o mesmo é dizer que a competência dos tribunais judiciais se determina por um critério residual, ou de exclusão de partes — tudo o que não estiver atribuído aos tribunais especiais — Profs. Palma Carlos (in “CPC Anotado”, pags. 230) e A. dos Reis (in “Comentário”, Vol. I, pags. 146 e segs.).

Cumprindo, deste modo, atentar nos termos em que a lei delimita a competência material dos tribunais administrativos, não olvidando, para além do já assinalado, que, para a determinação do tribunal competente, em razão da matéria, há, em princípio, que atender à causa de pedir e ao pedido expresso na p. i.

Por outro lado, impõe-se acentuar que o caso em apreço se encontra submetido à disciplina legal introduzida pelas Leis n°/s 13/2002, de 19.02, alterada pelas Leis n°/s 4-A/2003, de 19.02, 107-D/2003, de 31.12, 1/2008, de 14.01, 2/2008, de 14.01, 26/2008, de 27.06, 52/2008, de 28.08 e 59/2008, de 11.09 (“Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais” - ETAF), com início de vigência genérica (e na parte que, aqui, interessa), em 01.01.04.

A jurisdição administrativa é exercida por tribunais administrativos, aos quais incumbe, na administração da justiça, dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (arts. 1°, n°1, do ETAF e 212°, n°3, da CRP).

Este último conceito é difícil de delimitar, porquanto, como se expende no douto acórdão recorrido, “isso pode ser feito com recurso a critérios ou sob perspetivas distintas. No entanto, parecendo concretizar esse conceito ou fazer a sua aplicação prática, em alguns casos reconhecidamente de forma extensiva, o art. 4º do referido Estatuto consagrava situações particulares de competência dos tribunais administrativos”.

Impõe-se, pois, indagar se a presente ação cabe no âmbito de algum dos casos previstos naquele art. 4º, o que nos aponta uma resposta claramente afirmativa.

Com efeito, dispõe-se no citado art. 4º, n°1 que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto:

e) - Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) - Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

Com inexcedível clareza e rigor lógico-jurídico, expendeu-se, a este propósito, no douto acórdão recorrido:

…“O DL nº 18/2008, de 29 de janeiro, em vigor aquando da celebração do contrato entre a Freguesia e a A., aprovou o Código dos Contratos Públicos, o qual estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo (…) O n°2 deste preceito estabelece que o regime da contratação pública estabelecido na parte II do Código é aplicável à formação dos contratos públicos, entendendo-se por tal todos aqueles que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código, sendo que as autarquias locais são precisamente uma das entidades adjudicantes ali referidas [Cfr. art. 2°, n°1, al. c)] (…) São, pois, contratos públicos todos os que forem celebrados pelas autarquias locais e que não se mostrem expressamente excluídos nos arts. 4º e 5° do Código, entre os quais não se conta o contrato de aquisição de serviços, designadamente de serviços prestados em termos concorrenciais pelos agentes particulares (…) O n°1 do art. 16º do Código, inserido na Parte II, estabelece, por sua vez, que «para a formação dos contratos cujo objecto abranja prestações que estão ou sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, as entidades adjudicantes devem adoptar um dos seguintes tipos de procedimentos: a) ajuste directo; b) concurso público; c) concurso limitado por prévia qualificação; d) procedimento de negociação; e) diálogo concorrencial» Acrescenta o n°2 que «para os efeitos do disposto no n° anterior, consideram-se submetidas à concorrência de mercado, designadamente, as prestações típicas abrangidas pelo objecto dos seguintes contratos, independentemente da sua designação ou natureza: (...) e) Aquisição de serviços» (...) Da conjugação destas normas resulta assim que um contrato celebrado por uma autarquia local tendo por objecto a aquisição de um serviço prestado pelos agentes particulares em regime concorrencial, como o serviço de transportes, está sujeito ao regime da contratação pública, devendo ser celebrado, nos casos e nas condições definidas de seguida para cada uma, através de um dos seguintes tipos de procedimentos: ajuste directo, concurso público, concurso limitado por prévia qualificação, procedimento de negociação ou diálogo concorrencial, procedimentos estes que se encontram depois regulados no Código. (...) Tanto basta para concluir que a presente acção está incluída no âmbito da previsão da al. e) do n°1 do art. 4° do ETAF, sendo, portanto, da competência dos tribunais administrativos (...) Acresce que, nos termos do n°5 do art. 1° do citado Cod., «o regime substantivo dos contratos públicos estabelecido na Parte III do presente Cod. é aplicável aos que revistam a natureza de contrato administrativo» e que, nos termos do n°6, «reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer uma das seguintes categorias: a) contratos que por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público (...)» (...) Ora, nos termos do art. 278º do mesmo diploma, «na prossecução das suas atribuições ou dos seus fins, os contraentes públicos podem celebrar quaisquer contratos administrativos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a estabelecer», sendo que nos contratos administrativos especialmente previstos no Cod. se encontra o contrato de aquisição de serviços, definido no art. 450º como aquele «pelo qual um contraente público adquire a prestação de um ou vários tipos de serviços mediante o pagamento de um preço» (...) Por conseguinte, um contrato celebrado por uma autarquia local tendo por objecto a aquisição de serviços mediante um preço é um contrato administrativo especialmente previsto no referido Cod. e, como tal, um contrato que possui aspectos específicos do respectivo regime substantivo regulado por normas de direito público (...) Logo, também por via da al. f) do n°1 do art. 4° do ETAF, a presente acção está incluída no âmbito material da competência dos tribunais administrativos»

Não vislumbramos quaisquer razões ou argumentos que contrariem o discurso e conclusão que, com a devida vénia, se deixaram transcritos, os quais, pois, nos merecem integral adesão.

Improcedendo, pois, as conclusões formuladas pela recorrente, nenhuma censura merece o acórdão recorrido.


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4 - Na decorrência do exposto, acorda-se em, negando a revista, resolver o suscitado pré-conflito de jurisdição, julgando competente, em razão da matéria, para o conhecimento da sobredita ação, a jurisdição administrativa.

Sem custas.

Lisboa, 31 de Janeiro de 2017. - José Augusto Fernandes do Vale (Relator) - Alberto Augusto Andrade de Oliveira - João Moreira Camilo - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - José Inácio Manso Rainho - José Francisco Fonseca da Paz.