Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01/08
Data do Acordão:05/21/2008
Tribunal:CONFLITOS
Relator:SOUTO DE MOURA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
VENDA NA EXECUÇÃO FISCAL
ACÇÃO DE DECLARAÇÃO DE NULIDADE
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS FISCAIS
Sumário:Para a acção, interposta contra a Fazenda Nacional, em que se pede a declaração de nulidade da compra e venda de um imóvel penhorado em execução fiscal, formalizada por escritura pública, são competentes os tribunais tributários, e não os tribunais judiciais.
Nº Convencional:JSTA00065049
Nº do Documento:SAC2008052101
Data de Entrada:01/03/2008
Recorrente:A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE BRAGA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:NEGATIVO DE JURISDIÇÃO TAF DE BRAGA - TJ BRAGA.
Decisão:DECL COMPETENTE TAF BRAGA.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CPC96 ART66 ART908 N1.
LOFTJ99 ART18 N1.
CONST ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 ART4 N1 ART49 N1.
L 107-D/2003 DE 2003/12/31.
CPPTRIB99 ART248 ART257 N1 ART203 ART250.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC10/04 DE 2004/11/18.
Referência a Doutrina:VIEIRA DE ANDRADE A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 2007 PAG110.
AROSO DE ALMEIDA E OUTRO COMENTÁRIO AO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS PAG15.
ESTEVES DE OLIVEIRA E OUTRO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS VOLI PAG51 PAG57 PAG115.
Aditamento:
Texto Integral: “A…, sociedade anónima, contribuinte nº. 502 083 069, com sede na …, n.º…, freguesia de …, concelho de Braga, requereu, ao abrigo do artº 115º e seg. do C.P.C., a resolução de um conflito negativo de jurisdição surgido entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga e o Tribunal Judicial de Braga.
A – O PEDIDO
São os seguintes os fundamentos do pedido (transcrição):
“1.A requerente deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em 27/10/2005, de uma acção contra a Fazenda Nacional, que correu termos com o n° 11 65/05.0BEBRG, conforme certidão da p.i. que junta se dá por reproduzida para todos os legais efeitos (doe.1.).
2.Citada a Ré Fazenda Nacional, devidamente representada pelo Magistrado do Ministério Público, veio apresentar a sua contestação, em 29/11/2006, excepcionando com base na incompetência em razão da matéria daquele Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, conforme certidão da contestação que igualmente se junta e se dá por reproduzida para todos os legais efeitos (doc.2).
3.Quer a requerente quer Ré Fazenda Nacional apresentaram réplica e tréplica, respectivamente, defendendo as teses constantes das suas petição inicial e contestação, respectivamente, conforme certidões que junta e dá por reproduzidas para todos os legais efeitos (docs.3 e 4).
4.Perante as pretensões da requerente e da Ré Fazenda Nacional o Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, decidiu, por sentença datada de 14/05/2007, transitada em julgado, julgar incompetente este tribunal em razão da matéria, conforme certidão que se junta e se dá por reproduzida para todos os legais efeitos (doc.5).
5.Assim, após o trânsito em julgado da sentença daquele Tribunal Administrativo e Fiscal, propôs a requerente uma acção nos mesmos moldes da supra citada no ponto 1 do presente requerimento junto do Tribunal Judicial de Braga.
6.Tal acção deu entrada no Tribunal Judicial de Braga, em 11/07/2007, contra a Fazenda Nacional e Estado Português, que correu termos na Vara de Competência Mista com o n° 5369/07.3TBBRG, conforme certidão da p.i. que junta e dá por reproduzida para todos os legais efeitos (doc.6).
7.Citadas as Rés Fazenda Nacional e Estado Português, devidamente representadas pelo Magistrado do Ministério Público, vieram apresentar a sua contestação, em 16/10/2007, excepcionando com base na incompetência em razão da matéria daquele Tribunal Judicial de Braga, conforme certidão da contestação que se junta e se dá por reproduzida para todos os legais efeitos (doc. 7).
8.A requerente replicou, em 30/10/2007, defendendo-se da excepção deduzida pelas Rés nas suas contestações e defendendo a sua posição assumida na p.i., conforme certidão que junta e dá por reproduzida para todos os legais efeitos (doc.8).
9.Nestes termos e perante as pretensões da requerente e da Rés Fazenda Nacional e Estado Português o Mmo. Juiz do Tribunal Judicial de Braga, decidiu, por sentença datada de 21/11/2007, julgar incompetente este Tribunal em razão da matéria, conforme certidão que se junta e se dá por reproduzida para todos os legais efeitos (doc.9). 10.Esta sentença transitou em julgado em 6/12/2007, conforme consta igualmente da certidão que se juntou como documento 9.
11.Estamos assim perante um claro e inequívoco conflito negativo de jurisdição que urge resolver, tanto mais que a requerente vê agravados os prejuízos resultantes de um negócio nulo ou inválido a que não deu causa e tem despesas avultadas com toda esta situação, nomeadamente custas processuais.”
O Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal de Conflitos deu douto parecer do seguinte teor (transcrição):
“1.
Vem suscitada a resolução do presente conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga e o Tribunal Judicial de Braga, por ambos os tribunais, denegando a própria, se atribuírem reciprocamente competência material para julgamento da acção, que a recorrente move contra a Fazenda Nacional, de declaração de nulidade do contrato de compra e venda entre ambos celebrado e de condenação da R. a restituir à A. o preço recebido e respectivos juros devidos.
Fundamenta-se a decisão do TAF de Braga na natureza de direito privado do contrato em causa e na inaplicabilidade ao caso das normas do artº 4º, nº 1, alíneas b) in fine; e) e f) do ETAF, enquanto a decisão do TJ de Braga se estriba no facto de uma das partes outorgantes no contrato ser uma entidade pública e tanto bastar para determinar a competência material do tribunal administrativo, independentemente do regime jurídico aplicável ao contrato, nos termos do referido artº 4º, nº 1, alínea f), redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31/12.
2.
A competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respectivos fundamentos (causa de pedir).
O pedido deduzido na acção em causa é o de declaração de nulidade do contrato de compra e venda do prédio rústico identificado nos autos e consequente devolução do preço recebido com os juros devidos, com fundamento em venda de coisa alheia ou sem objecto físico determinável, nos termos do artº 280º do C. Civil.
Ora, nas instâncias em conflito, não se suscitam quaisquer dúvidas sobre a natureza privada do contrato, em que a entidade pública interveio essencialmente como entidade privada, à luz das normas de direito privado, em posição de paridade com o outro contraente, à margem do chamado jus imperii.
É igualmente líquido que o contrato não é regulado por normas de direito administrativo substantivo, pelo que dele não resulta qualquer relação jurídica administrativa, sendo insusceptível de qualificação como contrato administrativo, nos termos do art 178º do CPA.
Consequentemente, a competência material para apreciar o litígio concernente à respectiva validade excede o âmbito da jurisdição administrativa, circunscrita ao conhecimento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, cabendo tal competência aos tribunais judiciais, nos termos dos artºs 211º, nº 1 e 212º, nº 3 da CRP e dos artºs 1º, nº 1 e 4º, nº 1 do ETAF.
Em contrário, não procede a interpretação que da norma da alínea f) do nº 1 do artº 4º do ETAF, redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31/12, é feita na decisão do TJ de Braga: como a doutrina assinala, esta disposição deve ser interpretada, tal como a generalidade das restantes alíneas do mesmo número, como concretização positiva do conceito "relações jurídicas administrativas". Assim, os contratos mencionados na ultima parte do preceito só cabem na jurisdição administrativa se forem referidos a relações jurídicas administrativas – cfr "A Justiça Administrativa", José Carlos Vieira de Andrade, 5ª edição, Almedina, 2004, pp.118 e segs e "Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos", Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Almedina, 2005, pp.14/15.
A norma em causa reporta-se pois a contratos administrativos e procede à densificação do respectivo conceito através da referência às três correspondentes categorias, sendo que a última parte da alínea se refere concretamente aos contratos administrativos atípicos de objecto passível de contrato privado. Neste caso, competirá aos tribunais administrativos o conhecimento dos litígios deles emergentes desde que as partes tenham expressamente submetido o contrato a um regime substantivo de direito público - cfr "O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos", Mário Aroso de Almeida, 3ª edição, Almedina, 2004, pp 99/103.
Acresce finalmente que seria contrária à vontade do legislador histórico a interpretação da norma perfilhada pela decisão do TJ de Braga de considerar incluída na jurisdição administrativa toda a matéria relativa a contratos da Administração, independentemente do regime jurídico aplicável ao contrato, em face de a Assembleia da República ter alterado a proposta do Governo formulada nesse sentido - Cfr, ob. cit, José Carlos Vieira de Andrade, p.123.
3.
Pelo exposto, cabendo a competência material para conhecer da acção aos tribunais judiciais, deverá, em nosso parecer, o presente conflito negativo de jurisdição ser resolvido declarando-se competente para o efeito o Tribunal Judicial de Braga.”
B – CONFIGURAÇÃO DO CONFLITO
A requerente propôs, como se viu, uma acção no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, a 27/10/2005 (fls. 5), contra a Fazenda Nacional, representada pelo MºPª, com o fundamento seguinte:
“1.Por escritura pública de 29 de Outubro de 1997, celebrada no 2° Cartório Notarial de Braga, o A. adquiriu à Ré o prédio rústico denominado "…", correspondente a um campo de cultura, sito no Lugar …, freguesia de …, concelho de Barcelos, confrontando a Norte com B… e regato, a Sul com rio e limite de freguesia, a Nascente com C… e a Poente com estrada, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 00189 e inscrito na matriz sob o art°. 131, pelo preço de 4.000.000$00 (Quatro milhões de escudos), que pagou.
2.A A. adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio supra referido da Ré, através da venda efectuada por negociação particular e formalizada por escritura, no processo de execução fiscal n° 035/1 O 1.178.2, movido contra … e mulher …., conforme tudo melhor consta de documentos que junta e dá por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos. (Docs. 1 e 2)
3.Sucede que, após a escritura supra referida, o B… e mulher … afirmavam que tal prédio era sua propriedade, passando a usá-lo e frui-lo e impedindo à A. a sua utilização.
4.A A., atenta esta ocupação, que na sua opinião era ilícita e abusiva, intentou contra aqueles B… e mulher … e … e mulher …, acção declarativa com processo ordinário que, com o nº 834/03.4TBBCL, correu termos pelo 4° Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos, pedindo que reconhecessem o direito de propriedade da A. sobre a totalidade do prédio supra descrito, que deviam desocupar e restituir, pagando à A. uma indemnização a liquidar em execução de sentença pelos prejuízos que a ocupação abusiva tinha vindo a determinar.
5.Esta acção viria a ser julgada improcedente, nos termos e pela fundamentação constante da cópia certificada da douta sentença proferida naqueles autos, que ora se junta e dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos. (Doc.3)
6.Refere esta sentença que ficou provado que o prédio rústico "…", reivindicado pela A., estava integrado nos prédios rústicos identificados em 3 e 4 dos factos provados (conforme sentença em causa), propriedade do B….
7.Concluiu o MM.Juiz, naquela sentença, que o prédio reivindicado, "…" não tem existência jurídica, não é minimamente autonomizável, não sendo possível delimitá-lo fisicamente nem atribuir-lhe qualquer identidade concreta e fisicamente escrutinável.
8.E adianta aquela mesma sentença que já em sentença judicial anterior se havia chegado a conclusão idêntica, ou seja, que o prédio em mérito, supra identificado no art°.1 desta p.i., denominado "…", não tem existência real ou física.
9.Na verdade, por sentença proferida na acção sumária nº 548/97 do 2° Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos, em que foram AA. B… e mulher e RR. a Fazenda Nacional e … e outros, havia sido decidido que o denominado "…" não existia fisicamente, não podendo ter sido vendido pela Fazenda Nacional e que o prédio alegadamente referido como "…" era propriedade de B… e mulher, como tudo melhor consta da cópia da sentença que se junta e dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos. (Doc.4)
10.Torna-se, pelo exposto, evidente que a Ré, no processo de execução movido ao …, penhorou e vendeu à A. um prédio que não era propriedade dos executados,
11. ou então que, por razões que a A. desconhece e lhe não podem ser imputadas, a Ré vendeu à A. um prédio que, pura e simplesmente, não existia, nem existe juridicamente ou de facto.
12.No primeiro caso, o contrato de compra e venda celebrado entre a A. e a Fazenda Nacional é nulo por se tratar, inequivocamente, de uma venda de coisa alheia,
13.sendo certo que, na segunda hipótese, o mesmo contrato é, igualmente, nulo, por ausência ou inexistência física e jurídica do objecto, ou como refere a sentença, não determinável (art°s. 892° e sgts. e 280° do Código Civil).
14.Em qualquer dos casos, a nulidade do contrato, por força do disposto no art°. 289°, n° 1 do Código Civil, obriga a que a Ré Fazenda Nacional restitua à A. a quantia prestada, do montante de 19.951,92 € (4.000.000$00), acrescido dos juros, calculados à taxa legal de 10% ao ano, desde a data da escritura (outorgada em 29 de Outubro de 1997) até 16.04.1999, à taxa legal de 7% ao ano, desde 17.04.1999 até 30.04.2003 e à taxa legal de 4% ao ano, desde 1.05.2003 até efectivo e integral pagamento, importando os já vencidos em 10.548,27 €.
15.Com efeito, a Ré Fazenda Nacional que não agiu com a diligência, prudência e cuidados adequados e que, grosseira e negligentemente, penhorou e vendeu um prédio que não tem existência física ou é de terceira pessoa, que não os executados, detém indevidamente em seu poder a quantia de 19.951,92 €, de que beneficiou a todos os títulos, nomeadamente dos juros,
16.sendo que a A., credora daquela quantia a restituir, não recebeu os juros enquanto frutos civis, que aquele capital necessariamente teria ou poderia ter produzido, desde a data da celebração da escritura.
Termos em que,
Deve a presente acção ser julgada procedente por provada e, consequentemente:
A) declarar-se a nulidade do contrato de compra e venda formalizado pela escritura pública de 29.10.1997, celebrado no 2° Cartório Notarial de Braga, que teve por objecto o denominado "…", identificado no art°.1 da p.i.”
O MºPº junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga contestou, começando por excepcionar a competência do Tribunal nos termos que se seguem:
“1º
A A propõe contra o Estado uma acção comum, em processo ordinário, sendo a causa de pedir a alegada venda de um bem imóvel que considera ser nula por se traduzir na venda de coisa alheia ou sem existência física.

Com o pedido formulado visa-se a declaração de nulidade daquela compra e venda celebrada entre a Fazenda Nacional e a A. e a condenação da Fazenda Nacional a restituir à A, o preço recebido na quantia de € 19.951,92, acrescidos de juros vincendos desde a data da escritura até efectivo e integral pagamento, importando-se os já vencidos em € 10.548,27.

Ora, atenta a forma em que se apresenta configurada a acção, trata-se de apreciar da validade de um contrato regulado por normas de direito privado em que, embora uma das partes seja uma entidade pública, não existe qualquer determinação ou acordo das partes para que a matéria em causa fosse submetida a um regime substantivo de direito público.

Temos, assim, e desde logo de considerar que este Tribunal é incompetente em razão da matéria para conhecer da validade do contrato em causa e bem assim do pedido de restituição do valor referido, pois que este é apresentado como consequência daquela (in) validade, atento o disposto no art. 4° do ETAF.”

Acresce que, tratando-se de um pedido de anulação de venda efectuada em processo de execução fiscal, está previsto no art. 257° CPPT uma forma procedimental que especialmente prevê a situação descrita na p.i. que deu início à presente acção, constituindo o meio processual adequando à resolução da pretensão apresentada,

Pelo que, também por esta razão, não seria este o meio processual adequado, nem este Tribunal Administrativo o competente em razão da matéria para conhecer desta acção, atento o disposto nos art. 44° do ETAF e art. 37° n° 1 do CPTA, o que determina também a incompetência material deste Tribunal.

Desta forma, deve a Ré Fazenda Nacional (Ministério das Finanças) ser absolvida da instância nos termos do art. l05 nºl do C P Civil. (…)”
O Mº Pº passa depois a analisar a legitimidade passiva da Fazenda Nacional, na acção em causa, bem como a capacidade legal de representação daquela entidade pelo Ministério Público. Seguidamente, defende-se por impugnação, concluindo que não cabe ao Estado qualquer responsabilidade, tal como a autora a pretende fazer valer, extra-contratual, e assente apenas na nulidade que a mesma autora invoca. Termina pedindo a absolvição da ré do pedido.
A autora replicou, defendendo a competência do foro administrativo onde a acção fora proposta, e dizendo:
“(…) 2. Com efeito, o contrato de compra e venda cuja nulidade se pede seja declarada é resultado de uma venda judicial em processo administrativo de execução fiscal por dívidas ao Estado,
3. onde este ou a Fazenda Nacional agem para cobrar impostos da dívida, em exercício do "ius imperi" e poder público de administração que lhe assiste e das competências que estes lhe confere.
4. O que neste processo está em causa é um acto de gestão ou administração pública da Fazenda Nacional, que agiu directamente no exercício dos poderes públicos que lhe assistem.
5. A presente acção tem por base um acto administrativo da Fazenda Nacional, sendo irrelevante que a validade do contrato seja apreciada por uma norma de direito privado e o disposto no art. 4 da E.T.A.F..
6. Carece de fundamento, atento o exposto, a excepção deduzida da incompetência do Tribunal em razão da matéria.
7. Aliás, caberá aqui reflectir, caso a acção tivesse sido intentada no Tribunal Comum, se a Fazenda Nacional deduziria a mesma excepção da incompetência em razão da matéria com o fundamento de que o contrato de compra e venda em causa resulta dum acto de gestão pública e dos poderes públicos que competem à Fazenda Nacional, sendo, por isso, competente o Tribunal Administrativo e Fiscal.
8. Acresce que, o disposto no art. 257° do C.P.P.T., versa sobre situação completamente diferentes, sendo certo que neste processo se pede a declaração de nulidade dum contrato de compra e venda celebrado, com a consequente restituição do preço praticado e juros, o que é de elementar justiça.”
A autora terminou requerendo a intervenção principal provocada do Estado Português, por ter dúvidas sobre quem era o verdadeiro sujeito da relação material controvertida, e portanto sobre a alegada ilegitimidade passiva da ré Fazenda Nacional. Sobre este ponto específico, o MºPº respondeu.
A 14 de Maio de 2007 foi proferida sentença pelo Mmº Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, a qual transitou em julgado (cfr. fls. 28). Aí se disse, entre o mais, que:
“(…) Afastada liminarmente a incompetência deste tribunal com base na alegação contida no art.º 5º da contestação, visto que o art.º 257.º aí citado se refere a hipóteses de anulação e não de declaração de nulidade como aqui se pretende, restará analisar os argumentos das partes no que concerne à natureza do contrato em questão e à (natureza) das partes respectivas.
Enquanto que o Ministério Público (MP) acentua que trata-se de apreciar a validade de um contrato regulado por normas de direito privado em que, embora uma das partes seja uma entidade pública, não existe qualquer determinação ou acordo das partes para que a matéria em causa fosse submetida a um regime substantivo de direito público (art° 3.º da contestação), a autora sublinha que o que neste processo está em causa é um acto de gestão ou administração pública da Fazenda Nacional, que agiu directamente no exercício dos poderes públicos que lhe assistem (art° 4 da réplica).
Como e vê da profícua lição do Professor Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa) Lições, 5ª edição, Coimbra, 2004, pág. 57 e segs., designadamente nota 67, a fls. 61), a posição que merece sufrágio é a do MP.
Com efeito, a autora não baseia a invalidade do contrato em questão na (invalidade) de algum acto administrativo em que se funde a respectiva celebração - ver art° 4.1.b),in fine, do CPTA -, caso em que, embora em presença de um contrato sujeito a normas de direito privado, o tribunal competente seria este.
Por outro lado, a formulação apresentada pela autora resume-se, com o devido respeito, à evidência de que a actuação de um ente público insere-se sempre, em alguma medida, na área do exercício dos respectivos poderes, interessando saber, isso sim, de que meios lança ele mão, para tal efeito, em cada caso.
Citando aquele Professor (fls. 60 da obra referida), na (...) função administrativa (…) a Administração é dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - é aí que se justifica um sistema de regras e de princípios diferentes das normas do direito privado, que formam uma ordem jurídica administrativa (...).
O contrato de compra e venda ajuizado é, tipicamente, um contrato de direito privado, onde não se surpreende a utilização, pela entidade pública, de qualquer prerrogativa própria do interesse público que prossegue, nem, o que é mais, a possibilidade legal de invocar alguma.
Afastamo-nos, deste modo, do campo de previsão do art.º 4.º.1.e) e f) do CPTA.
São termos em que, julgando este tribunal incompetente em razão da matéria, se absolve a ré da instância - artigos 13.º e 14.°.2 do CPTA.”
A autora propôs então a acção no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, com os mesmos fundamentos da que antes levara ao Tribunal Administrativo e Fiscal, e dando conta da declaração de incompetência por este assumida. O Mº Pº junto daquele tribunal comum assumiu posição contrária à do seu colega no foro administrativo e disse:
“1
A autora propõe contra o Estado Português uma acção na qual a causa de pedir é a alegada venda de um bem imóvel que considera ser nula por se traduzir na venda de uma coisa alheia ou sem existência física.
O contrato de compra e venda cuja nulidade se pede seja declarada é resultado de uma venda efectuada em processo de execução fiscal por dívidas ao Estado.
Está em causa um acto de gestão ou administração pública da Fazenda Pública que agiu directamente no exercício dos poderes públicos que lhe assistem.
Não releva para a determinação da competência que os actos praticados sejam qualificados como de gestão pública ou privada, apenas bastando estar-se em presença de uma relação jurídico-administrativa.
A relação jurídico-administrativa é aquela em que pelo menos um dos sujeitos é a Administração, estando em causa um litígio regulado por normas de direito administrativo.
Na vigência do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ET AF), aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19 de Fevereiro, na redacção da Lei nº 107-D/2003, de 31 de Dezembro, os Tribunais Administrativos são os competentes para as acções destinadas a declarar a nulidade de um contrato de compra e venda celebrado pela Fazenda Pública, bem como das acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil extracontratual da Fazenda Pública, "ex vi” da alínea f) do nº 1 do art. 4°.
O tribunal comum é incompetente em razão da matéria para conhecer da validade do contrato em causa e bem assim do pedido de restituição do valor referido, sendo competente o Tribunal Administrativo e Fiscal, nos termos do disposto no art. 66° do Código de Processo Civil (…).”
Depois de réplica da autora, foi a vez de ser o Mmº Juiz da Vara de Competência Mista da Braga a proferir decisão, negando a seu turno competência para conhecer do pedido. Esta sentença transitou em julgado a 6/12/2007 (fls. 57).
Apresentou a seguinte argumentação:
“A competência do tribunal em razão da matéria afere-se pelos elementos que constituem a relação material controvertida apresentada pelo A na petição inicial, considerando a qualidade dos intervenientes e o pedido ou pretensão que formula.
In casu alega a A que no âmbito de execução fiscal movida pela Fazenda Nacional, adquiriu um prédio rústico.
Posteriormente, e conforme sentença transitada em julgado, foi declarada a inexistência jurídica desse prédio.
Pretende, assim, a A, primordialmente, que seja declarada a nulidade do contrato e a Ré Fazenda Nacional condenada a restituir o preço recebido acrescido de juros a contar da data da escritura pública.
É pacífico, e resulta de documento junto a fls. 9 a 14 dos autos que uma das partes, um dos outorgantes do contrato cuja nulidade se pretende, é a Fazenda Nacional.
Tanto basta, salvo o devido respeito por opinião adversa, face ao disposto no artº 4º f) da Lei 13/2002 de 19.2, com as alterações da Lei 107D/2003 de 31.12, para determinar a competência do Tribunal, independentemente do regime jurídico aplicável ao contrato.
Dispõe aquela norma que os tribunais de jurisdição administrativa e fiscais são competentes para" as questões relativas (…) aos contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública", tal como sucede no caso concreto
A última parte deste preceito (terem as partes submetido ao regime substantivo de direito público) reporta-se apenas às situações em que uma das partes não é entidade pública mas um concessionário que actue no âmbito da concessão. Nestes caso, sendo uma das partes concessionário, para determinar a competência do Tribunal Administrativo é ainda necessário que tenham submetido o contrato ao regime substantivo de direito público.
Só assim se harmoniza a ratio deste diploma com a redacção e a letra da própria norma quando diferencia (através da conjunção disjuntiva "ou") esta situação em que basta uma das partes ser entidade pública da situação seguinte em que uma das partes é concessionário, altura em que exige também a submissão à aplicação do regime público.
Com efeito, as situações contempladas distinguem-se através daquela alternativa, corroborada pela utilização da conjunção coordenativa e copulativa "e" que faz reportar apenas a aplicação do direito substantivo público à possibilidade da intervenção do concessionário e já não quando o outorgante é entidade pública.
Sendo-o, é suficiente para determinar a competência em razão da matéria do Tribunal Administrativo.
Houve na verdade um alargamento “do âmbito da jurisdição administrativa a todas as questões que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se as mesmas são regidas por um regime de direito público ou de direito privado” – cfr. Douto Acórdão do S.T.J. de 12/2/2007, in http:www.dgsi.pt cujos ensinamentos, embora sobre responsabilidade de outra natureza, se subscrevem na íntegra, assim se harmonizando a unidade do regime jurídico em causa.
Por isso, voltando ao caso sub judice, sendo uma das partes uma entidade pública, tanto basta para se decidir a competência do Tribunal Administrativo e Fiscal.
Em face do exposto, julgo procedente a excepção da incompetência em razão da matéria e absolvo os RR da instância.”
C – APRECIAÇÃO
A questão que se coloca é assim a de saber, em síntese, se os tribunais do foro administrativo são competentes para conhecer da validade de um contrato de compra e venda decorrente de uma execução fiscal, em que outorga como vendedor o Estado (Fazenda Nacional), e como comprador um particular. Na verdade, atendendo à forma como os factos foram configurados,
Teve lugar um processo de execução fiscal (Pº 035/1 O 1.178.2) contra … e … em que foi penhorado e vendido por negociação particular, um prédio rústico por cerca de 4 000 000$00 (19 951,92€). A compradora foi a sociedade “A…” e a escritura de compra e venda foi celebrada a 29/10/97.
· Acontece que em acção proposta no Tribunal da Comarca de Barcelos (Pº 834/03. 4 TBBCL do 4º Juízo Cível) e julgada improcedente, o prédio em questão foi considerado como não tendo existência jurídica, e já em anterior acção sumária (Pº 548/97 do 2º Juízo Cível, também do Tribunal da Comarca de Barcelos), se decidira que se tratava de um prédio que não tinha existência física autonomizável e correspondia a um terreno propriedade de B… e mulher.
· Porque estes afirmaram que o prédio lhes pertencia, usaram-no e fruíram-no como donos, ao mesmo tempo que a adquirente no contrato de compra e venda se via impedida de fazer o mesmo, daí que a sociedade “A…” tenha proposto a acção que gerou o presente conflito.
Importa reter que, nesta acção proposta pela sociedade, o pedido se cifra na declaração de nulidade do contrato de compra e venda celebrado, com a consequente restituição do preço pago acrescido de juros. Quanto à causa de pedir, assenta no facto de ter sido vendido um bem não pertença do vendedor, ou então um bem sem existência jurídica.
Importa então circunscrever a competência jurisdicional em razão da matéria dos tribunais da ordem judicial e da ordem administrativa. Podem retomar-se aqui as considerações a tal propósito tecidas no acórdão 10/04 deste Tribunal de Conflitos de 18/11/2004:
Aí se referiu que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica tal como é apresentada pelo autor na petição inicial, isto é, no confronto entre o respectivo pedido e a correspondente causa de pedir.
Que a questão da competência ou da incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer de determinado litígio é, naturalmente, independente do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes.
Que a regra da competência dos tribunais da ordem judicial segue o princípio da residualidade, isto é, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional (artigos 66° do Código de Processo Civil e 18°, n.° 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro — LOFTJ).
Como no caso vertente o confronto é delineado entre a competência dos tribunais da ordem judicial e a dos tribunais da ordem administrativa, importa ver qual é o âmbito da competência dos tribunais desta última ordem.
O nº 1 do artº 211º da Constituição (C.R.P.), aditado na revisão de 1989, estabelece que “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. A seu turno, o nº 3 do artº 212º da mesma C.R.P. (versão introduzida em 1989), ao falar da jurisdição administrativa delimita-a pelo objectivo de “dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”
O critério de afectação de causas aos tribunais da ordem administrativa pela Constituição, ou seja, as acções e os recursos que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, é de natureza material.
Face à referida definição de âmbito material pela Constituição, as relações jurídicas administrativas a que alude não podem deixar de ser as que se geram, modificam ou extinguem ao abrigo do direito administrativo substantivo.
Densificando o mencionado dispositivo constitucional, no quadro da administração da justiça, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (E.T.A.F.) aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, diz-nos no seu nº 1 que “Os tribunais da ordem administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”
O artº 4º do E.T.A.F. enuncia no seu nº 1 os critérios de determinação da competência dos tribunais administrativos e fiscais a partir de litígios “que tenham nomeadamente por objecto”, (entre outros, que manifestamente nada têm que ver com o presente conflito),
A “verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração” [al. b)],
Contratos “a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um processo pré-contratual regulado por normas de direito público” [al.e)],
· A discussão da validade de contratos “especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo”, ou “em que uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público” [al.f)].
A dificuldade na interpretação destes últimos preceitos pode resultar de se ter atribuído competência aos Tribunais Administrativos em casos em que o litígio não é rigorosamente sobre uma relação jurídica administrativa. A enumeração de casos de competência, do nº 1 do artº 4º, poderá então ser “aditiva” e não “confirmativa”, nas palavras de J. C. Vieira de Andrade (in “A Justiça Administrativa” edição de 2007, pag. 110). Daí que a norma que atribua uma competência, para além do que pudesse resultar do estipulado no artº 1º do E.T.A.F., tenha que ser encarada como norma especial, prevalecendo sobre a disciplina do dito artº 1º (cfr. M. Aroso de Almeida e C. A. Fernandes Cadilha in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, pag. 15).
Por outro lado, “O âmbito da jurisdição administrativa está definido no artº 4º do ETAF, embora este preceito, por se inserir no diploma regulador da organização e funcionamento dos tribunais administrativos e fiscais, englobe as matérias que se enquadram na ordem jurisdicional administrativa e fiscal e que incluem também as questões fiscais” (idem, pag. 102).
Neste contexto, vejamos se as previsões antes referidas determinam, no caso dos autos, a atribuição da competência aos Tribunais Administrativos.
Em relação à al. b) do nº 1 do artº 4º em foco, na parte que se destacou, dir-se-á que, como se viu, a causa de pedir na acção é a nulidade(s) específica(s) do contrato de compra e venda celebrado – venda de coisa alheia ou inexistência física ou jurídica do objecto do contrato (artºs 12, 13 e 14 da petição). Não se invoca em lado algum um acto administrativo reputado inválido, designadamente compreendido no processo de execução fiscal que teve lugar, cuja consequência directa, em termos de causalidade adequada, fosse a invalidade do contrato. E, como já se viu, a configuração da relação jurídica controvertida, no modo apresentado pela autora, determina a competência material do tribunal.
Não tem pois aplicação, no caso, a supra referida alínea b).
Quanto à previsão da al. e) daquele nº 1 do artº 4º, também se entende que não tem aplicação.
A extensão da jurisdição administrativa a estes casos parece resultar, da necessidade de submeter o procedimento pré-contratual de contratos regulados pelo direito privado, a normas de direito público, “por pressão de normas comunitárias”, “e para superar também a relutância do legislador em chamar para aqui o conceito de contrato administrativo” (cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos” vol. I pag. 51). Sejam quais forem as razões da génese do preceito, ele respeitará a situações, como por exemplo a de certos contratos de fornecimento de bens, locação ou prestação de serviços, em que o procedimento pré-contratual não tinha necessariamente que ser regulado por normas de direito público, se se tivesse em conta, só, a natureza do contrato celebrado. Foi exclusivamente porque uma norma “específica” assim o determinou, em homenagem a conveniências que se façam sentir no sector que estiver em causa, que a pré-contratação se teve que submeter a tal regime de direito público. De qualquer modo, a disciplina da pré-contratação sujeita a normas de direito público, só cobra razão de ser, tendo em conta um certo tipo de contrato que vai ser celebrado.
Serve para dizer que, mesmo que no limite se configurasse, para efeitos do preceito, o processo executivo fiscal, como “um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”, esse procedimento, por essência, nunca podia deixar de fora a autoridade do Estado. Trata-se de um procedimento que, globalmente considerado, não se justifica por um tipo de contrato celebrado a final, a compra e venda, e sim, simplesmente, pelo interesse do Estado na cobrança coerciva de dívidas ao fisco.
Vejamos agora a previsão da al. f) do nº 1 do artº 4º do E.T.A.F..
Começaremos por ter em conta que este preceito exige, numa das suas vertentes, que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público o contrato cuja validade se discute. Ora, como nada é referido nas peças de que se dispôs, revelando tal opção, só poderá atribuir-se a competência para o caso dos autos, ao foro administrativo, pretendendo que basta uma entidade pública intervir em qualquer contrato de direito privado, para o litígio dele emergente ter que ser apreciado pelos Tribunais Administrativos. Tal significaria que nunca os tribunais comuns seriam competentes para conhecer de nenhum litígio sobre contratos, desde que um ente público fosse contratante.
Essa, porém, uma interpretação, que colidiria frontalmente com a apontada norma do artº 1º do E.T.A.F.. Estar-se-ia perante uma norma excepcional e não especial, que subverteria a orientação de definir a competência dos tribunais administrativos por um critério basicamente material e não exclusivamente pessoal, como seria o caso. A competência dos tribunais administrativos poderia ser atribuída a casos em que não estivesse em causa nenhuma relação jurídica administrativa, nem uma relação a que se tivesse querido dar tratamento equivalente, poderia ser atribuída, afinal, a casos em que a conexão com a própria actividade administrativa se mostrasse remota. Do mesmo modo, seria difícil compatibilizar tal interpretação com o critério material decorrente do disposto no nº 3 do artº 212º da C.R.P..
Por isso é que a exigência da submissão do contrato por vontade das partes, a um regime de direito público, não veio a constar do preceito só para os casos em que uma delas seja “concessionária que actue no âmbito da concessão”. Como referem Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, é necessário, para submeter um contrato privado a um regime substantivo de direito público, que uma das partes tenha “capacidade específica de vinculação jurídico-administrativa”. Essa capacidade, facultada ao concessionário, por maioria de razão se terá que atribuir a entes públicos. Daí que, segundo aqueles autores, se restrinja a possibilidade de as partes se remeterem capazmente para um regime contratual de direito público àqueles casos “em que pelo menos uma delas seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão” (loc. cit. pag. 57).
Aliás, é relevante a mudança operada na redacção do preceito com a Lei 107-D/2003 de 31 de Dezembro. Originalmente a redacção era: “f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;” Acontece que a parte realçada foi substituída, como se viu, pela expressão “ou de contratos em que uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”. Se o legislador tivesse posto uma vírgula a seguir a “entidade pública”, a questão estaria resolvida. Não foi o caso, e daí termos que concluir do seguinte modo:
De acordo com a primitiva redacção não estava explicitado quem é que podia fazer submeter o contrato a normas de direito público. E não estava excluído nas palavras da lei, inclusive, que entidades de direito privado tomassem essa opção. A modificação legislativa veio então dizer-nos que duas entidades privadas, nunca podiam submeter validamente o contrato, por falta de capacidade específica de vinculação
jurídico-administrativa, a normas de direito público. Por outro lado, o legislador quis que, para além dos entes públicos, também os concessionários, no âmbito da concessão, pudessem tomar a opção em apreço. Qualquer outra interpretação do preceito, pelas razões invocadas, seria desconforme à Constituição. Acresce ainda que, como bem refere Vieira de Andrade, a não ser assim, “poderia perguntar-se se, afinal, bem vistas as coisas, o artigo 4º não acabaria por atribuir à jurisdição administrativa a resolução de todos os litígios relativos aos contratos da Administração Pública – o que iria contra a intenção do legislador histórico, dado que a AR alterou a proposta do Governo que previa justamente, em termos genéricos, a inclusão na jurisdição administrativa de toda a matéria de contratos da Administração, independentemente de serem de direito público ou de direito privado”. (ob. cit. pag. 115). Não será pois por aqui que se irá atribuir a competência ao foro administrativo e fiscal.
Importa no entanto atentar no artº 4º nº 1 al. f) do E.T.A.F., quando, na sua primeira parte, refere os “contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo”.
Ora, o Código de Procedimento e de Processo Tributário – C.P.P.T. (D.L. 433/99 de 26 de Outubro) regulamenta no seu Título IV a execução fiscal, respeitando os artºs 248º e seguintes à venda de bens penhorados. No artº 257º nº 1 estipulam-se os prazos e causas específicas de anulação da venda. Casos de anulação são os que se fundem “na existência de algum ónus real que não tenha sido tomado em consideração e não haja caducado ou em erro sobre o objecto transmitido ou sobre as suas qualidades por falta de conformidade com o que foi anunciado” [al. a)], a requerer em noventa dias. Ou “quando for invocado fundamento de oposição à execução que o executado não tenha podido apresentar no prazo da alínea a) do nº i do artº 203º” [al. b)], a requerer em trinta dias. Ou ainda “nos restantes casos previstos no Código de Processo Civil” [al. c)], com o que somos remetidos para o nº 1 do artº 908º do Código de Processo Civil, a requerer em quinze dias.
A autora da acção proposta não veio pedir a anulação da venda, invocando qualquer um dos fundamentos previstos taxativamente naquele preceito, e muito menos no prazo estipulado no dito artº 257º. E o artº 49º nº 1 al. d) do E.T.A.F. atribui de facto aos tribunais fiscais a competência para conhecer da “anulação da venda”. Ou seja, para conhecer dos vícios contemplados no artº 257º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
A questão que se tem que por, portanto, é a de saber se o pedido de declaração de nulidade da venda dos autos, com os fundamentos invocados, mesmo para além do contemplado no dito artº 257º, não deverá ser conhecido também pelo Tribunal Tributário competente. Ora, a resposta parece-nos dever ser afirmativa.
É inegável que o artº 257º citado contém nos seus vários números preceitos de direito substantivo e que têm inclusivamente, por consequência, colocar o contratante Estado, leia-se Fazenda Nacional, numa posição de supremacia. A norma do artº 250º do C.P.P.T., por exemplo, que estabelece o “Valor base dos bens para a venda” é de interesse e ordem públicos e tem carácter substantivo também. Ou seja, a venda executiva, em processo de execução fiscal, está regulamentada, também, por normas de direito público e incidência substantiva.
A compra e venda, que em princípio tem uma natureza de contrato de direito privado, transmuta-se na sua natureza quando surge na sequência de um processo de execução fiscal, todo ele imbuído de preocupações de interesse público, de protecção dos interesses financeiros do Estado.
Existe portanto uma norma atributiva de competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais, o artº 4º nº 1 al. f) do E.T.A.F., que na sua primeira parte refere os “contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo”, e que implica retirar aos tribunais comuns a competência para conhecimento do caso em apreço.
Saber se no âmbito dos Tribunais Administrativos e Fiscais a competência deve ser do Tribunal Tributário, é já questão secundária ao nível do presente conflito que é de jurisdição. Sempre se dirá porém que, sendo os Tribunais Tributários competentes para conhecimento dos vícios do artº 257º acima referidos, não seria muito razoável uma repartição de competência dentro do próprio foro administrativo e fiscal, dependente só do tipo de vício que se discute, e relativamente à venda executiva.
D – DECISÃO
Com os fundamentos expostos se acorda em resolver o presente conflito de jurisdição atribuindo a competência para o conhecimento da questão ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, área tributária.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Maio de 2008. – José Adriano Machado Souto de Moura (relator) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – João Moreira Camilo – João Manuel Belchior – Eduardo Maia Figueira da Costa – Jorge Manuel Lopes de Sousa.