Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:050/17
Data do Acordão:03/22/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:HENRIQUE ARAÚJO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO.
ACÇÃO CÍVEL.
Sumário:Questionando-se na petição inicial a responsabilidade civil pré-contratual, contratual e extracontratual, incidindo sobre atuações, alegadamente ilícitas e culposas, de funcionários do Banco Espírito Santo e do Novo Banco é a presente ação da competência material da Instância Local Cível da Guarda. (*)
Nº Convencional:JSTA00070624
Nº do Documento:SAC20180322050
Data de Entrada:09/18/2017
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE A COMARCA DA GUARDA, INSTÂNCIA LOCAL, SECÇÃO CÍVEL, JUIZ 1 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO, UNIDADE ORGÂNICA 1.
AUTOR: A………….
RÉUS: B………… E OUTROS.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO DE JURISDIÇÃO TAF CASTELO BRANCO - INSTÂNCIA LOCAL CÍVEL.
Decisão:DECL COMPETENTE INSTÂNCIA LOCAL CÍVEL.
Área Temática 1:*
Legislação Nacional:L 62/2013 DE 2013/08/26 ART40 N1.
ETAF ART1 N1 ART4.
CONST ART211 N1.
CSC ART271.
Referência a Doutrina:MANUEL ANDRADE - IN NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CÍVIL ED1963 PÁG92.
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DE CONFLITOS

RELATÓRIO

A…………, solteira, maior, residente em …… Rue ………, 1225, Chêne Bourg, na Suíça, e, em Portugal, na Rua do ………, n.º ……, ………, Guarda, propôs acção declarativa comum contra B…………, residente em Cantanhede, e contra o Banco Espírito Santo, S.A., o Novo Banco, S.A., e o Fundo de Resolução, todos com sede em Lisboa, pedindo a condenação solidária dos Réus no pagamento da quantia de 25.000 € a título de danos patrimoniais, acrescida de juros desde 11.07.2013, e da quantia de 2.500 € a título de danos não patrimoniais.
Alega, em síntese, que:
- Estando emigrada na Suíça, sempre depositou as suas poupanças em instituições bancárias portuguesas, principalmente no BES;
- O gestor das suas contas no BES era o 1º Réu, Sr. B…………, pessoa que a contactava e que lhe geria os depósitos;
- Porque a Autora não tem conhecimentos nem experiência na área dos investimentos, e porque o seu único propósito era ver assegurada a sua reforma a partir dos juros que tais depósitos lhe gerariam, sempre recusou a mobilização dos seus capitais para aplicações financeiras envolvendo riscos;
- No decurso do ano de 2013, o 1º Réu contactou-a, dizendo-lhe que deveria aplicar parte das suas poupanças em depósitos a prazo, especiais para emigrantes (conta a prazo especial denominada Poupança Plus 1), que lhe garantiam a totalidade do capital nos respectivos vencimentos, bem como juros à taxa de, pelo menos, 4,20% ao ano;
- Por confiar nas informações prestadas e nesse gestor de conta, a Autora autorizou, em 11.07.2013, a mobilização do capital de 25.000 € para essa aplicação, com a duração de dois anos e a taxa de juro de 4,40%;
- Após o vencimento da referida aplicação, a Autora pretendeu levantar aquele montante, mas tal foi-lhe negado pelos funcionários da agência do Novo Banco, que sucedeu ao BES, com a indicação de que o Banco de Portugal não autorizava esse levantamento no imediato;
- Até que, em finais de Junho de 2015, os funcionários do Novo Banco informaram-na de que já não lhe devolviam o montante aplicado, nem os juros ...;
- ... tendo-lhe sido proposto que transformasse essa aplicação num outro depósito constituído por obrigações, com maturidade superior a 30 anos, sem garantia de capital ou juros;
- A Autora não aceitou essa proposta, tendo tomado conhecimento, nessa mesma altura, que o BES, por intermédio do 1º Autor, agindo contra a vontade e sem o consentimento da Autora, havia aplicado o referido montante de 25.000 € em valores mobiliários;
- As aplicações financeiras feitas em nome da Autora, não a vinculam nem a responsabilizam, vinculando apenas o BES e o Novo Banco que usaram indevidamente o dinheiro que lhes foi entregue para constituir depósitos a prazo;
- Os dois primeiros Réus violaram os deveres de informação sobre os produtos em causa, bem como os deveres de lealdade, neutralidade e respeito dos interesses que lhes estão confiados e previstos no DL 289/92, de 31 de Dezembro, tendo agido de má-fé, pois fizeram acreditar os Autores que estavam a fazer um depósito a prazo com capital e juros assegurados;
- A iminência de poder ver perdida grande parte das poupanças de uma vida de trabalho traz a Autora num estado de forte ansiedade e nervosismo, não dormindo convenientemente e lamentando-se continuamente.

Contestaram a acção o Banco Espírito Santo (fls. 299 e seguintes), o Novo Banco (fls. 131 e seguintes) e o Fundo de Resolução (fls. 360 e seguintes), tendo este último suscitado a excepção da incompetência absoluta do Tribunal, considerando serem competentes os tribunais administrativos.

A instância local cível da Guarda, onde a acção havia sido proposta, declarou-se incompetente em razão da matéria e absolveu os Réus da instância, considerando que a competência material pertence aos tribunais administrativos e fiscais - cfr. fls. 501 e seguintes.

Recebidos os autos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, foi também aí declarada a incompetência em razão da matéria, conforme decisão de fls. 615 e seguintes.

Ambas as decisões transitaram em julgado, dando origem ao presente conflito negativo de jurisdição.

O Digno Magistrado do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de que a competência seja atribuída à Instância Local Cível da Comarca da Guarda.
*

FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos que relevam para a decisão deste conflito são os que constam do antecedente relatório.

O DIREITO

A questão que cumpre decidir é saber qual a jurisdição materialmente competente para dirimir a causa.

Nas palavras de Manuel Andrade (“Noções Elementares de Processo Civil”, edição de 1963, página 92,) "na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo - o da natureza da relação substancial pleiteada".
A regra geral é a de que são da competência dos tribunais comuns todas as causas que não forem, por lei, da competência de alguma jurisdição especial; aos tribunais especiais só competem as causas que a lei directamente lhes atribua.
Isto mesmo decorre do art. 40º, n.º 1, da Lei 62/2013 de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) (Ver também o artigo 211º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.) ao estabelecer que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais.
A competência dos tribunais judiciais determina-se, pois, por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias não conferidas aos tribunais de competência especializada.
No que toca à competência dos tribunais administrativos, determina o artigo 1º, nº 1, do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro) (Ver também o artigo 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.) que "os tribunais administrativos e fiscais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais".
É o artigo 4º do ETAF que enuncia em concreto o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
No caso vertente, a Instância Local Cível da Guarda colocou enfoque nas normas das alíneas a) e g) do n.º 1 e na do n.º 2 desse artigo 4º, para rejeitar a competência material, embora fazendo uso de redacções desactualizadas dessas mesmas normas. Na verdade, tendo a acção dado entrada em juízo em 08.03.2016, aplicava-se já a redacção dada ao artigo 4º pelo DL 214-G/2015, de 2 de Outubro.
De qualquer forma, o que importa é saber quais as questões que, em matéria contratual e de responsabilidade civil extracontratual, cabem no âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais para depois se decidir se o presente litígio deve ser dirimido por essa mesma jurisdição.

Vejamos, então, o que dizem as alíneas e), a h):
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público.

Convoca-se ainda o disposto no n.º 2 do mesmo artigo, onde se prescreve:
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
Na decisão da Instância Local Cível da Guarda escreveu-se:
"O que está em causa, parece-nos, sempre ressalvando melhor entendimento, não é o incumprimento unilateral de contratos de depósito bancário, mas a atuação dos Réus em cumprimento de resoluções impostas pelo Banco de Portugal.
E foi a diferenciação entre capitais seguros e de risco e quais eram ou não assumidos ou transferidos para o Novo Banco, de acordo com tais resoluções, que terá provocado a alegada lesão patrimonial e não patrimonial.
Dito de outro modo, as alegadas violações do dever de informação e lealdade por parte dos RR seriam inócuas para a produção de danos, não fora as instruções/ordens/normas do Banco de Portugal.
Daí que, quando os AA se dirigiram ao Banco para levantar o montante que aí possuíam, lhes terá sido dito que 'O Banco de Portugal não o autorizava de momento' - vide art. 28º da petição inicial.
Não fora as decisões administrativas, de duas uma: ou o montante investido pelos AA nas várias ações ainda aí permaneceria e teria de ser restituída ou tudo se passaria como um negócio civilista comum, sujeitando-se a entidade bancária a uma condenação e eventual execução ou até processo de insolvência, nos quais os credores reclamariam os seus créditos e seriam (ou não) pagos nos termos normais.
Face a tais deliberações do Banco de Portugal, alteraram-se as circunstâncias de facto e de direito, já que os 'passivos' foram transferidos para uma outra sociedade.
Não estamos, por isso, cremos, perante um caso de natureza meramente civilista, mas antes perante relações jurídicas complexas que envolvem entidades públicas e normas de direito administrativo.
O Fundo de Resolução é aqui demandado, não enquanto accionista – sendo certo que gozando o Novo Banco de personalidade jurídica mas se perceberia que se demandasse o accionista, atento o disposto no art. 271º do CSC - mas justamente enquanto entidade com autonomia financeira, receitas e património próprio para prestar apoio financeiro à aplicação das medidas de resolução”.
Salvo o devido respeito, este raciocínio extravasa largamente o alegado pelos Autores.
E é importante não esquecer que, como é pacificamente aceite pela doutrina e jurisprudência, a competência do tribunal em razão da matéria afere-se de harmonia com a relação jurídica controvertida, tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido.
Ora, se atentarmos no conteúdo da petição inicial, logo constatamos que os factos alegados se conexionam com os institutos da responsabilidade civil pré-contratual, contratual e extracontratual, incidindo sobre actuações, alegadamente ilícitas e culposas, de funcionários do Banco Espírito Santo e do Novo Banco. Não tem, pois, aqui cabimento nenhuma das previsões das mencionadas alíneas f) a h) - que se referem à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público ou de quaisquer servidores públicos -, bem como também se não aplica a previsão da alínea e), na medida em que estamos perante contratos regulados por normas de direito privado.
Será, porém, que o n.º 2 do artigo 4º impõe a intervenção, no caso, dos tribunais administrativos, por vir demandado o Fundo de Resolução, pessoa colectiva de direito público?
A única referência que na petição inicial vem feita ao Fundo de Resolução consta do artigo 87º (A medida de resolução vem também sumariamente alegada nos artigos 84º e 85º, ainda no mesmo capítulo da ‘legitimidade das partes’.), inserida no capítulo dedicado à legitimidade das partes, tendo os Autores aí alegado o seguinte:
"Por sua vez, o Fundo de Resolução é o único accionista do Novo Banco, S.A., sendo igualmente o responsável máximo pelas relações jurídicas retiradas ao BES e entregues ao Novo Banco, S.A., por força da supra aludida medida de resolução adoptada pelo Banco de Portugal".
Tal matéria, que parece apenas querer justificar, no plano processual, a demanda do Fundo de Resolução, é claramente insuficiente para accionar a norma do n.º 2 do artigo 4º, na medida em que dela não resulta qualquer contributo desse Réu para a produção dos danos alegadamente sofridos pelos Autores.
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DECISÃO

Nestes termos, decide-se o presente conflito de jurisdição atribuindo-se a competência material para a causa à Instância Local Cível da Guarda.
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Sem custas.
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Lisboa, 22 de Março de 2018. - Henrique Luís de Brito de Araújo (relator) – Maria do Céu Dias Rosa das Neves – António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes - Alberto Acácio de Sá Costa Reis – João Moreira Camilo – Ana Paula Soares Leite Martins Portela.