Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03/16
Data do Acordão:05/12/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:JOSÉ VELOSO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
HABITAÇÃO SOCIAL
Sumário:Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para conhecer de um pedido de desalojamento e entrega de um fogo que vem sendo ocupado com base em «credencial provisória» emitida no âmbito da habitação proporcionada a pessoas carenciadas.
Nº Convencional:JSTA000P20521
Nº do Documento:SAC2016051203
Data de Entrada:01/18/2016
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TAF DE SINTRA E A COMARCA DE LISBOA OESTE, CASCAIS, INSTÂNCIA LOCAL, SECÇÃO CÍVEL - J1
AUTORA: SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE .......
RÉU: A...... E B.......
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº: 03/16

I. Relatório

1. SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE …….. [SCM/…….] demandou junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra [TAF/S] A……. e B………., identificados nos autos, mediante acção administrativa comum [AAC] sob a forma sumária, pedindo o seguinte:
a) Sejam declarados extintos todos os efeitos emergentes da credencial concedida ao primeiro réu;
b) Sejam os réus desalojados do fogo concedido, em virtude da falta de pagamento de rendas vencidas;
c) Sejam os réus condenados a entregar à autora o fogo totalmente livre e devoluto de pessoas e bens, e em bom estado de conservação;
d) Sejam os réus condenados a pagar à autora a quantia total de 1.360,30€, bem como o valor mensal de 22,30€ desde a data da entrega da petição inicial até à data em que seja proferida a sentença, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, a contar da citação;
e) Sejam os réus condenados a pagar à autora o montante devido a título de indemnização pela ocupação de pessoas e bens após a declaração de extinção dos efeitos da credencial provisória concedida até entrega do fogo;
f) Sejam os réus condenados a pagar as custas e a procuradoria.

2. A SCM/….., segundo decorre da sua petição inicial, necessita, na sequência de um «Protocolo de Parceria» celebrado com o Município de Cascais [MC] destinado à regeneração urbana no âmbito do programa integrado de requalificação e inserção de bairros críticos do quadro de referência estratégica nacional - de ver livre e desocupado um andar que havia sido atribuído em meados de 1982 ao réu A……e seu agregado familiar.
Esse andar, pertencente à autora desde Setembro de 1982, devido a «Protocolo de Cedência» por ela celebrado com a Cruz Vermelha Portuguesa [CVP], faz parte de um conjunto de 60 fogos construídos e destinados a realojar pessoas pobres que então ainda residissem no Vale do Jamor, «segundo o regime constante do DL nº797/76 de 06.11».
No âmbito desse processo de atribuição de habitações sociais, o andar aqui em causa foi atribuído ao réu A……… e seu agregado familiar, mediante credencial provisória emitida ainda pela CVP e o pagamento da renda mensal de 4.470$00 pelo ocupante, e com a informação de que iria ser celebrado, posteriormente, um contrato de arrendamento, o que, no caso, nunca aconteceu.
É com base na natureza precária, diz, do referido título de ocupação, e na falta de pagamento da prestação devida pelo réu desde Janeiro de 2008, que a ora autora deduz os pedidos já elencados, por entender que os efeitos da referida credencial provisória se extinguiram por se ter deixado de verificar a «condição essencial» da manutenção dessa licença de ocupação, ou seja, o pagamento da renda.

3. Por decisão datada de 20.03.2014, o TAF/S julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecimento da lide, por entender que a mesma pertenceria à jurisdição comum [folhas 82 a 90 dos autos].

4. Remetidos que lhe foram os autos, o Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste - Cascais – Instância Local – Secção Cível, J1 - declarou-se, também, materialmente incompetente, por entender que o são os tribunais da jurisdição administrativa [folhas 101 a 110 dos autos].

5. O Ministério Público pronunciou-se no sentido deste conflito de jurisdição ser resolvido com a atribuição da competência material para o litígio «aos tribunais da jurisdição administrativa» [folhas 101 a 104 destes autos].

6. Colhidos que foram os «vistos» legais, importa apreciar, e decidir, o conflito negativo de jurisdição.

II. Apreciação

1. A questão colocada a este Tribunal de Conflitos reconduz-se apenas a definir se a «competência em razão da matéria» para a apreciação do litígio vertido na acção declarativa de condenação aqui em causa cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.
O tribunal da jurisdição administrativa que sobre essa questão se pronunciou, o TAF/S, arredou de si tal competência por entender, e fundamentalmente, que «não existe nos autos sinal de qualquer relação jurídica administrativa, em que a autora se mostre no exercício de prerrogativas de autoridade ou jus imperii».
O tribunal da jurisdição comum entendeu, por sua vez, que estamos no quadro da «habitação social, sujeita a regime único de atribuição, independentemente da entidade proprietária ou administradora dos fogos [DL nº797/76, de 06.11]», e que o «fundamento da obrigação cujo reconhecimento vem peticionado se reconduz à existência de um acto administrativo de atribuição de um fogo e à subsequente obrigação de pagamento de renda, no âmbito de uma relação contratual com a administração». E enquadrou a «competência da jurisdição administrativa» na hipótese legal do artigo 4º, nº1 alínea f), do ETAF.

2. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo [artigo 202º da CRP], sendo que cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e actual 40º, nº1, da Lei nº62/2013, de 26.08], e aos tribunais administrativos a competência para julgar as causas «emergentes de relações jurídicas administrativas» [artigos 212, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF 2004, aqui aplicável].
Assim, na sequência das normas constitucionais e legais, e tal como vem sendo entendido, aos tribunais judiciais, ou da chamada jurisdição comum assiste uma competência genérica e residual, pois são competentes para «todas as causas» que «não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
Os tribunais administrativos, por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92, e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95].
A cada uma destas duas jurisdições, comum e administrativa, caberá, portanto, um determinado «quinhão» do poder jurisdicional que, em bloco, pertence aos «tribunais», sendo que o mesmo é determinado essencialmente em função das matérias versadas nos diferentes litígios carentes de tutela jurisdicional.
E tais matérias são aferidas através de determinados «índices de competência», entre os quais sobressaem «os termos em que a acção se mostra proposta pelo autor», isto é, o pedido formulado e a causa de pedir que o fundamenta.
Doutro modo, e como tem sido dito, «a competência dos tribunais em razão da matéria, ou jurisdição, afere-se em função da configuração da relação material controvertida, ou seja, em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os seus fundamentos» [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10].

3. No artigo 4º do ETAF aqui aplicável [em vigor desde 01.01.2004, e antes da alteração que lhe foi efectuada em 2015] é feita uma enumeração exemplificativa de matérias litigadas cujo conhecimento pertence [alíneas do nº1] ou não pertence [alíneas do nºs 2 e 3] aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Entre elas se destacam, por pertinentes ao presente caso, as alíneas e) e f) do nº1, nas quais se reserva à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto «e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público», e os que tenham por objecto «f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público».
Porém, para além de tal enumeração exemplificativa permanece sempre a regra geral de atribuição de competência aos tribunais administrativos para julgar as causas «emergentes de relações jurídicas administrativas», como já deixamos dito.
Na determinação do conteúdo do conceito de «relação jurídico administrativa» deve ter-se presente que «esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: 1) As acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público [especialmente da administração]; 2) As relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo […]. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico civil. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas […] será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo […]» [Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, volume II, Coimbra Editora, 2010, páginas 566 e 567].
Deste modo, a aparente diversidade de critérios de atribuição de competência à jurisdição administrativa, que emerge dos números e alíneas do dito artigo 4º, deve resolver-se na base do princípio de que «pertence à jurisdição administrativa […] a apreciação de todos os litígios que versem sobre matéria jurídico administrativa […] e cuja apreciação não seja expressamente atribuída, por norma especial, à competência dos tribunais judiciais, assim como aqueles que, embora não versem sobre matéria jurídico administrativa […], são expressamente atribuídos, por norma especial, à competência desta jurisdição – sendo que encontramos no artigo 4º do ETAF algumas disposições especiais com este alcance» [Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2013, página 157].

4. Em termos jurídicos, a autora, SCM/……, articula, na sua petição inicial, que o fogo atribuído ao réu A……. e seu agregado familiar, integrava o «o conjunto de 60 fogos destinados a habitação de pessoas verdadeiramente carenciadas, pertencente, ao tempo, à Cruz Vermelha Portuguesa [CVP], e com sujeição a um regime único de atribuição, independentemente da entidade proprietária ou administradora [ver DL nº797/76 de 06.11]».
E articula ainda que a credencial que permitiu a ocupação legítima do referido fogo a título precário fora concedida ao réu A……… e seu agregado familiar «no regime previsto pelo DL nº 797/76 de 06.11».
Assim, para podermos compreender o verdadeiro alcance do pedido e da causa de pedir vertidos na petição inicial importará lançar alguma luz sobre tal regime jurídico.
O DL nº 797/76, de 06.11, que criou os serviços municipais de habitação social, reconhecia a coexistência dos seguintes regime jurídicos de habitação social: - as «casas económicas» [reguladas no DL nº23052, de 23.09.33; DL nº39288, de 21.07.53; DL nº40246, de 06.07.55; DL nº40552, de 12.03.56; Lei nº2092, de 09.04.58; DL nº43973, de 20.10.61; e no DL nº376/76, de 19.05]; - as «casas para famílias pobres» [reguladas no DL nº34486, de 06.04.45; e DL nº35106, de 06.11.45]; - as «casas de renda económica» [reguladas na Lei nº2007, de 07.05.45; e Lei nº2092, de 09.04.58]; - e as «casas de renda limitada» [reguladas no DL nº36212, de 07.04.47; e DL nº608/73, de 14.11].
O DL nº23052, de 23.09.33, foi um dos primeiros diplomas a abordar a questão da habitação social. Instituiu a possibilidade de o Governo, em colaboração com as câmaras municipais, corporações administrativas e organismos corporativos, promover a construção de «casas económicas», ou seja, a construção de casas a preços acessíveis, com o objectivo de proceder à sua alienação a «famílias mais carenciadas». E a «aquisição» destas habitações assentava num processo complexo, segundo o qual num primeiro momento as casas eram distribuídas, de acordo com critérios previamente fixados, mediante contrato celebrado com o Estado em regime de propriedade resolúvel comprometendo-se os candidatos a adquirentes ao pagamento de determinado número de prestações mensais, sob a forma de renda mensal.
O DL nº34486, de 06.04.45, dava conta que o regime das casas económicas, apesar de vantajoso para os interessados, na medida em que proporcionava a transição do regime de ocupante para proprietário, assentava no pagamento de montantes de renda que, sendo baixos, não estavam ainda ao alcance de todas as famílias. Assim, este diploma criou novo regime jurídico de habitação social, denominado «casas destinadas ao alojamento de famílias pobres», a fim de dar solução aos problemas de famílias verdadeiramente carenciadas. E, ao contrário das casas económicas, aqui não se procurava dar uma resposta ao alojamento definitivo, limitando-se a prever a criação de habitações que permitissem alojar a título provisória tais famílias e sua posterior recondução para uma modalidade de alojamento definitivo [casas económicas ou casas de renda económica]. Assim se percebe que o legislador tenha determinado que a «ocupação» deste tipo de habitações fosse concedido a título precário, mediante licença.O regime segundo o qual deveriam ser atribuídas estas habitações foi posteriormente desenvolvido pelo Decreto nº35106, de 06.11.45. Tratava-se, pois, de assegurar «alojamento a título precário», «provisório», até que fosse possível reencaminhar tais famílias para um tipo de habitação social de cariz definitivo, como as «casas económicas e as casas de renda económica».
A Lei nº2007, de 07.05.45, aprovou efectivamente as bases do regime jurídico das «casas de renda económica». Tratar-se-ia de habitações «construídas» por privados, ou por instituições de previdência social, e que deveriam obedecer a características específicas exigidas pela referida «lei de bases». As casas assim construídas teriam de destinar-se, exclusivamente, a famílias carenciadas, que correspondessem aos «critérios de rendimento familiar» descritos no diploma, e mediante contrato de arrendamento pelo prazo de 1 ano renovável. As câmaras municipais dispunham do poder de promover sumariamente a desocupação das casas - através de despejo administrativo com intervenção da força pública em caso de necessidade - que estivessem ocupadas por famílias que não preenchessem os requisitos legais. Em 1958, a Lei nº2092, de 09.04, veio estipular novas bases para este tipo de «habitação social».
Pelo DL nº36212, de 07.04.47 o legislador criou o regime das «casas de renda limitada», a fim de potenciar o maior desenvolvimento do mercado imobiliário a preços acessíveis. Tratava-se da «construção» de prédios, para arrendamento, baseado na prévia fixação do limite máximo da renda a cobrar pelos andares destinados a habitação. Assim, o Estado concedia facilidades aos privados, na cedência de terrenos e benefícios fiscais, os quais se obrigavam a construir e dar de arrendamento os fogos através de um contrato, por prazo razoável, e limitado na renda a cobrar. Esta legislação sobre «casas de renda limitada» foi substancialmente alterada pelo DL nº 608/73, de 14.11. Este diploma previa, e entre outras inovações, a criação de «bolsas de habitação» junto das câmaras municipais, através das quais se processariam os arrendamentos deste tipo de «habitações sociais».
Nos anos seguintes foi notório o esforço do legislador para procurar que casas destinadas a habitação a «título definitivo» pudessem, gradualmente, deixar de ser ocupadas a «título precário», premiando-se as soluções que conduzissem à «aquisição» das mesmas pelos respectivos ocupantes [ver DL nº43973, de 20.10.61; DL nº419/77, de 04.10; DL nº31/82, de 01.02; e DL nº310/88, de 05.09].
Apesar desta preferência legislativa pela alienação das habitações sociais, em vez da sua atribuição e ocupação a título de licença precária, certo é que este regime continuou a existir. De facto, como o DL nº31/82 sublinha, não estava em causa a imposição de um regime obrigatório de alienação. E, como todos os referidos diplomas ressalvavam, ficariam sempre na titularidade dos respectivos proprietários - quer se tratasse de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, do Estado, ou das autarquias locais - as casas que, construídas para satisfazer situações de emergência, se destinassem exclusivamente a assegurar alojamento às respectivas famílias, até que pudesse ser obtido um alojamento definitivo. Sendo certo que, neste último caso, continuaria a vigorar o regime de licenças a título precário previsto no Decreto nº35106, de 06.11.45.

5. Ora, o artigo 3º do DL nº797/76, de 06.11, invocado pela autora na petição inicial, diz que «Constitui função principal dos serviços municipais de habitação, além de assegurar a gestão do parque habitacional, a atribuição, segundo os regimes legalmente fixados, dos fogos construídos ou adquiridos para fins habitacionais pelo Estado, seus organismos autónomos, institutos públicos personalizados, pessoas colectivas de direito público, instituições de previdência e Misericórdias situados na respectiva área». E no seu nº2 diz que, de acordo com o número anterior, passa, desde já, a competir aos serviços municipais de habitação do respectivo município a distribuição dos fogos seguintes: - «casas económicas»; - «casas para famílias pobres»; - «casas de renda económica»; - e «casas de renda limitada».
E o seu artigo 8º estipula que a «atribuição de habitações sociais», segundo os regimes legais aplicáveis, construídas ou propriedade das entidades referidas no artigo 3º, nº1, «será feita nos termos de regulamento a aprovar por decreto dos Ministros da Administração Interna e Habitação, Urbanismo e Construção», por concurso de classificação ou por sorteio, conforme os casos.

6. A integração do presente litígio no âmbito material de uma ou outra das duas referidas jurisdições determina-se, assim, sobretudo pelo pedido formulado pela autora e pelos fundamentos invocados para o sustentar, ou seja, «pelos termos em que a acção foi proposta», e esclarecidos, agora, pelo complexo normativo relativo ao regime de atribuição de habitação social.
Na acção declarativa aqui em causa, a autora, que é uma «instituição particular de segurança social» [ver a Secção II do capítulo III do Estatuto das IPSS aprovado pelo DL nº119/83, de 25.02], com a natureza de pessoa colectiva de utilidade pública [artigo 8º do DL nº119/83, de 25.02], pretende ver declarados extintos os efeitos emergentes da «credencial provisória» que legitima a «ocupação» do fogo «atribuído» ao réu A……… em 1982 pela CVP. E fá-lo na qualidade de actual proprietária do imóvel, com base na natureza precária do referido título de ocupação, e com fundamento quer na «não ocupação» da habitação pelo agregado familiar do réu, desde há cerca de 8 anos, quer na «falta de pagamento» da prestação mensal devida [renda mensal] desde Janeiro de 2008. Os outros pedidos feitos pela autora estão seguramente numa relação de dependência desse referido pedido principal, razão pela qual é ele a determinar a competência do tribunal [artigos 87º, nº3, do CPC então em vigor, e 82º, nº3, do actual CPC].
Ora, enquadrando-se indiscutivelmente o objecto da acção no regime jurídico da «habitação social», e sendo certo que o direito de ocupação das habitações sociais titulado por licença precária não é, nem pode ser considerado, contrato de arrendamento, ou tão pouco uma questão de direito privado, surge segura a conclusão da competência, no caso, dos tribunais da jurisdição administrativa.
E isto não tanto pelo facto do respectivo contrato, que, no caso, nem chegou a ser «formalmente» celebrado, dever ser precedido por um «procedimento pré- contratual regulado por normas de direito público» destinado a determinar qual o candidato a que deveria ser atribuída a habitação. Na verdade, embora este procedimento seja imposto pelo artigo 8º do DL nº797/76 de 06.11, e tudo nos leve a conjecturar, face ao articulado na petição inicial, que o mesmo terá sido realizado, face ao tempo e ao modo de atribuição, o certo é que o mesmo não se mostra de algum modo referido nesse articulado inicial. Não cremos, assim, que a competência material da jurisdição administrativa deva ser alicerçada, no caso, na alínea e) do nº1 do artigo 4º do ETAF aplicável.
Nem vamos ao ponto, porquanto tal não nos é aqui pedido, de entender o dito certificado provisório como formalização de um precedente acto administrativo, pelo qual a entidade autárquica tenha atribuído a ocupação da casa ao réu, ou, então, a comprovação de um «contrato administrativo atípico», com normas de direito público a regular aspectos específicos do respectivo regime substantivo, de modo a que a competência material da jurisdição administrativa pudesse ser alicerçada na alínea f) do nº1 do artigo 4º do ETAF aplicável.
O que temos como certo é que estamos perante uma relação jurídica que tem um conteúdo diferenciado da relação jurídica de arrendamento do direito civil, e que apresenta um conjunto muito eloquente de índices de administratividade, traduzidos, desde logo, na sua inserção no âmbito da prossecução do interesse público de proporcionar habitação a famílias verdadeiramente carenciadas, e no âmbito do respectivo regime de direito público que lhe assiste. Efectivamente, tendo sido invocado como título legitimador da ocupação habitacional que ora se pretende ver cessada uma credencial provisória, ou seja, um título precário, não poderá deixar de ser convocado, para além do mais, o regime de licenças a título precário previsto no Decreto nº35106, de 06.11.45, pois que o ocupante da casa apenas está investido na posse legítima da mesma enquanto for válido esse título de ocupação.
Nestes termos, o presente litígio emerge de controvérsia sobre uma «relação jurídica administrativa», entendida esta como relação «regulada por normas de direito administrativo, que atribuam prerrogativas de autoridade ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais, a todos ou alguns dos intervenientes, por razões de interesse público, que não se colocam no âmbito de relações de natureza privada»[ver Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, página 15; Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, in Direito Administrativo Geral, D. Quixote, 2009, Tomo III, páginas 274 e seguintes; José Carlos Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, Almedina, 8ª edição, páginas 57 e 58].

7. Assim, e à semelhança do que tem vindo a ser decidido noutros conflitos de competência de contornos muito próximos, pois que despoletados no âmbito de litígios dirimidos no quadro do regime jurídico da «habitação social», também aqui entendemos estar perante um litígio emergente de uma «relação jurídica administrativa» para a qual «são competentes os tribunais administrativos», no caso, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra [ver, entre outros, AC Tribunal de Conflitos de 25.09.2012, nº012/11; AC Tribunal de Conflitos de 05.03.2013, nº04/13; AC Tribunal de Conflitos de 11.12.2013, nº049/13; AC Tribunal de Conflitos de 29.04.2014, nº065/13; AC Tribunal de Conflitos de 15.05.2014, nº014/14; AC Tribunal de Conflitos de 09.12.2014, nº038/14; e AC Tribunal de Conflitos de 29.01.2015, nº030/14].

III. Decisão
Nestes termos, decidimos o presente «conflito de jurisdição», atribuindo aos tribunais da jurisdição administrativa a competência, em razão da matéria, para conhecer do objecto da acção declarativa interposta pela Santa Casa da Misericórdia de ……… contra A…….. e B......... .

Sem custas.

Lisboa, 12 de Maio de 2016. – José Augusto Araújo Veloso (relator) – Manuel Pereira Augusto de Matos – José Francisco Fonseca da Paz – António dos Santos Abrantes Geraldes – Carlos Luís Medeiros de Carvalho – José Inácio Manso Rainho.