Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:022/22
Data do Acordão:04/18/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:É da competência dos Tribunais Judiciais julgar um litígio no qual se discute o reconhecimento e reivindicação do direito de propriedade sobre o imóvel em questão.
Nº Convencional:JSTA000P30886
Nº do Documento:SAC20230418022
Data de Entrada:07/01/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO CÍVEL – J4 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE COIMBRA
REQUERENTE: A..., SA
REQUERIDO: MUNICÍPIO DE COIMBRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A..., SA intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Instância Central – Secção Cível, J4, acção de reivindicação contra o Município de Coimbra, formulando os seguintes pedidos:
a) Declarar-se que o prédio identificado no artigo 2.º é propriedade da Autora;
b) ser o Réu condenado a restituir à Autora o referido prédio;
c) Caso a restituição não seja possível, seja o Réu condenado a pagar à Autora compensação pecuniária de montante nunca inferior €1.333.000,00”.
Em síntese, a Autora alega que o prédio urbano que identifica no artigo 2º da p.i., registado a seu favor desde 03.02.1969, por o ter adquirido quando ainda girava sob a denominação de B..., Sociedade Anónima, tem uma parcela onde se encontra implantado um posto de abastecimento de combustíveis, o qual esteve em funcionamento até Janeiro de 2014, encontrando-se actualmente desactivado, pela não renovação do alvará de exploração pela Câmara Municipal de Coimbra.
O Réu, com quem esteve em negociações tendentes à viabilização da deslocalização desse posto de combustível, para local alternativo, desde Outubro de 2006, ocupou a parcela de terreno que a Autora estava disposta a permutar, ao que deu o seu assentimento, considerando que “as negociações para a recolocação do posto estão bem encaminhadas, pelo que não vejo qualquer inconveniente” (cfr. documento nº ...).
A parcela ocupada foi destinada a um jardim e foi avaliada, pelo próprio Município, em cerca de €1.333.000,00. A Autora já requereu, em sede de procedimento administrativo (audiência prévia) e por cartas de 16.10.2012 e de 23.11.2012, ao Município, compensação pecuniária, nesse montante, pela ocupação do terreno de sua propriedade, sem obter qualquer resposta. Ou seja, o Município ocupou o prédio de que a Autora é proprietária, ocupação que é ilegal e não pode manter-se.
A Ré contestou e deduziu reconvenção.
Em 05.03.2015, na Instância Central, Secção Cível, Juiz 4, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer do objecto da acção, absolvendo o Réu da instância (cfr. fls. 86 a 93 dos autos).
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra (depois da realização de diversas diligências de prova, incluindo peritagem), após uma redistribuição, foi proferida sentença em 08.03.2022 a julgar verificada a excepção dilatória de incompetência do Tribunal em razão da matéria e a absolver o Réu da instância.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 do art. 11º, da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer a fls. 357 a 361 no sentido de o presente conflito dever ser dirimido mediante a atribuição da competência material à jurisdição comum.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Instância Central, Secção Cível, Juiz 4, e o TAF de Coimbra.
Entendeu a Secção Cível de Coimbra que a matéria em apreciação nos autos se insere no âmbito da competência dos tribunais administrativos, nos termos do disposto nas als. c), e) e g) do nº 1 do art. 4º do ETAF. “A presente acção é, pois, da competência dos tribunais administrativos – al. c) e) e g) do nº 1 do Artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Em face do exposto julga-se verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do presente tribunal por serem competentes para o efeito, em razão da matéria, os tribunais da jurisdição administrativa e, em consequência, ao abrigo dos arts. 96º, a), 99º, 287/1/a do CPC, absolve-se a Ré da instância.”
Por sua vez o TAF de Coimbra considerou, nomeadamente, que “(…)as questões decidendas não emergem de uma relação jurídica administrativa, nem a Autora fundamenta a seu pedido de restituição do imóvel em quaisquer normas de direito administrativo: a alusão feita, na petição inicial, à não renovação do alvará de exploração do posto de combustível (que de resto já foi alvo de ação que correu termos neste Tribunal) e às negociações do protocolo que permitiria deslocalizar o referido posto é meramente incidental e não tem qualquer autonomia dogmática para efeitos de transmutar o pedido privatístico de reconhecimento do direito de propriedade numa qualquer relação jurídica de cariz publicista e de natureza administrativa. (…)
Em suma, o pedido principal, donde emergem os demais pedidos formulados na ação, é que o Réu seja condenado a reconhecer que a parcela que ocupou pertence à A., e que a restitua, ou seja, estamos perante uma ação de reivindicação, prevista no artigo 1311.º do CC.
E, como se tem decidido no Tribunal dos Conflitos, as ações de reivindicação não cabem na previsão do artigo 4.º do ETAF, na redação em vigor à data da propositura da ação, mas antes são da competência dos tribunais judiciais, enquanto, tribunais comuns com competência residual (cf. neste sentido, entre outros, os Acs. de 26.01.2017 e de 24.05.2017, in Conflitos nºs 52/14 e 1/17, respetivamente).”

Vejamos.
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais [artigos 211º, nº 1 da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)].
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada nos artigos 1º e 4º. do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, com várias alterações legislativas.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. nº 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Ora, na presente acção a Autora pede que se declare que o prédio identificado no artigo 2º da p.i. é de sua propriedade; ser o Réu condenado a restituir à Autora o referido prédio; caso a restituição não seja possível, seja o Réu condenado a pagar à Autora compensação pecuniária de montante nunca inferior €1.333.000,00.
Assim, o que se pretende é, imediata e claramente, o reconhecimento de uma relação de direito privado, de reivindicação do direito de propriedade.
Tal como a Autora apresenta o litígio, formulando pedidos que têm subjacente o direito de propriedade, que invoca e pretende fazer prevalecer, a relação controvertida é uma relação de direito privado, trata-se da defesa do direito de propriedade de um bem. E, a circunstância de o pedido indemnizatório formulado poder ser enquadrado no âmbito da responsabilidade civil extracontratual não obsta a este juízo, já que este pedido, tal como formulado na acção, não tem autonomia, sendo simplesmente decorrente da invocada violação do direito de propriedade, não relevando, como tal, para a determinação da competência material do tribunal (cfr. neste sentido o Ac. deste Tribunal de 23.01.2020, Proc. nº 041/19 e os arestos nele indicados).
Este Tribunal dos Conflitos tem entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais não se inclui no artigo 4º do ETAF, devendo estas ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual (cfr. Acórdãos de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19, de 02.12.2021, Proc.03802/20.8T8GMR.G1.S1 e de 15.02.2023, Proc. nº 10/21 (todos consultáveis in www.dgsi.pt).
Deste modo, não se enquadrando no art. 4º do ETAF a relação jurídica em causa nos presentes autos, tal como configurada pela Autora, uma vez que as pretensões formuladas radicam no invocado direito real de propriedade, a competência material para apreciar a presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Instância Central, Secção Cível, Juiz 4.
Sem custas.

Lisboa, 18 de Abril de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.