Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:041/21
Data do Acordão:03/23/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO EMPREITADA
PROCEDIMENTO PRÉ-CONTRATUAL
IMPOSIÇÃO LEGAL
Sumário:É da competência dos tribunais comuns o julgamento de acção na qual está em causa contrato de empreitada celebrado entre privados, precedido de procedimento pré-contratual que não era exigido por qualquer norma ou diploma legais.
Nº Convencional:JSTA000P29174
Nº do Documento:SAC20220323041
Data de Entrada:12/21/2021
Recorrente:A……………., UNIPESSOAL LDA NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA PORTALEGRE – JUÍZO LOCAL CÍVEL DE PORTALEGRE – JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE CASTELO BRANCO
REQUERIDO: ASSOCIAÇÃO COMERCIAL, INDUSTRIAL E SERVIÇOS DO DISTRITO DE PORTALEGRE
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 41/21


Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A Associação Comercial, Industrial e Serviços do Distrito de Portalegre [ACISDP], identificada nos autos, veio deduzir embargos à Execução e Oposição à Penhora, nos autos de execução que contra si foram movidos pela sociedade A……………, UNIPESSOAL, LDA [A………..], pedindo, subsidiariamente (i) a sua absolvição da instância, por uso indevido do procedimento de injunção pela Exequente, ou (ii) a sua absolvição da instância por incompetência do TAF de Castelo Branco, ou (iii) a procedência da oposição à execução e às penhoras efectuadas.
Por despacho saneador-sentença de 20.11.2020 o TAF de Castelo Branco julgou verificada a excepção de incompetência absoluta em razão da matéria - por caber ao Tribunal da jurisdição comum -, e não àquele TAF, a competência para conhecer da causa e, em consequência, absolveu a Executada da instância.
Desta decisão interpôs a Exequente A……….. recurso para o TCA Sul que, por acórdão de 04.11.2021, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Notificada desta decisão a Exequente/Recorrente veio requerer a remessa dos autos a este Tribunal dos Conflitos, porque o acórdão do TCA Sul “consolida na ordem jurídica um conflito negativo de competência”, a fim de aqui ser resolvido o conflito de jurisdição entre os tribunais administrativos e fiscais e os tribunais judiciais.
Alegou, em síntese, que antagonicamente ao decidido pelos Tribunais da Jurisdição Administrativa e Fiscal, no âmbito do processo que correu termos sob o nº 921/12.8TBPTG-A, do então designado 1º Juízo do Tribunal Judicial de Portalegre, foi igualmente proferida decisão que julgou a jurisdição comum materialmente incompetente para a resolução da causa – decisão essa que transitou em julgado e que justificou a submissão do diferendo à jurisdição administrativa.
Por despacho de 17.12.2021, a Relatora no TCA Sul ordenou a remessa dos autos a este Tribunal dos Conflitos, nos termos do disposto nos art. 11º, nº 2 do CPC e arts. 10º, nº 2 e 11º da Lei nº 91/2019, de 4/9.

Neste Tribunal dos Conflitos as partes, notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, nada disseram.

A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que no caso dos autos, tendo as partes – que não assumem a natureza de entidades adjudicantes nos termos dos arts. 2º e 3º do CCP, recorrido, de forma voluntária, a um procedimento pré-contratual de direito público, que nenhuma lei específica lhes impunha, não se encontram reunidos os pressupostos previstos no art. 4º, nº 1, al. e) do ETAF, e mostra-se excluída a competência material dos tribunais administrativos, a qual deve ser atribuída aos tribunais comuns - conforme já decidiu o Tribunal dos Conflitos nos Conflitos nº 021/11, de 16.02.2012, nº 021/12, de 23.05.2013, nº 027/12, de 21.02.2013 e nº 020/16, de 11.01.2017.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
Nos presentes autos a competência deste Tribunal dos Conflitos advém da previsão do art. 101º, nº 2 do CPC e do art. 3º, nº 3 da Lei nº 91/2019, de 4/9.
Considerou o TAF de Castelo Branco, para julgar verificada a excepção de incompetência absoluta, em razão da matéria, por tal competência caber aos tribunais judiciais, que: «No caso concreto, estamos perante uma ação executiva para pagamento de quantia certa movida contra a Executada, aqui Oponente, fundada num requerimento de injunção ao qual foi aposta a fórmula executória, contra a qual esta se insurge mediante a presente oposição à execução e à penhora (cfr. artigo 728.º do CPC).
A relação jurídica da qual emerge o litígio aqui em causa reporta-se a um suposto incumprimento de um contrato de empreitada (cfr. artigo 1207.º do Código Civil) por parte da Executada, celebrado com recurso às normas de contratação pública (in casu, mediante o procedimento de ajuste direto), vindo esta alegar, nesta sede e entre o mais, que não deixou de cumprir as obrigações que assumiu no caderno de encargos, apontando o incumprimento do mesmo à Exequente (designadamente por não ter cumprido o prazo de entrega dos serviços nos termos previstos no caderno de encargos e por nunca os ter recebido), motivo pelo qual defende que a esta não assiste o direito de receber a quantia ora em execução (cfr. acórdãos do Tribunal Constitucional, de 20/03/2013 – proc. nº 658/12 – e de 12/05/2015 - proc.º 208/15 -, entre outros).
Tanto a Executada-Oponente, quanto a Exequente, são pessoas coletivas de direito privado: a primeira é uma associação sem fins lucrativos, ao passo que a segunda é uma sociedade comercial, pelo que, desde logo, não são enquadráveis como “entidades adjudicantes”, nos termos e para os efeitos previstos no Código dos Contratos Públicos, doravante CCP (cfr. artigos 2.º e 7.º do CCP), ou seja, não estão sujeitas a uma disciplina procedimental de direito público – cfr. alínea A) e B), do probatório.
Pois bem, o dissídio subjacente aos presentes autos, que importa dirimir, respeita ao incumprimento de um contrato empreitada celebrada entre privados, a qual foi precedida de um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público atinentes à contratação pública – cfr. alíneas C) e G), do probatório.».
Mais entendeu que, «(…), o que efectivamente importa, na tarefa de determinação da jurisdição competente, é, perante um caso concreto, aferir se existe disposição legal que imponha a aplicação das regras de contratação pública aos contratos de empreitada a celebrar entre as pessoas coletivas de direito privado aqui em causa.
Ora, no caso vertente, e tendo em consideração o quadro jurídico vigente e aplicável aquando da celebração do contrato de empreitada e do respetivo procedimento pré-contratual, não havia obrigação legal de adotar o regime jurídico das empreitadas de obras públicas, tendo sido essa adoção fruto, exclusivamente, da vontade das partes contratantes. (…).
Este nosso posicionamento encontra esteio, aliás, em vários acórdãos proferidos pelo Tribunal dos Conflitos, que, perante situações conflituantes idênticas à que animam os presentes autos, atribuem a competência material aos Tribunais judiciais – vejam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 04/02/2016, proc. n.º 035/15 e de 30/01/2020, proc. n.º 017/19» (por lapso escreveu-se 30/01/2020 no nº do processo).


O TCA Sul apreciando o recurso para ele interposto pela Exequente no qual se havia invocado, além do mais, que contrariava o despacho proferido na acção principal executiva, referiu o seguinte: «Ora, tal despacho liminar (de 08.05.2015), proferido na acção executiva) não apreciou especificamente a matéria da competência do tribunal, mas sim quanto ao título executivo e à tramitação a seguir, tendo a questão da (in)competência material do tribunal sido posteriormente suscitada em sede de Oposição à execução / penhora pela ora Recorrente.
Verificando que não foi apreciada qualquer concreta questão relativa à competência do tribunal, não faz caso julgado formal, designadamente quanto à questão da competência em razão da matéria.
Mesmo quando se trate de despacho saneador tabelar, a jurisprudência tem unanimemente considerado que na medida em que não verse sobre questões concretas da relação processual, não tem a virtualidade de produzir efeito de caso julgado formal. (…). Donde, a questão da competência do tribunal foi suscitada e apreciada em sede de Oposição à Execução e não antes na acção executiva.».
Quanto ao invocado erro de julgamento quanto à interpretação do art. 4º, nº 1, alínea e) do ETAF, o acórdão começou por especificar que a versão aplicável ao caso era a anterior à dada pelo DL nº 241-G/2015, de 2/10, a atento o disposto no art. 38º da Lei de Organização do Sistema Judiciário.
Assim, a versão do preceito aqui em causa era a que estabelecia que: “1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: (…) e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por norma de direito público.”
Salientando a declaração de reconhecimento público de utilidade pública da executada – conforme Despacho nº 6376/2010, 2.ª série, do DR, de 12.04.2010 -, referiu o acórdão que tal circunstância não a transmuta numa pessoa colectiva de direito público (cfr. ac. do TCA Sul de 09.07.2009, Proc. nº 03004/07). E que apesar do alegado pela Recorrente de que o crédito que a Executada pretende fazer valer emerge de um contrato celebrado na sequência de um procedimento pré-contratual de ajuste directo, considerou o acórdão que: «(…), ao contrário do defendido pela Recorrente, não é irrelevante para efeitos de norma atributiva de competência jurisdicional se a regulação de normas de direito pública é voluntária, por escolha da adjudicante. Como tem sido entendido pelo Tribunal de Conflitos (TC), v.g., o Conflito n.º 21/12, de 23.05.2013, e o Conflito n.º 35/15, de 04.02.16. A orientação que se extrai destes dois arestos é a de que o artigo 4.º n.º 1 al. e), do ETAF, deve ser lido no sentido de que os tribunais administrativos apenas serão competentes para conhecer deste tipo de litígios na medida em que haja disposição legal que imponha a aplicação das regras da contratação pública à entidade adjudicante do contrato a celebrar com um particular.».
Assim. concluiu o acórdão que: «(…), os Tribunais Administrativos e Fiscais configuram-se como materialmente incompetentes para o conhecimento dos pedidos formulados na acção executiva tendo por base o contrato celebrado por via da adjudicação identificada em G) do probatório. A infracção das regras designadamente de competência em razão da matéria, determina a incompetência absoluta do Tribunal – cf. arts. 96.º al. a) do CPC e 1.º do ETAF.
Porque assim é, bem andou o Tribunal a quo ao julgar-se absolutamente incompetente em razão da matéria.».

Termos em que, negou provimento ao recurso.

O assim decidido é de manter.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do «âmbito da jurisdição» mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo».
No caso suscita-se a questão de saber se pelo facto de as partes terem recorrido, de forma voluntária, a um procedimento pré-contratual de direito público, que nenhuma lei específica lhes impunha, se encontram reunidos os pressupostos previstos no art. 4º, nº 1, al. e) do ETAF (na redacção anterior à dada pelo DL nº 214-G/2015, aqui aplicável), para a competência material ser atribuída à jurisdição administrativa e fiscal ou, se, pelo contrário, se mostra excluída a competência material destes tribunais, devendo a tal competência ser atribuída aos tribunais comuns.
Entendemos ser indubitável a competência dos tribunais judiciais para a apreciação dos pedidos formulados pela Executada.
Com efeito, não vemos motivo para não seguir a jurisprudência firmada por este Tribunal dos Conflitos nos acórdãos supra mencionados.
Como se disse no ac. deste Tribunal de 04.02.2016, Proc. nº 035/15, em matéria em tudo semelhante [por estar em causa acção por incumprimento de contrato de empreitada celebrada entre privados, tendo essa celebração sido precedida de procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, sem que haja lei específica que o imponha]: «(…), não é o facto da empreitada em causa ser um contrato de direito civil celebrado por sujeitos privados que determina a competência dos Tribunais comuns para julgar a acção mas a circunstância da celebração daquele contrato não ter de ser, por força de lei específica, precedida de um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público (art.º 4.º/1/e) do CPTA). Com efeito, como vem sendo decidido por este Tribunal dos Conflitos, o que resulta daquela norma é que compete “à jurisdição administrativa dirimir todos os litígios relativos a todos os contratos que, independentemente da sua natureza e da qualidade dos contraentes, foram, por imposição legal (Sublinhado nosso.) precedidos de um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público. Na verdade: (i) a letra não distingue entre contratos públicos e contratos privados, nem entre contraentes públicos e contraentes privados; (ii) inclui na previsão da norma não só as questões relativas á formação do contrato, mas também as da interpretação, validade e execução dos contratos; (iii) e quanto a estas, não as restringe às que estejam associadas à adjudicação ou, em geral, ao procedimento pré-contratual. (…). Em suma; o que a citada norma do ETAF determina é que a competência da jurisdição administrativa para o julgamento das acções como aquela que está em causa não é a da natureza do contrato nem a qualidade dos seus sujeitos mas o facto do mesmo ter precedido de um procedimento regido por normas de direito público por imposição legal.»
No caso tratado naquele Conflito nº 035/15, o procedimento pré-contratual que precedera a celebração do contrato ali em causa não era exigido por qualquer norma ou diploma legais, pelo que se concluiu que a competência para julgar a acção cabia aos Tribunais comuns.
Ora, essa é igualmente a situação que se verifica nos presentes autos.
Deste modo, não se inscrevendo a acção em nenhuma das alíneas do nº 1 do art. 4º, do ETAF, na versão então em vigor, que permitam submeter o litígio ao âmbito da jurisdição administrativa, e sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conclui-se que a competência material para conhecer da presente acção executiva cabe à jurisdição comum.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal da Comarca de Portalegre.
Sem custas.

Lisboa, 23 de Março de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.