Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:015/20
Data do Acordão:03/23/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
DEFESA DE DIREITOS REAIS
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P29167
Nº do Documento:SAC20220323015
Data de Entrada:06/24/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE VILA REAL 3º JUÍZO, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE MIRANDELA
AUTOR: A........ E B.......
RÉU: IEP – INSTITUTO DE ESTRADAS DE PORTUGAL
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A………. e mulher B………., identificados nos autos, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, acção de reivindicação contra IEP – Instituto de Estradas de Portugal, pedindo a sua condenação a:
1. Reconhecer que os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano (…);
2. Restituir aos Autores esse mesmo prédio urbano ou a título subsidiário
3. Pagar aos Autores o preço que se venha a apurar no decurso do presente processo, ou se tal não for possível, a que se liquidar em execução de sentença, acrescida de actualização (…) e de juros legais.”.
Alegam, em síntese, que adquiriram o prédio por adjudicação judicial a seu favor e que a Ré, no âmbito da construção de um lanço da auto-estrada no troço IP… Vila Real – Vila Verde – estrada nacional .., ocupou o referido prédio com faixas de auto-estrada sem que para o efeito tenha existido qualquer processo de aquisição ou de expropriação.
A Ré contestou e, além do mais, arguiu a excepção de incompetência material do Tribunal por considerar que a causa de pedir da acção assenta na sua responsabilidade civil extracontratual conexa com uma expropriação, o que implicaria ter agido dotada de poderes de autoridade no exercício de uma função pública.
Os AA replicaram defendendo a competência do Tribunal Judicial de Vila Real uma vez que a acção interposta é uma típica acção de reivindicação e não assenta na responsabilidade civil extracontratual da Ré.
No Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real foi decidido, em 15.03.2010, que a competência material para conhecer da acção cabia à jurisdição administrativa. Considerou aquele Tribunal que “(…) a actuação imputada à ré pelos autores se insere no domínio de actuação sob o imperativo de autoridade, e que extravasa o campo das relações jurídico-privadas, situando a ré num plano superior, onde exerce um poder de natureza pública (…)”.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela (TAF de Mirandela) foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a excepção de incompetência material do Tribunal tendo os Autores respondido que “configurou a ação como uma típica ação de reivindicação, atendendo à estrutura da relação jurídica material controvertida, à causa e ao pedido, cuja competência atribuiu aos tribunais comuns” mas que “a Ré na sua contestação vem alegar a existência de uma expropriação do imóvel em causa” pelo que “a causa de pedir está necessariamente conexa com uma expropriação, com uma relação jurídico-administrativa, na qual a Ré atua dotada de poderes de autoridade (…) podemos, desta forma, configurar esta acção como uma acção de responsabilidade contra a atuação da Administração munida do ius imperium”.
Por decisão de 18.06.2020, o TAF de Mirandela julgou-se materialmente incompetente para conhecer da acção ponderando que “é patente da leitura do pedido e da causa de pedir (…) que (…) o que está em causa é, pois, uma verdadeira acção de reivindicação e que se trata, pois, de uma questão de direito privado que compete aos tribunais comuns (…) e (…) não corresponde à efetivação da responsabilidade civil extracontratual da entidade pública”.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito no TAF Mirandela, foi o processo remetido ao Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos, as partes, notificadas para efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 11.º. da Lei n.º 91/2019, nada disseram.
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência para conhecer do pedido deduzido pelos Autores deverá ser atribuída aos tribunais administrativos.

1. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.

2. O Direito
O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artigo 211º, nº 1, da CRP). Disposição esta que, à data da propositura da acção - 2009 - era reproduzida no artigo 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro) e, actualmente, no artigo 40º, nº 1, da LOSJ.
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do artigo 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data de propositura da acção é a que aqui releva, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro) replicava no art. 1º, nº 1, essa genérica previsão que era concretizada no artigo 4.º, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nº 1) e negativa (nºs 2 e 3).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".
A Ré, identificada pelos Autores como IEP - Instituto de Estradas de Portugal, foi sucessivamente transformada em Estradas de Portugal, E.P.E. (DL nº 239/2004, de 21 de Dezembro) e em sociedade anónima de capitais públicos com a designação de EP - Estradas de Portugal, SA (DL nº 374/2007, de 7 de Novembro).
Revestia esta última forma jurídica à data da interposição da acção, tendo como objecto “a concepção, exploração, requalificação e alargamento da rede rodoviária nacional, nos termos do contrato de concessão que com ela é celebrado pelo Estado” (art. 4º, nº 1). Não obstante a adopção da forma de sociedade anónima de capitais públicos (art. 1º, nº 1), a lei determinou que “As infra-estruturas rodoviárias nacionais que integram o domínio público rodoviário do Estado e que estejam em regime de afectação ao trânsito público ficam nesse regime sob administração da EP - Estradas de Portugal, S.A.” (art. 8º, nº 1), atribuindo-lhe especiais poderes de autoridade, nos termos do art. 10º, nº 2.
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio regulado por normas de direito privado.
Com efeito, os Autores pedem na presente acção que a Ré reconheça o seu direito de propriedade sobre o prédio urbano e, dado que “o Réu, que se apossou ilegitimamente do mesmo, o deve restituir aos Autores, conforme o disposto no art. 1311 e 1313 do Código Civil”, invocando a aquisição do direito por adjudicação judicial e por usucapião. Pedem subsidiariamente que “caso o Tribunal entenda não ser possível a restituição do prédio dos Autores, por eventualmente considerar que o mesmo deixou de existir como tal, ou que se sobrepõe um interesse público de maior relevo, (…) deve o Réu ser condenado a pagar aos Autores o preço justo pelo imóvel em causa”.
Por sua vez, a Ré defende que “as parcelas expropriadas no âmbito da construção do IP ... não correspondem a qualquer artigo urbano” e que “a área que se supõe ocupada e alegada pelos AA é pertença da R”.
A acção, tal como é delineada pelos Autores, respeita a uma situação em que se visa a defesa dos direitos reais, nos termos do artigo 1311º do Código Civil (CC), numa situação em que há conflito quanto à titularidade do direito de propriedade sobre o prédio em causa.
Os Autores no seu requerimento inicial alegam factos que visam demonstrar a titularidade do seu direito de propriedade sobre o prédio em causa, que consideram ter sido violado pela Ré. Esta, por sua vez, defende que não ocupou nenhum terreno sem que para o efeito estivesse expropriado pelo nada tem a restituir ou a pagar.
A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19 e de 02.12.2021, Proc. 03802/20.8T8GMR.G1.S1 (todos consultáveis in www.dgsi.pt).
É esta jurisprudência que se reitera, pelo que a competência para apreciar a pretensão dos Autores cabe aos tribunais judiciais (art. 64º do CPC).
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real - Instância Local Cível de Vila Real.
Sem custas.

Lisboa, 23 de Março de 2022. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.