Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/16
Data do Acordão:06/01/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FRANCISCO CAETANO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
ACÇÃO REIVINDICAÇÃO.
Sumário:Compete aos tribunais judiciais conhecer de acção declarativa em que o pedido principal do autor consiste na declaração do seu direito de propriedade quanto ao identificado estabelecimento / centro de inspecções, instalado em imóvel sua pertença. (*)
Nº Convencional:JSTA00070216
Nº do Documento:SAC2017060102
Data de Entrada:01/14/2016
Recorrente:O MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL DA COMARCA DE VISEU - INSTÂNCIA LOCAL - SECÇÃO CÍVEL - J2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU - UNIDADE ORGÂNICA 1
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:SENT 2 JUIZO CIVEL TJ VISEU - SENT TAF VISEU.
Decisão:ATRIBUIR COMPETÊNCIA JURISDIÇÃO COMUM.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CPC13 ART109 ART92 ART110 ART64 ART279.
CONST ART211 ART212.
ETAF ART1 ART4.
CCIV66 ART1311.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC02/14 DE 2015/03/25.; AC TCF PROC08/15 DE 2015/06/25.; AC TCF PROC07/15 DE 2015/07/09.; AC TCF PROC028/15 DE 2016/02/18.; AC TCF PROC012/10 DE 2010/06/09.; AC TCF PROC032/14 DE 2014/07/09.; AC TCF PROC037/14 DE 2014/10/30.; AC TCF PROC01/15 DE 2015/04/22.; AC TCF PROC033/15 DE 2016/06/07.; AC TCF PROC032/13 DE 2013/09/26.; AC TCF PROC018/13 DE 2013/12/18.; AC TCF PROC013/14 DE 2014/06/19.; AC TCF PROC046/15 DE 2016/02/04.; AC TCF PROC050/15 DE 2016/03/10.
Referência a Doutrina:MANUEL ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES PROCESSO CIVIL (1976) PAG90-91.
J. C. VIEIRA DE ANDRADE - JUSTIÇA ADMINISTRATIVA LIÇÕES 3ED PAG79.
C. FERNANDES CADILHA - DICIONÁRIO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO (2007) PAG117-118.
ANA FERNANDA NEVES - ÂMBITO DE JURISDIÇÃO E OUTRAS ALTERAÇÕES AO ETAF - E PÚBLICA REVISTA ELECTRÓNICA DIREITO PÚBLICO N2 (2014).
MÁRIO AROSO ALMEIDA - O NOVO REGIME DO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS 4ED PAG57.
Aditamento:
Texto Integral: Conflito n.º 02/16
Acordam no Tribunal dos Conflitos:

I. Relatório

“A………., Lda.”, com sede em Viseu, intentou, no então 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu (actual Secção Cível - J3, da Instância Local do Tribunal da Comarca de Viseu), em 13.02.2012, acção declarativa comum sob a forma de processo ordinário contra “B………., S.A.”, com sede em Currelos, Carregal do Sal, a final pedindo, fosse:

“(i) Declarado por sentença que a A., A……., Lda., sociedade comercial por quotas, com sede em Estrada de ……., em Viseu, NIPC e matriculada na CRC de Viseu …….., com o capital social realizado de € 7.980,77, por o haver adquirido por usucapião, que expressamente invoca, é dona e legítima possuidora do estabelecimento de Inspecção Técnica de Veículos, B……… (código 248), situado na Estrada de ……….., em Ranhados, aprovado de acordo com o artº 12º do DL nº 254/92 de 20 de Novembro (então em vigor), para inspecções de categoria A, duas linhas de inspeção de veículos ligeiros e uma linha de veículos pesados e reboques e, posteriormente, alargado para a categoria B, inspecções especiais, licenciado/autorizado pelo SEAI 075.CIPO.21.94.248 à R. B………… e que se encontra instalado no prédio urbano sito na estrada de …….., inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Ranhados com o artigo 1896 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o nº 1206, onde está inscrito a favor da A. pela Ap.73 de 1996/03/27 e que, nessa medida, se pode substituir à R., através de decisão constitutiva a proferir nos presentes autos, quanto ao pedido de celebração do contrato de gestão e, assim, na sua posição contratual que lhe foi cedida, sem prejuízo da verificação pelo IMTT, IP, ser a A. possuidora dos requisitos legais para a actividade, nomeadamente os relativos à capacidade, idoneidade e à inexistência de impedimentos aos quais se refere e exige a Lei n.º 11/2011 de 26 de Abril;

(ii) Declarado que a A., enquanto proprietária, tem direito à totalidade das receitas provenientes da exploração do estabelecimento antes descrito e, assim, não só dos 90%, mas dos remanescentes 10%, dos quais 5% são devidos, nos termos legais, ao IMTT - Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, IP, e 5% à R. B……….., enquanto a A. mantiver interesse na prestação de serviços técnicos por ela prestados;

(iii) Condenada a R. a reconhecer e a respeitar o direito de propriedade da A., abstendo-se de qualquer conduta que, directa ou indirectamente, o ponha em causa, nomeadamente não o alienando, onerando ou dele dispondo, bem como ainda para não proceder por forma ou com vista a levar a cabo a mudança de instalações do identificado Centro de Viseu, e de que, por isso, lhe fica também vedado requerer ao IMTT a transferência ou mudança de localização das ditas instalações;

iv) Condenada a R. B……….., SA a proceder à entrega à A………., Lda. do identificado estabelecimento, bem como de todas as receitas futuras que vierem a ser apuradas no mesmo, desde e a partir da citação, até trânsito em julgado e efectiva entrega material, isto sem prejuízo do cumprimento fiel, pontual e imediato do dever de entrega protocolado de 90% das receitas diárias apuradas no mesmo e na sequência da revogação do mandato de depósito e gestão de receitas aludido nesta acção;

(v) Comunicar ao IMTT - Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, IP, com sede em Avª das Forças Armadas, 40, 1649-022 Lisboa, a instauração da presente acção e dos pedidos que na mesma se formulam, com vista a, após trânsito em julgado, celebrar com a A. o contrato de gestão a que se refere a citada Lei nº 11/2011, nomeadamente o seu art.º 34º, e assim, não autorizar, até lá, qualquer pedido de transmissão do estabelecimento usucapido e reivindicado da A., nem celebrar com a R. o referido contrato de gestão, sob pena de responsabilidade civil, pelos danos que forem causados (destaques nossos);

Subsidiariamente,

(vi) Declarado, por sentença judicial, a transmissão a favor da A. da propriedade do estabelecimento identificado na alínea (i) supra e, por consequência da posição contratual da R. B………., decorrente da licença/autorização ali identificada, podendo, nessa medida e qualidade, substituir-se a A. à R. quanto ao pedido de celebração do contrato de gestão, e assim, na sua posição contratual que lhe foi cedida, sem prejuízo da verificação pelo IMTT, IP ser a A. possuidora dos requisitos legais para a actividade, nomeadamente os relativos à capacidade, idoneidade e à inexistência de impedimentos aos quais se refere e exige a Lei nº 11/2011 de 26 de Abril, produzindo a referida sentença a substituição da declaração negocial da R. faltosa e, portanto, do próprio contrato, nos termos do disposto no artº 830º do Código Civil, valendo como título constitutivo de aquisição do direito de propriedade do mesmo, mantendo-se ainda e além deste os demais pedidos já formulados nas demais alíneas (ii) a (v);

Em qualquer dos casos,

(vii) Fixada sanção pecuniária compulsória, adequada às circunstâncias em apreço, mas não inferior a € 2.500,00 diários, por cada infracção positiva ou negativa, dos pedidos formulados, sendo que relativamente aos de entrega das receitas e do estabelecimento, a partir do trânsito em julgado.”

Alegou para tanto, em síntese, ter praticado, continuada e reiteradamente, actos de posse usucapível sobre o estabelecimento/centro de inspecção técnica de veículos, B……..-VISEU- RANHADOS, situado na Estrada de ………, em Ranhados, bem como a existência de um acordo entre A. e R. no qual se estabelecia a regulação do modo de exploração desse estabelecimento, designadamente no respeitante à responsabilidade pelo pagamento das despesas e repartição das receitas por ele geradas, invocando, por fim, que tal acordo foi celebrado com a promessa de a R. transmitir à A. a sua posição contratual, enquanto titular do alvará para a actividade de inspecção de veículos.

A R. contestou, além do mais alegando que a pretensão da A. é legalmente impossível e contrária à lei, por outro lado impugnando os alegados actos de posse da A., concluindo pela improcedência da acção e consequente absolvição dos pedidos.

Houve lugar a réplica onde a A. respondeu à matéria de excepção e ampliou os pedidos (i) e (vi), o que foi admitido e já consagrado no precedente relatório.

Foi proferido despacho saneador, onde tabelarmente, além do mais, foi afirmada a competência do tribunal em razão da matéria e se fixaram os factos assentes e organizada a base instrutória.

Designada data para a audiência final, previamente à sua realização, a R. suscitou a excepção dilatória de incompetência material, por entender, então, que a pretensão da A. constitui matéria regulada por normas de direito público, para cuja apreciação é competente a jurisdição administrativa.

Em resposta, a A. pronunciou-se pela improcedência da excepção.

Apreciando, o então 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu por decisão de 03.03,2014 declarou-se incompetente em razão da matéria a favor do tribunal administrativo e consequentemente absolveu a R. da instância.

Considerou a relação controvertida como uma relação jurídico administrativa, uma vez que “é peticionada a declaração, por sentença judicial, da transmissão a favor da A. da propriedade do centro de inspecções, produzindo assim a referida sentença a substituição da declaração negocial da entidade gestora aqui R.”, sendo que, “contendo a Lei n.º 11/2011 normas de direito público, que estabelecem o regime substantivo de tais contratos administrativos, a pretensão da A. de celebração de um contrato de gestão com o IMTT e subsidiariamente seja proferida uma sentença constitutiva da cedência da posição contratual junto do IMTT da R. a favor da A., cai no âmbito do disposto no art. 4 .º, n.º 1, al. e), do ETAF”.

A A. requereu, em 24.03.2014, ao abrigo do art.º 99.º, n.º 2, do CPC, a remessa do processo ao TAF de Viseu, por ser o territorialmente competente, nos termos dos art.ºs 16.º e ss do CPTA.

Aí, o Exmo. Juiz, por decisão de 31.10.2015, considerando que o pedido principal formulado pela A. consubstanciava uma acção de reivindicação, julgou verificada a excepção da incompetência absoluta em razão da matéria desse tribunal, absolvendo, por sua vez, a R. da instância.

Tendo ambas as decisões transitado em julgado (cf. fls. 155), o TAF de Viseu, nos termos do art.º 111.º, n.º 1, do CPC, suscitou oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição entre aquele TAF e o então 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu.

Cumprido o disposto no art.º 112.º do CPC, pronunciou-se a R. no sentido de considerar que “A lide em presença, mais que um «conflito negativo de competências», revela uma impossibilidade jurídica do objecto da acção - a saber, aquisição por meios específicos do direito privado (usucapião) da propriedade de centro de inspecção auto da Ré que está fora do comércio jurídico privado por disposição da lei, o que determina a absoluta improcedência da acção”. Caso assim não se entendesse, pugnou pela atribuição à jurisdição administrativa da competência para decisão da presente lide.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II. Fundamentação

1. O circunstancialismo relevante para o julgamento do presente conflito é o que acaba de descrever-se no precedente relatório e que, em termos probatórios, se funda nas peças processuais constante das certidões juntas


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2. O art.º 109.º do CPC (na versão aplicável da Lei n.º 41/2013, de 26.06) define as situações em que se verifica a existência de um conflito de jurisdição, estabelecendo os seus nºs 1 e 3 que se verifica tal conflito quando tribunais, integrados em diferentes ordens jurisdicionais se declaram competentes (conflito positivo) ou incompetentes (conflito negativo) para conhecer da mesma questão, por decisões contrárias e definitivas (decisões insusceptíveis de recurso).

São, assim, requisitos para a existência de um conflito de jurisdição: (a) a existência de duas decisões judiciais de tribunais de diferente ordem jurisdicional sobre a mesma questão e (b) que as duas decisões em causa sejam definitivas, ou seja, tenham transitado em julgado.

Deste modo e quanto ao primeiro pressuposto (existência de duas decisões judiciais sobre a mesma questão), o art.º 109.º, 11.º 1, do CPC exige que esteja em causa a mesma questão, ou seja e por outras palavras, que exista identidade na questão substantiva subjacente a ambas as causas.

No caso em apreço, a petição inicial que deu origem a ambas as decisões é a mesma, já que a A. usou da faculdade a que alude o art.º 99.º, n.º 2, do CPC, pelo que dúvidas não há que ambas as jurisdições se declararam incompetentes para decidir a mesma questão/situação jurídica substancial.

Quanto ao segundo pressuposto exigido pelo art.º 109.º, n.º 1, do CPC (que as duas decisões em causa sejam definitivas, ou seja, que tenham transitado em julgado), também é manifesto que ele se verifica, já que ambas as decisões judiciais que declinaram a competência para apreciar a mesma questão não são susceptíveis de recurso.

Em suma, tendo dois tribunais integrados em ordens jurisdicionais diferentes declinado, por decisões transitadas em julgado, o poder de conhecer da mesma questão, verifica-se um conflito (negativo) de jurisdição que cabe a este Tribunal dos Conflitos resolver, nos termos dos art.ºs 109.º, n.ºs 1 e 3, e 110.º, do CPC.


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3. Constitui jurisprudência pacifica deste Tribunal o entendimento de que a competência, tal como ocorre com qualquer pressuposto processual, se afere em face do pedido concatenado com a causa de pedir, ou seja, com a natureza da relação material em litígio tal como é configurada pelo autor.( V., entre outros, os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 25.03.2015, Proc. 02/14, 25.06.2015, Proc. 8/15, 09.07.2015, proc. 07/15 e 18.02.2016, proc.28/15, todos disponíveis em www.dgsi.pt.)

É o que tradicionalmente se costuma exprimir, dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor, ou seja, a decisão de qual seja o tribunal (jurisdição) competente há-de ser feita de acordo com os termos da pretensão do autor, abrangendo os respectivos fundamentos, não importando averiguar qual a viabilidade dessa pretensão. (Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1976, págs 90 e 91.) A competência é, pois, questão prévia a tal apreciação, a decidir independentemente do mérito/demérito da acção, não dependendo da sua procedência.

Atento o exposto, resulta claro que a posição da R., ao defender que “A lide em presença, mais que um «conflito negativo de competências», revela uma impossibilidade jurídica do objecto da acção - a saber, aquisição por meios específicos do direito privado (usucapião) da propriedade de centro de inspecção auto da Ré que está fora do comércio jurídico privado por disposição da lei, o que determina a absoluta improcedência da acção”, não releva para a apreciação do presente conflito, partindo de uma petição de princípio, já que, do que se trata neste momento é apenas e tão-só de aferir, de acordo com o pedido e a causa de pedir alegados pela A., qual a jurisdição competente para apreciar o mérito/demérito da acção, sendo que uma eventual “impossibilidade jurídica do objecto da acção” constitui já apreciação do mérito da acção, o que oportunamente não deixará de ser feito pelo tribunal que vier a ser declarado competente.


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4. Vejamos, então.

Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram.

Conforme resulta dos art.ºs 211, n.º 1, da CRP e 64.º do CPC, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e, por isso, gozam de competência não discriminada (competência residual), enquanto os restantes tribunais têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.

Especificamente, no que toca à competência dos tribunais administrativos, estabelece o art.º 212.º, n.º 3, da CRP, que “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Por sua vez e em sentido coincidente, estabelece o art,º 1.º, n.º 1, do ETAF, que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Esta disposição remete para o art.º 4.º do ETAF a delimitação das matérias que são competência dos tribunais administrativos, procurando “tornar mais abrangente, clara e, por isso, eficaz a delimitação pelo legislador ordinário da esfera de competências dos tribunais administrativos, por referência ao critério constitucional da “relação jurídica administrativa”.(Ana Fernanda Neves, “Âmbito de jurisdição e outras alterações ao ETAF”, in E-pública revista electrónica de Direito Público, n.° 2, Junho 2014, disponível em http://e-publica.pt/ambitodejurisdicao.html.)

O critério material que enforma a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa reporta-se ao conceito de relação jurídica administrativa enunciado no mencionado art,º 212.º, n.º 3, da CRP, isto é, ao conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público. (O conceito de reIação jurídica administrativa consta, também, da al. o) do n.º 1 do art.º 4.º, que se assume como uma norma residual, que abrange os litígios jurídico-administrativos não enunciados no mesmo n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.)

Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa, Lições”, Almedina, 3.ª ed., pág. 79, define a relação jurídica administrativa como sendo “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

Por sua vez, Fernandes Cadilha, in “Dicionário de Contencioso Administrativo”, Almedina, 2007, pág. 117/118, refere que “por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas. Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjectiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, interadministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou inter orgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa colectiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem. Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica.”.

Mário Aroso de Almeida, in “O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, Almedina, 4.ª ed, pág. 57, refere que “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”. Ou seja, serão relações jurídicas administrativas as derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados.

É, pois, com referência ao conceito de relação jurídica administrativa que devem ser lidas e interpretadas as várias alíneas do art.º 4.º do ETAF.


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5. Cumpre então aquilatar se a relação material em litígio, consubstanciada nos pedidos e na causa de pedir alegados pela A., se enquadra em alguma das alíneas do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, ou seja, apurar se a relação material, tal como foi configurada pela A. se pode qualificar como sendo uma relação jurídica administrativa e, como tal, da competência reservada dos tribunais administrativos.

Estando em causa diversos pedidos, alguns deduzidos cumulativamente - os constantes em (i) a (v) e (vii) - e outro subsidiariamente - o constante em (vi) - a definição da jurisdição competente afere-se pela índole da causa, resultando esta do pedido principal, como este Tribunal dos Conflitos tem vindo a decidir.(V., entre outros, os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 09.06.2010, Proc. 12/10, de 09.07.2014, Proc. 32/14, de 30.10.2014, Proc. 37/1, 22.04.2015, Proc. 01/15 e 07.06.2016, Proc. 33/15, in www.dgsi.pt.)

Assim, uma eventual incompetência material do tribunal para conhecer de outro(s) pedido(s), que não o principal, origina tão-só a absolvição da instância quanto ao(s) mesmo(s) -nos termos do art.º 278.º, n.º 1, al. a), do CPC, uma vez que tal dedução cumulativa e/ou subsidiária de pedidos é ilegal, face ao disposto nos art.ºs 555.º, n.º 1, 554.º n.º 2 e 37.º, n.º 1, do CPC - não sendo relevante para efeitos de determinação da jurisdição competente.

No caso em apreço, da análise do pedido principal de reconhecimento do direito de propriedade da A. sobre um estabelecimento/centro de inspecção de veículos e sua restituição pela R. e da causa de pedir invocados pela A., com base na usucapião traduzida em actos materiais de posse ao longo de determinado lapso de tempo, que alegou (art.ºs 581.º, n.º 4 do CPC e 1298.º e ss, do CC), verifica-se que esta faz assentar a acção na alegação da aquisição do direito de propriedade sobre esse estabelecimento pela via originária da usucapião.

O pedido principal da A. de declaração do seu direito de propriedade quanto ao referido estabelecimento/centro de inspecções instalado, em imóvel sua pertença e condenação da R., dela detentor, a restituí-lo, encerra uma questão de direito privado, decorrendo os demais pedidos de tal declaração ou do invocado acordo entre A. E R. quanto à regulação do modo de exploração do referido estabelecimento de inspecção técnica de veículos, sendo que, para além disso e conforme referido, tais pedidos (que não o principal) são irrelevantes para a determinação da competente jurisdição.

Estamos, assim, perante uma típica acção real de reivindicação (art.º 1311.º, do CC), que manifestamente não cabe em nenhuma das alíneas do n.º 1, do art.º 4.º do ETAF, por isso havendo que concluir que a competência para dela conhecer compete aos tribunais judiciais enquanto tribunais comuns com competência residual. (V., entre outros, os Acs. do Tribunal dos Conflitos de 26.09.2013, Proc. 32/13, 18.12.2013, Proc. 18/13, 19.06.2014, Proc. 13/14, 04.02.2016, Proc. 46/15 e 10.03.2016, Proc. 50/15, in www.dgsi.pt.)


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III. Decisão

Face ao exposto, resolvendo o presente conflito negativo de jurisdição, acorda-se em atribuir à “Secção Cível - J3, da Instância Local do Tribunal da Comarca de Viseu” a competência para o conhecimento da questão controvertida que opõe a A. “A……….., Lda.” à R. “B……….., S.A.”.

Sem custas (art.º 96.º do DL n.º 19243, de 16.01.1931).


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Lisboa, 1 de junho de 2017. - Francisco Manuel Caetano (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - João Fernando Ferreira Pinto - Jorge Artur Madeira dos Santos - José Inácio Manso Rainho - António Bento São Pedro.