Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:020/14
Data do Acordão:01/11/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ALBERTO AUGUSTO OLIVEIRA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO
PROCEDIMENTO PRE-CONTRATUAL
Sumário:Os tribunais da jurisdição administrativa são os competentes para a resolução dos litígios respeitantes a procedimentos de selecção regulados por normas de direito público que precedam a celebração de contratos individuais de trabalho de pessoal médico.
Nº Convencional:JSTA00069966
Nº do Documento:SAC20170111020
Data de Entrada:03/21/2014
Recorrente:A..., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 1º JUÍZO DO TRIBUNAL DO TRABALHO DE COIMBRA E O TAF DE COIMBRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO NEGATIVO.
Objecto:SENT TAF COIMBRA - SENT TRIB TRABALHO COIMBRA.
Decisão:DECL COMPETENTE JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO NEGATIVO.
Legislação Nacional:ETAF ART4 N3 D ART1.
DL 233/2005 ART5 ART14.
DL 558/99 ART5 ART14 ART18.
DL 176/2009 ART14 ART15.
CONST ART211 ART212 ART47.
DL 176/79 ART15.
L 23/2004 ART5.
CTRAB ART24.
Jurisprudência Nacional:AC TC 61/2004.
Referência a Doutrina:MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA - CÓDIGO PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS VOLI PÁG68/69.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos


1. A…………….., médico, propôs no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra acção administrativa especial contra os Hospitais da Universidade de Coimbra E.P.E. (HUC) pedindo a declaração de nulidade de actos do procedimento concursal denominado “concurso para recrutamento e selecção para eventual contratação de especialistas de ortopedia” dos HUC. Fundamenta tais pedidos em violação das regras de funcionamento do júri, incompetência e usurpação de poder, inexistência de procedimento administrativo, preterição de formalidade essencial e violação do Regulamento do concurso e dos princípios da legalidade, da imparcialidade, da transparência, da igualdade, da boa fé, tudo com ofensa dos artºs 3.º, 5.º, 6.º, 6º-A, 100.º, 124.º, 125.º, 133.º, n.º1, al. e), 133.º, n.º2, al. a) do Código de Procedimento Administrativo, dos art.ºs 1.º, n.ºs 2 e 3 als. c), d) e e) do regulamento do concurso e dos art.ºs 266.º, n.º2 e 268.º, n.º 3 da Constituição.

Por sentença de 1 de Outubro de 2013, o TAF de Coimbra julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, considerando competentes os tribunais do trabalho.

O processo foi remetido ao Tribunal do Trabalho de Coimbra, a requerimento do Autor, ao abrigo das disposições conjugadas do art.º 14.º do CPTA e do n.º 2 do art.º 99.º do CPC (na versão então vigente).
Por decisão de 7/1/2014, este último tribunal declarou-se também incompetente em razão da matéria, atribuindo a competência aos tribunais administrativos.

Ambas as decisões são já insusceptíveis de recurso ordinário.

O Autor pediu a resolução do conflito negativo de jurisdição assim gerado, ao abrigo do n.º 2 do art.º 111.º do CPC (na redacção da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho).

2. O Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais do trabalho, nos seguintes termos:
“[…]
Na linha do entendimento perfilhado pelo TAF de Coimbra, e nos termos das disposições conjugadas do artº 5º, nº 1 do DL nº 180/2008, de 26/8; do artº 5, nºs 1 e 2 do DL nº 233/2005, de 29/12 e dos artºs 3º, nº 2; 7º, nº 1 e 23º do DL nº 558/99, de 17/12, o R. é uma pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial e rege-se pelo regime geral de direito privado.
Por outro lado, em conformidade com o disposto no artº 14º, nº 1 do DL nº 233/2005, os trabalhadores dos hospitais E.P.E. estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, de acordo com o Código do Trabalho, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho e regulamentos internos.
Por último, nos termos do artº 15º do DL nº 176/2009, de 4/8, que integra o enquadramento legal do concurso com, além do mais, o Código do Trabalho (cf. fls 49/50), os requisitos de candidatura e a tramitação do processo de selecção para recrutamento para os postos de trabalho sujeitos ao regime do Código do Trabalho, no âmbito da carreira médica, são regulados por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
Assim sendo, os atos respeitantes ao procedimento concursal em crise mostram-se praticados ao abrigo de um regime de direito privado e não no exercício de poderes de autoridade.
Isso mesmo resulta também do preceituado nos artº 18º ex vi artº 23º, ambos do DL nº 558/99 que, para efeito de determinação do tribunal competente para julgamento dos litígios a eles respeitantes, não considera especificamente como praticados no exercício de poderes de autoridade os atos do procedimento de seleção para recrutamento de pessoal das entidades públicas empresariais, pelo que serão aqui aplicáveis as regras gerais de determinação da competência material dos tribunais.
Pela mesma razão, impõe-se concluir não haver lei específica que os submeta ou admita que sejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público, ao contrário do entendimento perfilhado pelo Tribunal de Trabalho de Coimbra.
E em nada afeta esta conclusão o facto de o procedimento concursal em causa se reger também, em conformidade com o disposto no artº 14º, nº 4 do DL nº 233/2005, de 29/5, pelos princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa fé e da não discriminação, na medida em que a norma não consagra qualquer procedimento específico de formação contratual e se limita a impor a observância de princípios igualmente aplicáveis em matéria de contratação de natureza jurídico privada, nos termos do Código do Trabalho (Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro - cf. artºs 23º, nº 1, a) e b); 24º, nºs 1 e 2, a), 25º, nº1 e 102º, designadamente”.

3. Depara-se, efectivamente, um conflito negativo de jurisdição que compete ao Tribunal dos Conflitos resolver. Dois tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, mediante decisões transitadas em julgado, atribuem-se reciprocamente a competência, negando a própria, para apreciar a acção a que os autos se referem.
Nada obsta à sua resolução (art.º 110.º, n.º3, do CPC).

4. Entendeu o TAF de Coimbra que, destinando-se o procedimento concursal em que foram praticados os actos impugnados à selecção e recrutamento de candidatos a um lugar provido no regime de contrato individual de trabalho, a competência para apreciação da validade desse procedimento pré-contratual e dos actos nele praticados compete aos tribunais de trabalho. Chegou a essa conclusão com os seguintes fundamentos:
“Ora, é possível adiantar-se, desde já, que a razão se encontra do lado do contra-interessado. É um facto, tal como argumenta, que o art.º 4.º do ETAF, na al. d) do seu n.º 3, estatui que
Ficam igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
(...)
A apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas.
E, se é certo que se não está na presença de um litígio emergente de um contrato individual de trabalho, não o é menos que o art.º 5.º do Dec.-Lei n.º 180/2008, de 26 de Agosto, que atribui ao Réu Hospital a natureza de Entidade Pública Empresarial, determina que às entidades públicas empresariais criadas pelo presente decreto-lei aplica-se, com as necessárias adaptações, o regime jurídico, financeiro e de recursos humanos constante dos capítulos II, III e IV do Decreto-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro.
O referido Dec.-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, estatui no seu art.º 5.º, inserido no Capítulo II, que as entidades públicas empresariais abrangidas pelo presente decreto-lei são pessoas colectivas de direito público de natureza empresarial dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial nos termos do Decreto-Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro, e do artigo 18.º do anexo da Lei n.º 27/2002, de 8 de Novembro.
Acontece que o Dec.-Lei n.º 558/99 consagra no seu art.º 5.º a aplicação às empresas públicas das regras do direito privado, equiparando-as a entidades administrativas, com a consequente submissão às regras aplicáveis e à jurisdição competente, no seu art.º 18.º, apenas relativamente aos actos praticados e os contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade discriminados no precedente art.º 14.º, no qual se não inclui a selecção e o recrutamento de pessoal, que seguirá, segundo prevê o n.º 2 do art.º 18.º as regras gerais da competência material dos tribunais.
Por outro lado, nos termos publicitados no aviso de concurso, ao procedimento aplicava-se o disposto no art.º 14.º e 15.º do Dec.-Lei n.º 176/2009, fixando o primeiro, a qualificação profissional para o acesso a diferentes categorias, enquanto o segundo estatuía:
1 - O recrutamento para os postos de trabalho sujeitos ao regime do Código do Trabalho, no âmbito da carreira médica, incluindo mudança de categoria, é feito mediante processo de selecção com observância do disposto no artigo 14.º do presente decreto-lei.
2 - Os requisitos de candidatura e a tramitação do processo de selecção previstos no número anterior são regulados por instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
É certo, como alega o Autor, que no n.º 4 do art.º 14.º do Dec.-Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro se impõe que os processos de recrutamento devem assentar na adequação dos profissionais às funções a desenvolver e assegurar os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa fé e da não discriminação, bem como da publicidade, excepto em casos de manifesta urgência devidamente fundamentada.
Todavia, tais princípios, constitucionalmente consagrados, não são, exactamente por isso, exclusivos do direito administrativo, pelo que a sua aplicação ainda que obrigatoriamente expressa não basta para caracterizar a natureza administrativa de um determinado normativo”.

Por seu turno, a decisão do Tribunal do Trabalho de Coimbra repousa nos seguintes argumentos essenciais:
“Vistas as coisas por este prisma e tendo em conta tudo quanto antes se expôs no que respeita à causa de pedir da acção, parece patente que o pedido do autor tem como fonte um procedimento pré-contratual regulado por normas que não podem deixar de ser consideradas de direito público, pois que o mesmo se rege em última instância pelo comando constitucional constante do artigo 47º nº2 da CRP, cuja inobservância pode afectar a validade do contrato que vier a ser outorgado.
Como bem refere o autor em sede de resposta à contestação, as exigências do procedimento prévio à contratação são naturalmente acrescidas pela natureza pública do réu, uma vez que a pessoa colectiva pública quando contrata, ainda que em moldes privados, não tem o grau de autonomia dos restantes empregadores laborais, devendo obediência a um conjunto de regras de direito público e desde logo por aplicação dos princípios da igualdade, da legalidade, proporcionalidade e boa fé que impõem a realização do procedimento.
Olhando para a petição inicial afigura-se pois, líquido que, estando em causa um concurso para recrutamento e selecção para eventual contratação de especialistas de ortopedia, existindo assim um procedimento pré-contratual que assegure os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa fé e da não discriminação, bem como da publicidade, exigência essa que visa dar cumprimento ao comando constitucional constante do artº 47º nº2 da CRP, e como tal necessariamente sujeito a normas direito público, que a competência material para conhecer da acção é, efectivamente, dos tribunais administrativos, nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF”.

5. Constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual que a competência do tribunal em razão da matéria se afere de harmonia com a relação jurídica controvertida, em princípio, tal como definida pelo autor no que se refere aos termos em que propõe a resolução do litígio, a natureza dos sujeitos processuais, a causa de pedir e o pedido. Em nada releva, para a questão, saber se a pretensão formulada é ou não procedente, se as partes são ou não legítimas ou se a forma processual é a idónea.

Por outro lado, há que ter presente, a título de enquadramento genérico, que os tribunais judiciais, em cuja ordem se inserem os tribunais do trabalho, são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art.º 211.º da CRP). E que, em consonância com o art.º 212.º, n.º 3, da CRP, o art.º 1.º, n.º 1, do ETAF, estabelece que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal “são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Assim, no caminho para a resolução de um conflito deste género, impõe-se, antes do mais saber se a situação, com o pedido, causa de pedir e sujeitos tal como o autor os apresenta, cabe em qualquer das normas de definição positiva e negativa do âmbito da jurisdição administrativa.

Postas estas considerações gerais, importa ter presente o disposto no art.º 4.º do ETAF, na versão anterior ao Dec. Lei n.º 214-G/2015, de 2/10 que vigorava à data da instauração do processo, elencando os litígios compreendidos no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal mediante enunciação positiva no n.ºs 1 e negativa nos n.ºs 2 e 3. Efectivamente, pelo que respeita às normas competenciais, o fulcro do presente conflito negativo de jurisdição reside na diferente interpretação e conjugação de duas normas deste art.º 4.º:
- a norma da al. e) do n.º 1 que inclui no âmbito da jurisdição os litígios respeitantes a “questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação e validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”;
- a norma da al. d) do n.º 3 (na redacção conferida pela Lei n.º 59/2008, de 11/9) que excluía do âmbito da jurisdição administrativa “a apreciação de litígios emergentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas” (actualmente constitui a al. b) do n.º 4 do art.º 4.º).

E isto porque o acto ou actos cuja validade se pretende sindicar respeita a um procedimento pré-contratual destinado ao recrutamento para um posto de trabalho relativamente ao qual não há divergência das partes nem dos tribunais em conflito que a vinculação seria estabelecida mediante um contrato individual de trabalho, sujeito ao regime do Código do Trabalho e demais legislação laboral. Com efeito, segundo os termos do anúncio que o desencadeou, estamos perante um procedimento de “concurso de reserva de recrutamento para especialistas de ortopedia, para eventual contratação em contrato de trabalho”. De facto, nos termos do art.º 14.º do Dec. Lei n.º 233/2005, de 29 de Dezembro, na red. do Dec. Lei n.º 176/79, de 4 de Agosto, aplicável aos HUC-EPE designadamente em matéria de recursos humanos por força do Dec. Lei n.º 180/2008, de 26 de Agosto, sem prejuízo da salvaguarda de regimes transitórios, a regra é a de que os trabalhadores dos hospitais constituídos como entidades públicas empresariais (E.P.E.) estão sujeitos ao regime do contrato de trabalho, nos termos do Código de Trabalho, bem como ao regime disposto em diplomas que definam o regime legal da carreira de profissões de saúde, demais legislação laboral, normas imperativas sobre títulos profissionais, instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e regulamentos internos.

Seguramente que não estamos perante um litígio emergente de uma relação contratual existente, hipótese para a qual a al. d) do n.º 3 do art.º 4.º do ETAF forneceria resposta imediata, mas perante um litígio respeitante ao seu procedimento de formação. Sucede que o estabelecimento dessa relação laboral de direito privado por parte do ente público não é livre de vinculações quanto à escolha do co-contraente. Decorre do n.º 4 do art.º 14.º do Dec. Lei n.º 233/2005 (regime jurídico dos hospitais e unidades de saúde constituídas sob a forma de entidades públicas empresariais) e do art.º 15.º do Dec. Lei n.º 176/79 (regime das carreiras dos médicos nas entidades públicas empresariais), a sujeição do recrutamento do pessoal médico nos EPE a um procedimento de selecção, que deve assegurar, além dos requisitos de qualificação para o lugar a prover, “os princípios da igualdade de oportunidades, da imparcialidade, da boa fé e da não discriminação, bem como da publicidade, excepto em casos de manifesta urgência devidamente fundamentada”. No essencial, trata-se de replicação da norma do art.º 5.º da Lei n.º 23/2004, de 22 de Junho, que aprovou o regime do contrato individual de trabalho na Administração Pública, que ao tempo impunha as mesmas exigências, com carácter geral, à celebração de contratos de trabalho por pessoas colectivas públicas.

É na natureza deste procedimento que reside a divergência.

Adianta-se que se afiguram evidentes as notas de administratividade neste procedimento pré-contratual. Na verdade, a exigência de um procedimento formalizado previamente à contratação, ainda que mediante contrato de direito privado, e os princípios que o legislador manda observar nesse procedimento concursal (lato sensu) são impostos pela natureza pública do empregador. Na verdade, a Administração Pública, ainda quando autorizada a agir na obtenção dos ditos “recursos humanos” por meios jurídicos de direito privado, não tem o grau de autonomia dos restantes empregadores na selecção e recrutamento. Mesmo para estabelecer relações regidas pelo direito laboral comum, a lei estabelece com frequência um procedimento destinado a tornar efectivo o conjunto de regras de direito público a que deve obedecer. Com efeito, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, aplicam-se ao estabelecimento de relações de trabalho na Administração Pública, independentemente da natureza pública ou privada da vinculação, as regras do art.º 47.º, n.º 2, da Constituição, que impõe a igualdade de condições no acesso ao emprego, a publicitação da oferta de emprego e a garantia de imparcialidade na apreciação dos candidatos, assegurada pela fundamentação da decisão de contratar (cfr. ac. do TC n.º 61/2004 e jurisprudência nele citada). É para garantia do respeito por esta vinculação fundamental da Administração no acesso ao emprego público e não como instrumento de mera salvaguarda do direito geral dos trabalhadores à igualdade no acesso ao mercado do trabalho (cfr. Art.º 24.º do Cod. do Trabalho) que o legislador torna obrigatório o procedimento de recrutamento e selecção em causa.

Assim, o litígio a que a acção respeita insere-se na relação jurídica de direito administrativo que no âmbito deste procedimento concursal (lato sensu) se estabelece entre o ente público obrigado à abertura do procedimento em razão dessa qualidade e os candidatos que se apresentem (uma relação potencialmente poligonal) e não na relação contratual de direito privado entre cada trabalhador médico e o estabelecimento público em que serve.

Tanto basta para concluir que a resolução dos litígios respeitantes aos procedimentos de seleção para contratação de pessoal médico em regime de contrato individual de trabalho cabem no âmbito da jurisdição administrativa ao abrigo das als. a) e e) do n.º 1, não sendo dela excluídos pela al. d) do n.º 3, do art.º 4.º do ETAF (red. então vigente, actualmente al. d) do n.º 4 do art.º 4).

E não convence a objecção de que também os contratos privados podem ser precedidos de concurso ou de um procedimento mais ou menos formalizado de escolha do contraente. Isso é exacto, mas nesses casos a opção pelo procedimento concursal resulta juridicamente de uma manifestação da autonomia privada do contraente, segundo a avaliação que faça do que lhe é mais vantajoso, e não de uma imposição legal cuja observância é imposta ao ente público nessa qualidade de empregador público e para salvaguarda de um interesse diferenciado do interesse imediato de provisão com “recursos humanos” (os princípios fundamentais do emprego público).

E também não procede a objecção retirada do art.º 18.º do Dec. Lei n.º 558/99, de 17 de Dezembro (regime jurídico do sector empresarial do Estado e empresas públicas, entretanto revogado pelo Dec. Lei n.º 113/2013, de 3 de Outubro). Esse preceito não exclui do âmbito da jurisdição todos os litígios que não contempla expressamente, antes ressalva os critérios gerais de competência (n.º 2 do cit. Art.º 18.º), que é o que importa resolver.

É certo que a interpretação da lei neste sentido - de atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciação de litígios respeitantes a procedimentos pré-contratuais regulados por normas de direito público que precedam a celebração de contratos individuais de trabalho - conduz ao “dualismo” de competência jurisdicional no âmbito dos litígios relacionados com a contratação de pessoal ao abrigo deste regime de vinculação, com conhecidas desvantagens. Simplesmente, quando pretendeu atalhar aos inconvenientes de ordem prática decorrentes dessa aplicação dos princípios ordenadores da repartição de competência, o legislador fê-lo expressamente e no sentido inverso (cfr. al e) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, quanto aos contratos, ainda que de direito privado, que sejam obrigatoriamente precedidos de um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público). Com a norma da al. d) do n.º 3 do art.º 4.º do ETAF (actualmente, al. b) do n.º 4 do art.º 4.º) o legislador optou por estabelecer que a regra da al. e) do n.º1 do art.º 4.º (extensão da jurisdição administrativa aos litígios respeitantes à validade, interpretação e execução dos contratos pelo “factor procedimento”) não se aplica a estes casos (litígios decorrentes ou emergentes de contratos), mas não afastou os litígios suscitados nos procedimentos de direito administrativo que antecedem a celebração de tais contratos individuais de trabalho da jurisdição administrativa (Cfr. neste sentido Mário Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol. I, pag. 68-69).

6. Decisão
Pelo exposto, decide-se resolver o presente conflito de jurisdição no sentido de atribuir a competência para conhecer da acção aos tribunais da jurisdição administrativa.
Sem custas.

Lisboa, 11 de Janeiro de 2017. – Alberto Augusto Andrade de Oliveira (relator) – Raul Eduardo do Vale Raposo Borges – João Moreira Camilo – Paulo Armínio de Oliveira e Sá – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – António Bento São Pedro.