Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0785/22.3T8PVZ.S1
Data do Acordão:05/23/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:É da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação de uma acção de indemnização proposta contra o Estado com fundamento na alegação de uma omissão de conduta legalmente devida por parte do Ministério Público, enquanto titular da acção penal, que, na óptica do autor, teve como consequência a extinção do procedimento criminal, por prescrição, e veio a ocasionar danos não patrimoniais indemnizáveis em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado.
Nº Convencional:JSTA000P31058
Nº do Documento:SAC202305230785
Recorrente:AA
Recorrido 1:ESTADO PORTUGUÊS
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 30 de Agosto de 2021, AA instaurou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto uma ação administrativa comum contra o Estado Português, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de € 5.500 a título de indemnização por responsabilidade civil extracontratual.


Para tanto, e em síntese, alegou que, em consequência da omissão do dever de agir por parte do Ministério Público, enquanto titular da ação penal, o procedimento criminal que teve origem na denúncia atempadamente apresentada pelo autor veio a extinguir-se, por prescrição.


O processo foi distribuído ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, sob o n.º 1956/21.6...


Citado, o réu contestou, impugnando os factos e excepcionando a ineptidão da Petição Inicial e a incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, para conhecer da causa.


Sustentou, quanto à incompetência material, que, fundando-se a causa de pedir em alegado erro judiciário por omissão de actos devidos em fase de inquérito, por parte do Ministério Público, a competência para conhecer da ação cabe aos tribunais comuns, por força do disposto no artigo 4.º, n.ºs 3, al. c), e 4, al. a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


O autor replicou, pronunciando-se pela competência dos Tribunais Administrativos, afirmando que a sua pretensão não se funda em erro judiciário, mas “sim e só” na omissão da prática de actos que eram devidos pelo Ministério Público, enquanto titular da ação penal, que ocasionou a prescrição do direito de queixa que pretendia ver exercido.


Por despacho saneador-sentença de 8 de Abril de 2022, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo Administrativo Comum julgou verificada a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria dos Tribunais administrativos, declarando-se incompetente para conhecer da acção e absolvendo o réu da instância.


Para o efeito, considerou que a presente acção emerge de alegados erros judiciários de Magistrado do Ministério Público em fase de inquérito criminal, cometidos por omissão, cabendo a competência para conhecer da causa aos tribunais da jurisdição comum.


O autor requereu a remessa do processo para o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim. Remetidos os autos, foram distribuídos ao Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 2 – do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, sob o n.º 785/22.3...


No saneador-sentença de 19 de Novembro de 2022, o Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 2 – do Tribunal Judicial da Comarca do Porto julgou-se absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção, por ser do âmbito da jurisdição administrativa, e absolveu novamente o réu da instância, uma vez que a causa de pedir não assenta em erro judiciário (nos termos do artigo 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro), porquanto, ainda que o autor pretenda efectivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado, não a funda no exercício de actividade materialmente jurisdicional, mas na omissão de acto devido pelo titular da ação penal.


O Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível da Póvoa de Varzim – Juiz 2, requereu, entretanto, a resolução do conflito negativo de jurisdição.


2. Determinado pelo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que se seguisse a tramitação prevista na Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), nos termos do n.º 4 do respectivo artigo 11.º as partes foram notificadas para se pronunciarem, querendo, nada tendo dito. O Ministério Público proferiu parecer no sentido de caber à jurisdição comum a competência para conhecer da presente acção.


3. Os factos relevantes para a decisão do conflito constam do relatório.


Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido do autor, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (no 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).


O Estatuto dos Tribunais Administrativo e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, após várias modificações, foi alterado pela Lei 114/2019, que entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo.


Tratando-se de uma alteração respeitante à competência material da jurisdição administrativa e fiscal – nomeadamente, modificou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, preceitos dos quais resulta o critério geral de delimitação da jurisdição administrativa –, a aplicação no tempo dessa alteração não atinge as acções pendentes, de acordo com o disposto no artigo 5.o do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. O mesmo princípio consta, aliás, do n.º 2 do artigo 38.o da Lei de Organização do Sistema Judiciário, preceito incluído no Título V, relativo aos Tribunais Judiciais, e que prevê duas excepções, nas quais a lei nova é de aplicação às acções pendentes: a extinção do tribunal onde a acção foi proposta e a atribuição de competência a tribunal incompetente.


Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 30 de Agosto de 2021, é por referência às versões da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 2, da Lei de Organização do Sistema Judiciário).


Como uniformemente se tem observado, nomeadamente na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção).


Significa esta forma de aferição da competência, como por exemplo se observou no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 20/18, que “A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência...».”.


A mesma orientação se retira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Fevereiro de 2015, ww.dgsi.pt, processo n.º 1998/12.1TBMGR.C1.S1: “Como é sabido, a competência do Tribunal em razão da matéria é determinada pela natureza da relação jurídica tal como apresentada pelo autor na petição inicial, confrontando-se o respetivo pedido com a causa de pedir e sendo tal questão, da competência ou incompetência em razão da matéria do Tribunal para o conhecimento de determinado litígio, independente, quer de outras exceções eventualmente existentes, quer do mérito ou demérito da pretensão deduzida pelas partes”.


4. Cumpre definir se a competência em razão da matéria para a apreciação do litígio em causa caberá aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.


Em síntese, o autor alicerça o seu pedido nos seguintes factos:


- Em 8 de Outubro de 2018, o autor dirigiu requerimento aos autos de inquérito n.º 227/17.6..., do DIAP do Porto, Secção da Póvoa do Varzim (no qual era denunciante), apresentando denúncia criminal contra uma testemunha que ali havia prestado declarações, pela prática de um crime de difamação.


- Em data anterior à apresentação da denúncia contra a testemunha, o autor formulou requerimento de constituição como assistente nos autos de inquérito n.º 227/17.6..., ali mencionando que “a constituição seja atendida para todos os factos participados no processo”.


- O autor nunca foi notificado de que, atenta a natureza particular dos factos denunciados contra a testemunha, deveria requerer a sua constituição como assistente.


- Por despacho de 11/09/2019, o Ministério Público determinou o arquivamento do inquérito relativamente à factualidade denunciada contra a testemunha, com o fundamento de que o ora autor, enquanto denunciante, não havia requerido a sua constituição como assistente relativamente a tais factos.


- Inconformado, o ora autor apresentou reclamação hierárquica.


- Sobre aquela reclamação veio a recair decisão do Ex.mo Senhor Procurador- Geral Adjunto, Diretor do DIAP do Porto, que deferiu a reclamação hierárquica, considerando que a constituição como assistente havia sido tempestivamente requerida.


- Em cumprimento do decidido, o Ex.mo Procurador da República titular do inquérito determinou a extracção de certidão e sua distribuição e autuação como inquérito, o que, uma vez cumprido, deu origem ao processo de inquérito n.º 2061/19.0...


- Por se mostrar ultrapassado o prazo previsto no artigo 276.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal para a duração deste novo inquérito, sem que tivesse sido notificado de quaisquer actos ou diligências, em 2 de Fevereiro de 2021 o autor requereu a aceleração processual.


- Em 4 de Fevereiro de 2021, foi proferido despacho no inquérito n.º 2061/19.0..., determinando o arquivamento dos autos, com fundamento na extinção do procedimento criminal por prescrição.


- Apesar de o autor ter apresentado atempadamente denúncia criminal contra aquela testemunha, o Exmo. Magistrado do Ministério Público titular do processo omitiu qualquer dever de ação penal quanto à mesma, determinando a extracção de certidão para a instauração do procedimento que deu origem ao inquérito n.º 2061/19.0... apenas após decisão proferida em sede de intervenção hierárquica e quando o procedimento já se encontrava extinto por prescrição.


- Em consequência da omissão do seu dever de agir, como titular da ação penal, o Ministério Público – e, reflexamente, o Estado Português –, negou ao aqui autor o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, negou o seu direito a que uma causa em que era directamente interessado fosse decidida em prazo razoável e negou o seu direito a uma tutela jurisdicional efectiva e em tempo útil contra uma violação dos seus direitos de personalidade.


A Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.


Nos termos do artigo 1.º, n.º 1, “A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial”.


E, de acordo como n.º 3 do mesmo preceito, “Sem prejuízo do disposto em lei especial, a presente lei regula também a responsabilidade civil dos titulares de órgãos, funcionários e agentes públicos por danos decorrentes de acções ou omissões adoptadas no exercício das funções administrativa e jurisdicional e por causa desse exercício”.


Ora, conforme o artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na parte que para aqui releva, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional” (n.º 1, al. f)), excluindo-se expressamente do âmbito da referida jurisdição administrativa e fiscal a impugnação de “actos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões” (n.º 3, al. c), do artigo 4.o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) e a “apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição" (n.º 4, al. a) do mencionado artigo 4.º).


5. Decidiu-se no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 21 de Outubro de 2014, www.dgsi., processo n.º 034/14:


Da análise de tal conteúdo normativo extrai-se que a competência do foro administrativo abrange as acções respeitantes à responsabilidade civil fundada na prática de quaisquer actos ou omissões no exercício da função jurisdicional, a qual reveste natureza administrativa – arts. 202º, n.º 1 e 212º, n.º 3 da CRP e art. 1º do ETAF –, acções essas nas quais se englobam as resultantes da deficiente administração da justiça, tais como as fundadas na infracção das regras processuais ou na demora nas decisões judiciais, sem prejuízo, porém, e de acordo com a interpretação, a contrario, daquele último normativo transcrito, da exclusão de tal competência relativamente às acções fundadas em erro judiciário que haja sido cometido por tribunais não integrados na jurisdição administrativa - vide Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, 2003, pág. 13 e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, anotado, dos Drs. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, págs. 59/60 e 67/68.


Temos, portanto, e conforme se referiu no item antecedente, que a acção relativamente a cuja determinação da respectiva competência material se reporta o presente conflito negativo de jurisdição, teve por fundamento o erro praticado pelas autoridades judiciárias na apreciação dos pressupostos de facto que determinaram a aplicação ao autor, em anterior acção penal contra si instaurada, da medida de coacção de prisão preventiva.


Assim, configurando a causa de pedir da acção instaurada, legalmente fundada no art. 225° do CPP, um erro judiciário praticado por um órgão jurisdicional estranho ao foro administrativo, de acordo com a competência residual atribuída pelos arts. 66º do CPC e 18º, n.º 1 da LOFTJ aos tribunais comuns, a competência material aqui e ora em causa radica-se no Tribunal Judicial da comarca de Vila Viçosa, onde correu termos a acção penal em que foi praticado o erro judiciário invocado, como aliás em igual sentido foi já anteriormente decidido nos Acórdãos de 22/09/2011 e de 25/09/2012 deste Tribunal dos Conflitos”.


Trata-se, no entanto, de uma situação não exatamente similar àquela que agora se apresenta.


Decidiu-se no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 10 de Março de 2011, www.dgsi.pt, processo n.º 013/10:


«Na verdade, como escrevemos no citado acórdão do Tribunal de Conflitos de 29- 11-2006, “hoje, é pacífico o entendimento jurisprudencial, na linha deste último aresto, de que estando em causa a responsabilidade emergente da função de julgar, a competência cabe aos tribunais judiciais, pois os actos e actividades próprias dos juízes na sua função de julgar são praticados no exercício específico da função jurisdicional e não da função administrativa; todos os outros actos e omissões de juízes, bem como toda a actividade e actuação dos restantes magistrados, órgãos e agentes estaduais que intervenham na administração da justiça, em termos de relação com os particulares ou outros órgãos e agentes do Estado, e, portanto, sejam estranhos à especifica função de julgar, inscrevem-se nos conceitos de actos e actividades administrativas ou de “gestão pública administrativa”, da competência da jurisdição administrativa - (cfr. entre outros, além do supra transcrito aresto de 12-05-1994, os acórdãos deste Tribunal de Conflitos de 23-01-2001, Conflito n.° 294, e de 21-02-06, Conflito n° 340, e, ainda, entre outros, os Acórdãos do STA de 13.02.1996, Proc. n°38.474, in AP DR de 31-8-98, 1095; de 15.10.98, Proc. n° 36.811; de 12.10.2000, Proc. n.° 45.862, in AP DR de 12-2-2003, 7360; de 12.10.2000, Proc. n.° 46.313, in AP DR de 12-2-2003, 7378; e de 22-05-2003, Proc. n.° 532/03).


De referir ainda que, “o novo ETAF (aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro) unificou a jurisdição no tocante à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, desinteressando-se da questão de saber se o direito de indemnização provém de acto de gestão pública ou de gestão privada, e, do mesmo modo, integrou no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, bem como a resultante do deficiente funcionamento da administração da justiça, dissipando todas as dúvidas que pudessem colocar-se, no futuro, quanto à fronteira entre a jurisdição dos tribunais administrativos e dos tribunais comuns (cfr. artigo 4°, n.° 1, alínea g)” - acórdão do Tribunal de Conflitos de 18-12-2003, Proc.° n.° 15/03.


Ora no caso em apreço, como refere a decisão da 2ª Vara Cível, não está em causa a responsabilidade derivada da função de julgar, que o A. nem refere na petição inicial, mas tão só a ineficiência da actuação dos órgãos do Estado encarregados da investigação criminal que, na óptica do A., não procederam às diligências de investigação da queixa crime apresentada contra os denunciados.


Assim sendo, está-se no âmbito das relações jurídicas administrativas que se podem estabelecer entre a administração judiciária e os particulares na administração da justiça e não no âmbito da específica função de julgar, designadamente de qualquer erro judiciário, pelo que de acordo com a jurisprudência acima citada, e nos termos dos artigos 1°, n.° 1, e 4º, n.° 1, al. g) do ETAF, e 212, n.° 3, da CRP, há que concluir que incumbe aos tribunais administrativos o julgamento da acção de responsabilidade civil extracontratual intentada contra o Estado.»


No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Tribunal dos conflitos de 28 de Junho de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 04/18, cujo sumário se transcreve: “Compete à jurisdição administrativa conhecer da ação, instaurada contra o Estado, pedindo o pagamento de uma indemnização, por danos causados pela indevida delonga de processo crime que correu termos em Tribunal Judicial”.


Decidiu-se, também, no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 5 de Maio de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 03461/20.8T8LRA.S1:


“Ora o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.o 13/2002, de 19 de Fevereiro, veio trazer para o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal todas as acções de responsabilidade civil extra-contratual instauradas contra entidades públicas, incluindo a responsabilidade resultante do exercício da função jurisdicional, tornando-se desnecessário apurar se o acto indicado como fonte da obrigação de indemnizar, como tal indicado pelo autor, deve ser considerado um acto de gestão pública ou de gestão privada. No caso, aliás, considerando a causa de pedir invocada, nunca se colocaria qualquer dúvida, no que a esta alternativa respeita. Cfr, apenas a título de exemplo, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 10 de Março de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.o 013/10: «De referir ainda que, “o novo ETAF (aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro) unificou a jurisdição no tocante à responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, desinteressando-se da questão de saber se o direito de indemnização provém de acto de gestão pública ou de gestão privada, e, do mesmo modo, integrou no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, bem como a resultante do deficiente funcionamento da administração da justiça, dissipando todas as dúvidas que pudessem colocar-se, no futuro, quanto à fronteira entre a jurisdição dos tribunais administrativos e dos tribunais comuns (cfr. artigo 4°, n.° 1, alínea g)” - acórdão do Tribunal de Conflitos de 18-12-2003, Proc.° n.° 15/03” e José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 112, ou Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 4.ª ed., Coimbra, 2018, págs. 23 e 24.


Seja como for, o que agora releva é determinar se o litígio, tal como foi configurado pelo autor, deve ser considerado como incluído na jurisdição administrativa e fiscal, pela al. f) do nº 1 do artigo 4º do ETAF [“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (...) f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.o 4 do presente artigo;”] ou dela excluído, pela al. a) do n.o 4 do mesmo artigo [“4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal


a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;”]


Ou seja: há que saber se o pedido de indemnização formulado pelo autor tem como causa de pedir um “erro judiciário cometido por tribunais pertencentes” a ordem diversa da Ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais, mais precisamente, aos Tribunais Judiciais, uma vez que a omissão atribuída ao Ministério Público respeita a actos que teriam de ser praticados em tribunais judiciais (como entendeu o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria), ou aos tribunais administrativos, por não estar em causa um acto (omissivo) atribuído a um juiz, mas sim ao Ministério Público (como decidiu o Juízo Central Cível de Lisboa). A exclusão destes últimos litígios explica-se por não se pretender deslocar a acção de responsabilidade para ordem diferente do tribunal a quem é atribuído o erro judiciário (cfr. José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., pág 111, nota (204), que explica que a al) do n.o 4 do artigo 4.o exclui da jurisdição administrativa “o julgamento de responsabilidade por erro judiciário cometido por juízes de outras ordens de tribunais”, ou José Manuel Cardoso da Costa, Sobre o Novo Regime da Responsabilidade do Estado, Estudos em Homenagem a Manuel Henrique Mesquita, Coimbra, 2009, pág. 501 e segs., pág. 506: “Enquanto o apuramento da responsabilidade por danos causados, em geral, pela administração da justiça ficou deferido, qualquer que seja a ordem jurisdicional implicada, aos tribunais administrativos, já a apreciação da acção de responsabilidade por erro judiciário, bem como das correspondentes acções de regresso contra magistrados, foi cometida, e ficou confinada, à respectiva ordem de jurisdição (art. 4.º, nº 1, alínea f) e n.º 3, alínea a), do referido ETAF"; cfr. ainda o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 21 de Outubro de 2014, www.dsgi.pt, processo nº 034/14: “(...) a competência do foro administrativo abrange as acções respeitantes à responsabilidade civil fundada na prática de quaisquer actos ou omissões no exercício da função jurisdicional, a qual reveste natureza administrativa – arts. 202º, n.º 1 e 212º, n.º 3 da CRP e art. 1º do ETAF –, acções essas nas quais se englobam as resultantes da deficiente administração da justiça, tais como as fundadas na infracção das regras processuais ou na demora nas decisões judiciais, sem prejuízo, porém, e de acordo com a interpretação, a contrario, daquele último normativo transcrito, da exclusão de tal competência relativamente às acções fundadas em erro judiciário que haja sido cometido por tribunais não integrados na jurisdição administrativa – vide Reforma do Contencioso Administrativo, Ministério da Justiça, 2003, pág. 13 e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, anotado, dos Drs. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, págs. 59/60 e 67/68.”


No mesmo sentido, decidiu-se no já citado acórdão do Tribunal dos Conflitos de 10 de Março de 2011..


(...) Ora no caso em apreço, como refere a decisão da 2ª Vara Cível, não está em causa a responsabilidade derivada da função de julgar, que o A. nem refere na petição inicial, mas tão só a ineficiência da actuação dos órgãos do Estado encarregados da investigação criminal que, na óptica do A., não procederam às diligências de investigação da queixa crime apresentada contra os denunciados.


Assim sendo, está-se no âmbito das relações jurídicas administrativas que se podem estabelecer entre a administração judiciária e os particulares na administração da justiça e não no âmbito da específica função de julgar, designadamente de qualquer erro judiciário, pelo que de acordo com a jurisprudência acima citada, e nos termos dos artigos 1°, n.° 1, e 4º, n.° 1, al. g) do ETAF, e 212, n.° 3, da CRP, há que concluir que incumbe aos tribunais administrativos o julgamento da acção de responsabilidade civil extracontratual intentada contra o Estado.”


4. Nestes termos, entende-se que a exclusão operada pela al. a) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF apenas se aplica às acções de responsabilidade por erro judiciário atribuído a tribunais não integrados na Ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ou seja, no que agora releva, a erro atribuído a decisão judicial, o que não abrange acções de responsabilidade fundadas na alegação de actuações (por acção ou omissão) do Ministério Público, ainda que por ventura houvessem de ter lugar em tribunais judiciais.


Assim, compete à jurisdição administrativa e fiscal o julgamento da acção proposta por AA.”.


Igualmente, o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Julho de 2021, www.dgsi.pt, processo n.º 02/20, pronunciou-se a propósito de uma acção com contornos semelhantes à dos presentes autos, nos seguintes termos:


“Ora, a acção em causa nos autos não visa a impugnação de qualquer acto ou decisão jurisdicional, traduzindo-se num simples pedido indemnizatório. Sublinhe-se que não estão em causa os próprios actos imputados à actuação do Ministério Público mas as suas consequências.


Importa, portanto, determinar se a acção, tal como foi configurada pelo autor se deve incluir na competência da jurisdição administrativa e fiscal (art. 4º, n.º 1, al. g) do ETAF na redacção anterior ao DL nº 214-G/2015) ou se estamos perante um erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição e, portanto, excluída da apreciação pelos tribunais administrativos e fiscais (art. 4º, no 3, al. a)).


(...) Ora no caso em apreço, como refere a decisão da 2ª Vara Cível, não está em causa a responsabilidade derivada da função de julgar, que o A. nem refere na petição inicial, mas tão só a ineficiência da actuação dos órgãos do Estado encarregados da investigação criminal que, na óptica do A., não procederam às diligências de investigação da queixa crime apresentada contra os denunciados.


Assim sendo, está-se no âmbito das relações jurídicas administrativas que se podem estabelecer entre a administração judiciária e os particulares na administração da justiça e não no âmbito da específica função de julgar, designadamente de qualquer erro judiciário, pelo que de acordo com a jurisprudência acima citada, e nos termos dos artigos 1º, n.º 1, e 4º, n.º 1, al. g) do ETAF, e 212, n.º 3, da CRP, há que concluir que incumbe aos tribunais administrativos o julgamento da acção de responsabilidade civil extracontratual intentada contra o Estado”.


Refira-se ainda o recente acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 05.05.2021, Proc. n.º 03461/20.8T8LRA.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt) onde, em caso paralelo, se decidiu: “entende-se que a exclusão operada pela al. a) do n.º 4 do artigo 4.º do ETAF apenas se aplica às acções de responsabilidade por erro judiciário atribuído a tribunais não integrados na Ordem dos Tribunais Administrativos e Fiscais, ou seja, no que agora releva, a erro atribuído a decisão judicial, o que não abrange acções de responsabilidade fundadas na alegação de actuações (por acção ou omissão) do Ministério Público, ainda que por ventura houvessem de ter lugar em tribunais judiciais”.


Assim, é de concluir que as acções de responsabilidade que tenham por objecto a prática de um erro judiciário pertencem a diferentes âmbitos de jurisdição, consoante o erro seja atribuído a um tribunal da jurisdição comum ou da jurisdição administrativa e fiscal. Como tal, só estão excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal as acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, bem como as correspondentes acções de regresso (cfr. al. a) do nº 3 do citado artigo do ETAF), estando nos outros casos atribuída aos tribunais administrativos a apreciação das acções de responsabilidade civil extracontratual contra o Estado.”


É esta jurisprudência que se reitera, uma vez que, também agora, e tendo presente o disposto no artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007, não está em causa a alegação de um erro judiciário, mas antes de ineficiência da actuação do Ministério Público – uma omissão de conduta legalmente devida que, na óptica do autor, veio a ocasionar danos não patrimoniais indemnizáveis em sede de responsabilidade civil extracontratual do Estado.


6. Assim, conclui-se que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, compete à jurisdição administrativa e fiscal o conhecimento da presente acção; concretamente, e de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 14.º da Lei n.º 91/2019, com o n.º 1 do artigo 18.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, com a al. a) do n.º 1 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e com o artigo 1.º da Portaria n.º 121/202, de 22 de Maio, ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto.


Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


Lisboa, 23 de Maio de 2023. – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.