Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:018/13
Data do Acordão:12/18/2013
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MOREIRA ALVES
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:*
Nº Convencional:JSTA000P16764
Nº do Documento:SAC20131218018
Data de Entrada:01/31/2013
Recorrente:A..., NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 3 JUÍZO DE COMPETÊNCIA CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE OEIRAS E A 3 UNIDADE ORGÂNICA DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE SINTRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Relatório
A……………….., B……………….. e C…………………, todos com os sinais nos autos, instauraram contra Município de Oeiras, a presente acção administrativa comum, sob a forma ordinária, pedindo, a final, que a acção seja julgada procedente por provada, e em consequência que:
a) Se declare os autores como donos e legítimos proprietários do imóvel identificado no artigo 1.º da petição inicial;
b) Se condene o réu a restituir aos autores a parcela de terreno e o imóvel (edifício onde funcionou a Escola EB1 ………….) livre e devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições, e as chaves do edifício que está implantado no referido terreno;
c) Se condene o réu ao pagamento de uma indemnização correspondente ao valor pela ocupação do imóvel, calculada nos termos do art. 661.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, que deverá ser calculada no valor mensal de € 3 000 (três mil euros) desde a data em que deveria ter sido entregue pela ré aos autores (08-08-2011) até à sua efectiva restituição, totalmente devoluto de pessoas e bens;
d) Se condene o réu a demolir o edifício implantado no prédio rústico, onde funcionaram as instalações da Escola EB1 ……………, às suas expensas, nos termos do n.° 6 do art. 45.° do RJUE.
*
Para fundamentar a sua pretensão, alegam os autores, em síntese e além do mais que aqui não releva, que, sendo donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio misto, denominado de “…………..”, sito na Estrada de Barcarena a Leceia, em ………….., concelho de Oeiras, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob a ficha n.º 4031/200091019, que adquiriram por sucessão por morte do seu pai D……………….., o referido imóvel está a ser ocupado ilegítima e ilegalmente pelo réu.
O réu contestou, conforme decorre de fls. 180 a 204, tendo os autores replicado a fls.260 a 276.
*
O Meritíssimo Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra (TAF de Sintra) declarou que aquele tribunal era materialmente incompetente para conhecer do objecto do litígio, absolvendo o réu da instância – cf. fls. 279 a 283 –, tendo a decisão transitado em julgado.
Os autores vieram requerer a resolução do conflito negativo de jurisdição, como ressalta de fls. 204 a 298, tendo junto, além do mais, certidão da petição inicial e da sentença proferida no Proc. n.º 8259/11.1TBOER – igualmente transitada em julgado – que declarou verificada a excepção dilatória de incompetência material do tribunal comum, por violação das regras da competência material – cf. fls. 319 a 325.
Aberto o conflito de jurisdição, em face do trânsito em julgado daquelas decisões, o processo foi endereçado a este Tribunal dos Conflitos para dirimir o conflito negativo assim desencadeado (O Tribunal de Conflitos foi instituído pelo Decreto n.º 19 243, de 16-01-1931, com a competência para dirimir conflitos positivos ou negativos de jurisdição e de competência entre as autoridades administrativas e judiciais – art. 59.º. Criado o Supremo Tribunal Administrativo (STA), pelo DL n.º 23 185, de 30-10-1933, passou o Tribunal de Conflitos a ser integrado por 6 juízes conselheiros, 3 do STA e 3 do STJ, presidido pelo presidente do 1.º - art. 17.º.) — cf. fls. 371.
Após designação dos Juízes Conselheiros e distribuído o processo – cf. fls. 374 a 377 –, a Exma. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de se atribuir a competência material para a tramitação da acção sub judice aos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do art. 1.º, n.º 1, do ETAF — cf. fls. 379 a 382.
*
Os Factos
É a seguinte a factualidade significativa, indicada pelos autores, a atender para a resolução deste conflito de jurisdição:
1. Os autores são donos, legítimos proprietários e possuidores do prédio misto, denominado de “……………”, sito na Estrada de Barcarena a Leceia, em …………., concelho de Oeiras, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob a ficha n.º 4031/200091019, constituído por parte urbana (c/área de 127,68m2), inscrito sob a matriz n.º 434, e por parte rústica (c/área de 2600m2) inscrito sob a matriz n.º 612, que adquiriram por sucessão por morte do seu pai D………………...
2. Em 1930, o pai dos autores cedeu temporariamente, a título precário, ao Ministério da Educação e Obras Públicas, uma parcela do terreno do prédio rústico (art. matricial n.º 612), com o único fim de ser edificada/instalada a escola primária de …………….., o que veio a suceder.
3. Naquele local funcionou desde 1930 até Setembro de 2010 – data em que foi desactivada, conforme comunicado emitido pela presidência da Câmara Municipal de Oeiras (CMO) – a Escola EB1 …………...
4. Posteriormente, a Câmara Municipal de Oeiras cedeu ao Corpo Nacional de Escutas – Escutismo Católico Português, a título de comodato, as antigas instalações da Escola EB1 …………....
5. O edifício onde funcionou a Escola EB1 …………. deu lugar à sede do agrupamento de escuteiros 1278, sem que os seus proprietários tenham prestado o seu consentimento.
6. A CMO não solicitou a permissão aos autores para cederem a parcela de terreno onde estava implantada a Escola EB1 …………, a qual passou a estar afecta a um fim diverso daquele para que tinha sido cedida.
7. A CMO exerce uma posse não titulada e de má fé sobre a parcela de terreno em apreço, uma vez que até à presente data ainda não procedeu à entrega do terreno aos autores, sabendo perfeitamente que estes são os seus únicos e legítimos proprietários.
8. Os autores notificaram a CMO, no dia 08-07-2011, nos termos do art. 45.º, n.º
1, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), para que esta procedesse à entrega voluntária do terreno totalmente devoluto de pessoas e bens, até ao dia
08-08-2001.

9. Até à presente data a CMO não procedeu voluntariamente à entrega do aludido terreno, mantendo-se ilegalmente na posse do mesmo.
*
Fundamentação
Apreciando.
O poder jurisdicional encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas suscitadas perante eles - cf. arts. 209.º e segs. da Constituição da República Portuguesa (CRP). Para além do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, a CRP consagra a existência, na ordem jurídica portuguesa, de uma dualidade de jurisdições (Cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Anotada, Tomo III, 2007, p. 143.): a jurisdição comum e a jurisdição administrativa.
A existência de várias categorias de tribunais supõe naturalmente um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, gerar-se conflitos de jurisdição. Existe um conflito negativo de jurisdição quando duas ou mais autoridades pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, declinam, em decisões transitadas em julgado, o poder de conhecer da mesma questão – cf. art. 115.º, n.ºs 1, 2 e 3, este último interpretado a contrario, do Código de Processo Civil (CPC) (De acordo com o art. 209.º, n.º 3, da CRP, a lei determina os casos e as formas em que os tribunais se podem constituir, separada ou conjuntamente, em tribunal de conflitos. Como anotam Gomes Canotilho e Vital Moreira: “Quando o conflito se dê entre tribunais de categorias diversas, então a solução mais razoável consistirá em constituir ad hoc um tribunal de conflitos, formado entre os dois tribunais superiores da respectiva categoria” cf. CRP Anotada, Volume II, 4.ª edição, 2010, p. 533.).
A delimitação das jurisdições, correspondentes aos tribunais judiciais, por um lado, e aos tribunais administrativos e fiscais, por outro lado, implica a apreciação das concernentes áreas de competência, constituindo um pressuposto processual que deve ser apreciado antes da questão (ou questões) de mérito, aferindo-se pela forma como o autor configura a acção, e definindo-se pelo pedido, pela causa de pedir (Para se formular um pedido tem de existir uma causa de pedir, que é o acto ou facto, simples ou complexo (mas sempre concreto), donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer – cf. art. 498.º, n.º 3, do CPC.) e pela natureza das partes.
Há que reflectir, para esse efeito, aos termos em que foi proposta a acção, seja quanto aos seus elementos objectivos – natureza da providência solicitada ou do direito para a qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto de onde teria resultado esse direito, etc. – seja quanto aos seus elementos subjectivos – identidade das partes.(Cf. Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 013/12, de 05-11-2012: e a jurisprudência aí citada (acórdão integralmente publicado em http://www.dgsi.pt/jcon, tal como os restantes que se mencionarem sem referência adicional).) Ou seja, a fixação da competência material do tribunal é resolvida face à petição ou requerimento inicial e tomando em conta, por um lado, a pretensão formulada ou a medida jurisdicional requerida, e, por outro, a relação jurídica ou situação factual descrita nessa peça processual. (Decorre, igualmente, do art. 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22-02): “O âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”. Como anotam Aroso de Almeida e Fernandes Cadilha: “A atribuição de prioridade absoluta ao conhecimento da questão da competência justifica-se pela consideração de que a única questão para que o tribunal incompetente é competente é para apreciar a sua incompetência. (...) Por outro lado, a competência do tribunal deve ser aferida pelos termos da relação jurídico-processual tal como é apresentada em juízo pelo autor, independentemente da idoneidade do meio processual utilizado.” – cf. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição, 2010, p. 125.)
O art. 212.º, n.º 3, da CRP estabelece que: “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Por seu turno, de acordo com o art. 211.º, n.º 1, da CRP: “Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. Consagra-se, na última parte deste preceito constitucional, o princípio da competência genérica ou residual dos tribunais comuns. (Na lei ordinária refere-se que: “São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” - arts. 66.º do CPC, e 18.º, n.º 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13-01 (que vai já na sua 17.ª versão, resultante da Lei n.º 46/2011, de 24-06).)
Louvando-nos nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao disposto no art. 212.º, n.º 3, da CRP, “estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n.º 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art. 4.º)”.( Op. cit, p. 566/567.)
Infere-se do exposto que a atribuição de competência ao tribunal de jurisdição comum pressupõe a inexistência de norma específica que atribua essa competência a uma jurisdição especial para resolver determinado litígio, tal como o autor o configura.(Como explicita Miguel Teixeira de Sousa “[a] competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e competência residual. Pelo primeiro critério cabem-lhes as causas cujo objecto é uma situação regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Pelo segundo, incluem-se na sua competência todas as causas que apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal não judicial ou a tribunal especial” – cf. A competência dos tribunais comuns, 1994, p. 76.)
Considerando a data da instauração da acção em apreço (23-07-2012) há que atender ao estatuído no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – ETAF –, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19-02.(Com as alterações introduzidas pelas Declarações de Rectificação n.ºs 14/2002, de 20-03 e 18/2002, de 12-04, pelas Leis n.ºs 4-A/2003, de 19-02, 107-D/2003, de 31-12, 1/2008, de 14-01, 2/2008, de 14-01, 26/2008, de 27-06, 52/2008, de 28-08, 59/2008, de 11-09, pelo DL n.º 166/2009, de 31-07, pela Lei n.º 55- A/2010, de 31-12, e pela Lei n.º 20/2012, de 14-05.)
O art. 1.º, n.º 1, do ETAF, prescreve que: “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
A competência dos tribunais administrativos, como se salientou, implica dilucidar o que se deve entender por litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. Contrariamente ao regime pretérito – cf. redacção original do ETAF, aprovado pelo DL n.º 129/84, de 27-04 –, em face do novo ETAF, não há que chamar à colação a distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada como critério para a determinação da competência material dos tribunais administrativos (Ensinava Marcelo Caetano que “deve entender-se por gestão pública a actividade da Administração regulada pelo Direito Público e por gestão privada a actividade da Administração que decorra sob a égide do Direito Privado”. Esclarecia o mesmo autor que: “Pode dizer-se que reveste a natureza de gestão pública toda a actividade da Administração que seja regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício ou organize os meios necessários para o efeito” — cf. Manual de Direito Administrativo, II, 10.ª edição, 1994, p. 1222.), centrando-se a delimitação do raio de acção do foro administrativo no conceito de relação jurídica administrativa (e de função administrativa).
Jónatas Machado salienta que “[a] doutrina entende que devem ser consideradas relações jurídico-administrativas as relações interpessoais e interadministrativas em que de um dos lados da relação se encontre uma entidade pública, ou uma entidade privada dotada de prerrogativas de autoridade pública, tendo como objecto a prossecução do interesse público, de acordo com as normas de direito administrativo. Assim entendida, a relação jurídica administrativa pode desdobrar-se num complexo acervo de posições jurídicas substantivas e procedimentais, favoráveis e desfavoráveis, activas e passivas”. (Breves Considerações em torno do âmbito da Justiça Administrativa, in “A Reforma da Justiça Administrativa”, 2005, p. 93.) Por sua vez, o art. 4.º do actual ETAF define o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos (e fiscais), adoptando “um critério misto para a delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, mediante o recurso a uma cláusula geral e a uma enumeração especificada, positiva e negativa, o que é, em si mesmo, uma rotura com o sistema adoptado até então, em que uma cláusula geral era acompanhada de uma enumeração puramente negativa”.(Assim, Jónatas Machado, op. cit., p. 80.)
Concretizando, o conflito negativo de jurisdição, aberto entre o TAF de Sintra e o 3.º Juízo Cível de Oeiras, resultou das decisões diametralmente opostas dos respectivos juízes.
Para o TAF de Sintra, “em causa no presente processo está uma acção de reivindicação cujo objecto é, nos termos do disposto no artigo 1311.º do Código Civil (norma que os autores expressamente invocam), o reconhecimento pelo réu (possuidor) do direito de propriedade dos autores e a consequente condenação do réu a restituir-lhe a parcela de terreno e o imóvel que lhes pertence”, inexistindo no Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) norma que atribua à jurisdição administrativa competência para conhecer das acções de reivindicação, ainda que intentadas contra entidades públicas.
Diversamente, no 3.º Juízo Cível de Oeiras entendeu-se que o objecto do processo se reporta a “questões conexas com negócios jurídicos que cabem na previsão da al. f) do n.º 1 [do art. 4.º] do ETAF: ou seja, a aquisição, por doação, de um imóvel sujeito a normas e actos de direito administrativo, porque destinado à prossecução de um fim público”.
O Ministério Público junto deste Tribunal dos Conflitos emitiu parecer no sentido que: “Nos autos estão em causa questões que emergem da relação jurídica administrativa estabelecida entre o proprietário do terreno e o Estado (Ministério da Educação e Obras Públicas), no qual o terreno foi cedido com uma finalidade pública, que foi a da instalação na localidade, de um estabelecimento integrado na rede de ensino público no âmbito das funções que, no domínio do ensino, competem ao Estado (art. 75.º, n.º 1, da Constituição).
No caso em apreço as questões emergem de uma relação jurídica administrativa e os AA. fundamentam o seu pedido de entrega do imóvel nas normas de direito administrativo que prevêem a reversão de terrenos cedidos para equipamentos de utilização colectiva, com fundamento em utilização para finalidade diversa (arts. 44.º e 45.º do RJUE – Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação). Em face do exposto, somos de parecer que deverá ser julgada competente para a acção a jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos termos do art. 1.º, n.º 1, do ETAF”.
Estatui o art. 4.º do ETAF, no segmento que nos interessa, que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto” (cf. n.º 1): (...) f) “Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”. (“Este normativo, com a redacção que lhe foi introduzida pela Lei n.º 107-D/2003, de 31-12, atribui à jurisdição administrativa competência para apreciar questões relativas a (i) contratos administrativos típicos (a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam especificamente aspectos de natureza substantiva); (ii) contratos atípicos com objecto passível de acto administrativo (que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados através da prática, pela entidade pública contratante, de um acto administrativo unilateral) e de (iii) contratos atípicos com objecto passível de contrato de direito privado que as partes tenham expressa e inequivocamente submetido a um regime substantivo de direito público (cf., entre outros, Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, págs. 38/41, Aroso de Almeida, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, págs. 104/107, e Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, pág. 21)” — cf. Acórdão do Tribunal dos Conflitos n.º 027/12, de 27-02-3013.)
Adverte Carla Amado Gomes que “não pode deixar de observar-se que, no âmbito dos contratos a que alude a alínea f) sempre cumprirá averiguar se a utilização do Direito privado surge a título instrumental relativamente à prossecução da função administrativa, de natureza pública e ponderativa de interesses supra-individuais – sendo aí plenamente justificada a intervenção dos tribunais administrativos –, ou se o Direito privado desempenha um papel principal, co-essencial, na regulação da situação jurídica, desde logo pela sua subtracção ao domínio funcional do núcleo de tarefas de natureza pública – devendo a questão ser apreciada junto da jurisdição comum. No caso dos contratos, a interdependência com procedimentos e vinculações de Direito público pode tornar difícil esta destrinça, registando-se uma eventual maior tendência da jurisdição administrativa para absorver a apreciação de relações não materialmente administrativas”.(O artigo 4.º do ETAF: Um exemplo de “Creeping Jurisdiction?”, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Armando Marques Guedes”, 2004, pp. 102/403.)
Salvo o devido respeito pela opinião em contrário, não se nos oferecem dúvidas que o desenho da causa de pedir e dos pedidos apresentados pelos autores quadram, perfeitamente, no âmbito da acção de reivindicação, contemplada no art. 1311.º do Código Civil (CC).
Na verdade, os autores cingem-se a pedir que sejam declarados como donos e legítimos proprietários do imóvel identificado supra e, em consequência, a condenação do réu a restituir a parcela de terreno e o imóvel (o edifício onde funcionou a Escola EB1 .…………….) em causa, devoluto de pessoas e bens, em bom estado de conservação e em perfeitas condições, bem como as chaves do edifício em que está implantado no referido terreno. Ou seja, a questão a dirimir traduz-se em mera reivindicação de propriedade privada, não obstante uma das partes ter feição pública – o Município de Oeiras – e de ter sido cumulado um pedido indemnizatório pela ocupação ilegítima da propriedade.
Com efeito, a acção de reivindicação, prevista no art. 1311.º do CC, é uma típica manifestação do direito de sequela, visando afirmar o direito de propriedade e pôr fim à situação ou actos que o violem, tendo como primeiro objectivo a declaração de existência do direito e, como escopo ulterior, a sua realização, nela concorrendo dois pedidos: o de reconhecimento do direito e o de restituição da coisa, objecto desse direito. (Salientam Antunes Varela e Pires de Lima: “A acção de reivindicação prevista neste artigo [art. 1311.º] é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela” - cf. Código Civil Anotado, 2.ª edição, 1987, Volume III, pág. 112.)
Compete aos autores, nesta acção, provar que são proprietários, constituindo o facto jurídico de que emerge a propriedade a causa de pedir da acção de reivindicação, tendo eles de alegar, como o fizeram, que a coisa se encontra em poder do réu. Destarte, para a procedência da acção tornar-se-á necessária a comprovação, por um lado, de um requisito subjectivo, que consiste em serem os autores os proprietários da coisa reivindicada, e, por outro, de um requisito objectivo, consistente na identidade entre a coisa reivindicada e a (ilegitimamente) possuída pelo réu, cujo ónus da prova incumbe aos autores/reivindicantes, por serem factos constitutivos do seu direito – art. 342.º, n.º 1, do CC. Comprovada a propriedade do imóvel e que este se encontra detido por terceiro, a sua entrega ao reivindicante só pode ser contrariada com base em situação jurídica (obrigacional ou real) que legitime a recusa de restituição – cf. 1311.º, n.º 2, do CC –, i.e., mediante a alegação e prova, pelo demandado – por via de excepção –, de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito e integradores de qualquer relação obrigacional ou real que o obstaculizem – cf. art. 342.º, n.º 2, do CC.
Assim sendo, contrariamente ao decido pelo Tribunal Judicial de Oeiras e ao sustentado pelo Ministério Público junto deste tribunal, no caso em apreço as questões decidendas não emergem de uma relação jurídica administrativa, nem os autores fundamentam o seu pedido de entrega do imóvel em quaisquer normas de direito administrativo: a alusão feita pelos autores, na sua petição inicial, aos normativos que prevêem a reversão de terrenos cedidos para equipamentos de utilização colectiva, com fundamento em utilização para finalidade diversa – arts. 44.º e 45.º do RJUE – é meramente incidental e não tem qualquer autonomia dogmática para efeitos de transmutar o pedido privatístico de reconhecimento do direito de propriedade numa qualquer relação jurídica de cariz publicista e de natureza administrativa.
Ou seja, conforme se pode verificar pelos pedidos formulados e da causa de pedir que os sustenta, os autores apenas aludem a um contrato de natureza exclusivamente civil e privada, celebrado entre o seu pai e o (então) Ministério da Educação e das Obras Públicas, sem qualquer característica de contrato administrativo, e sem qualquer sujeição a normas de direito administrativo.
Ante o(s) pedido(s) formulado(s), conectado(s) directamente com a acção de reivindicação, prevista no art. 1311.º do CC, acaso existisse a eventual necessidade de debate de qualquer vicissitude administrativa, por força da contestação que o réu apresentou, tal configuraria – se porventura constituísse um pressuposto necessário da decisão de mérito da causa –, uma mera questão prejudicial, em que haveria de atender ao vertido no art. 97.º, n.º 1, do CPC, não sendo essa, aliás, a situação.
Em, sentido análogo ao aqui defendido, podem-se consultar, entre outros, o Acórdão do STJ, de 13-03-2008 (No ponto 5, do respectivo sumário expendeu-se que: “Os tribunais judiciais – jurisdição comum ou residual – são os competentes para conhecer uma acção de reivindicação de um terreno privado intentada contra um Município, fundada em responsabilidade aquiliana, não consistindo o ilícito na violação de acto ou norma de direito administrativo”.), Proc. n.º 08A391, e o Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 19-01-2012, Proc. n.º 014/11(No sumário deste aresto consta: “I. É da competência dos tribunais judiciais, e não dos administrativos, a acção declarativa intentada contra o Estado em que se pede, em súmula, o reconhecimento do direito de propriedade do Autor sobre um prédio e anulação do respectivo registo a favor do Estado. II. A tanto não obsta que, na petição da acção, se invoque que o Estado funda o seu pretenso direito de propriedade numa relação expropriativa cuja existência o autor nega”).
*
Resumindo: versando o objecto do litígio sobre uma questão de reivindicação de propriedade privada, enquadrável no art. 1311.º do CC, não é o mesmo subsumível em qualquer das hipóteses previstas no art. 4.º, n.º 1, al. f), do ETAF, apesar do réu ser um Município e dos autores fazerem alusão ao direito de reversão previsto no art. 45.º do RJUE.
Conclui-se, assim, que incumbe ao foro comum a resolução da acção sub judice, deferindo-se a respectiva competência material ao 3.º Juízo de Competência Cível de Oeiras.

Decisão
Termos em que acordam os juízes do Tribunal dos Conflitos em resolver o conflito negativo de jurisdição, considerando que a mesma cabe aos tribunais comuns e atribuindo ao 3.º Juízo Cível de Oeiras a competência material para os ulteriores termos da acção.
Sem custas, ex vi do art. 96.º do Decreto n.º 19 243, de 16-01-1931.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2013. – António Manuel Machado Moreira Alves (relator) – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Paulo Arminio de Oliveira e Sá.