Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03/20
Data do Acordão:10/18/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
TRIBUNAIS JUDICIAIS
DIREITO DE PROPRIEDADE
ESCRITURA PÚBLICA
NOTÁRIO
Sumário:I - Incumbe aos Tribunais Judiciais o julgamento de uma acção de cuja petição se verifica que os pedidos formulados pelo autor revestem natureza do domínio de relações de direito privado, nomeadamente, um pedido de indemnização, para cujo conhecimento são competentes os tribunais judiciais.
II – Tal é o caso da responsabilidade civil do notário que está sujeita ao regime de direito privado e será responsabilidade extracontratual quando decorra da violação dos princípios ou deveres da função notarial.
Nº Convencional:JSTA000P28317
Nº do Documento:SAC2021101803
Data de Entrada:02/12/2020
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE BRAGA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE GUIMARÃES – JUIZ 5 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
AUTOR: A………....
RÉU: B………… E OUTROS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 3/20


Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A……………., identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Cível de Guimarães, acção contra C…………….., D………………, E……………… e B……………., formulando os seguintes pedidos:
a) Ser reconhecido o direito de propriedade a favor da herança indivisa aberta por óbito dos pais do A., sobre os prédios que identifica;
b) Ser declarada falsa e de nenhum efeito as procurações com termo de autenticação datadas de 16 de Agosto de 2016, pretensamente outorgadas pelo A. a favor do primeiro Réu, autenticada pela terceira Ré;
c) Ser declarada nula a escritura de venda dos prédios, outorgada em 19 de Agosto de 2016 no cartório do quarto Réu, por manifesta falsidade das procurações que lhe deram origem, ou se assim não se entender, por simulação do primeiro e da segunda RR;
d) Ser ordenado o cancelamento do registo dos identificados prédios a favor da segunda Ré na Conservatória do Registo Predial de Fafe;
e) Serem os RR. condenados solidariamente a pagar ao A. a indemnização de €22.000,00 a título de danos morais e patrimoniais, acrescidos de juro a contar desde a data da citação;
f) Serem os RR. condenados no pagamento das custas.

Em síntese, alega que o primeiro Réu, na qualidade de procurador dos seus quatro irmãos, entre os quais o A., outorgou escritura pública a 19.08.2016, no Cartório Notarial de Ponte de Lima perante o quarto Réu, notário de profissão, na qual declarou em nome da herança aberta por óbito dos seus pais vender à segunda Ré vários prédios pertencentes à herança, pelo valor global de €33.783,92. A procuração atribuída ao A., autenticada pela terceira Ré, exibida pelo primeiro Réu naquela escritura contém assinatura grosseiramente falsa do Autor que nunca a outorgou nem esteve na presença da terceira Ré e a procuração com assinatura a rogo de F………… foi feita sem reconhecimento e sem a identificação da rogada [G……………], o que constitui uma irregularidade que não devia ser ignorada pelo quarto Réu que, assim, agiu com negligência. Mais alega que se tratou de um negócio simulado entre o primeiro e a segunda RR. para prejudicar os restantes herdeiros.

Em 18.06.2019, o Juízo Central Cível de Guimarães - Juiz 5, julgou-se incompetente em razão da matéria para apreciação da acção intentada (fls. 280 a 284).
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (TAF de Braga), para o qual foram os autos remetidos a requerimento do A., decidiu em 28.10.2019 (fls. 290 a 292) julgar aquele Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do objecto dos autos.


Suscitada a resolução do conflito, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
As partes, notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, nada disseram.

A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a relação jurídica subjacente à acção assume natureza civil e privada e, portanto, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa tal como é delimitado no art. 4º do ETAF.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre Tribunal da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Guimarães e o TAF de Braga.
Considerou o Juízo Central Cível de Guimarães que «no caso vertente, o Autor demanda o Réu B………., notário de profissão, pedindo a sua condenação solidária com os demais no pagamento de indemnização de € 22.000,00, sustentando que este omitiu o dever de cuidado profissional por não verificar as invalidades de procurações usadas para celebrar perante si, no dia 19.08.2016, escritura de compra e venda» e que «à data da publicação dos Decretos-Leis 26/2004 e 27/2004, ambos de 4 de Fevereiro, que aprovaram, respectivamente, o Estatuto do Notariado e o Estatuto da Ordem dos Notários, encontrava-se estabilizada jurisprudência no sentido de que a realização de escritura pública de compra e venda por um notário, actuando no exercício de uma função do Estado – a de prosseguir o interesse público de dar forma legal e conferir autenticidade aos actos jurídicos extrajudiciais -, constitui um acto de gestão pública e, consequentemente, são os tribunais administrativos competentes para julgar a acção de declaração de nulidade da venda, cancelamento de registos e indemnização por responsabilidade civil resultantes de omissão de verificação de pressupostos necessários à prática do acto».
Mais entendeu que com a reforma levada a cabo pelos DL nºs 26/2004 e 27/2004, «foi consagrado o denominado sistema ou modelo do notariado latino, em que o notário é o profissional de direito encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim e conferindo-lhes autenticidade. Um jurista ao serviço das relações jurídico-privadas mas também, de forma incindível, um oficial público que recebe uma delegação da autoridade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública» pelo que «o exercício da vertente pública da função notarial coloca a actividade dos notários e seus auxiliares sob a alçada do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro” e, assim, concluiu que “a actividade notarial exercida pelo Réu B……….., de que, na versão apresentada pelo Autor, emerge o direito indemnizatório deste, constitui um acto de “gestão pública”, gerador de responsabilidade civil extracontratual do Estado, da competência do foro administrativo, nos termos do disposto no art.º 4º, n.º 1, al. h) do ETAF”.


Remetido o processo ao TAF de Braga este, por sua vez, também se considerou incompetente em razão da matéria por, em face dos articulados, entender ser o litígio em causa referente à venda simulada de bens imóveis e, portanto, ser de natureza privada e não ser uma situação que consubstancie uma qualquer relação juridico-administrativa. Acrescentou que o pretendido pelo A. é a declaração de nulidade da escritura de compra e venda celebrada entre o 1º e 2º RR., porque entende que foi simulada, invocando ainda que as procurações que deram poder ao 1º R. para realizar a escritura são falsas, que uma das procurações foi feita a rogo sem assinatura da rogada, o que configura uma irregularidade que o 4º R., notário, deveria ter verificado e que pede, ainda, a condenação dos RR. numa indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que teve por causa deste negócio simulado entre os dois 1ºs RR. Por isso, o TAF de Braga concluiu não estar perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual e, se tal acontecesse, apenas seria competente para apurar a responsabilidade do 4º R. e não para apreciar os restantes pedidos formulados na petição inicial.

Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212º, nº 3, da CRP e 1º, nº 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do «âmbito da jurisdição» mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 «A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo».
Analisada a petição verifica-se que os pedidos formulados pelo A nas alíneas a) a d) revestem natureza do domínio de relações de direito privado para cujo conhecimento são competentes os tribunais judiciais.
É quanto ao pedido da alínea e) «serem os RR condenados solidariamente a pagar ao A. a indemnização de 22.000,00€ a título de danos patrimoniais» que se levantaram as questões de competência material por também ser dirigido contra o 4º Réu na qualidade de notário.


Dispõe o art. 1º do Estatuto do Notariado (aprovado pelo DL n.º 26/2004, de 04/2, e subsequentes alterações): «1 - O notário é o jurista a cujos documentos escritos, elaborados no exercício da sua função, é conferida fé pública. 2 - O notário é, simultaneamente, um oficial público que confere autenticidade aos documentos e assegura o seu arquivamento e um profissional liberal que atua de forma independente, imparcial e por livre escolha dos interessados. 3 - A natureza pública e privada da função notarial é incindível.».
O mesmo Estatuto estipula no art. 10º que o «notário exerce as suas funções em nome próprio e sob sua responsabilidade, com respeito pelos princípios da legalidade, autonomia, imparcialidade, exclusividade e livre escolha» e no art. 12º que «exerce as suas funções com independência, quer em relação ao Estado quer a quaisquer interesses particulares». Por sua vez no art. 23º, nº 1, al. m) prescreve-se que constitui dever do notário «Contratar e manter seguro de responsabilidade civil profissional de montante não inferior a (euro) 100 000».
Segundo José Alberto Vieira, «Enquanto oficial público, o notário é o depositário da fé pública, imprimindo autenticidade aos actos jurídicos em que intervém, o que se projecta depois ao nível da força probatória dos documentos que corporizam esses actos (força probatória plena» e que: «Como profissional liberal, o notário exerce a sua profissão de modo autónomo e independente do Estado e de quaisquer outras entidades; simultaneamente, suporta integralmente os custos da sua actividade» (in Direito do Notariado em Tratado de Direito Administrativo Especial, coord. de Paulo Otero e Pedro Gonçalves, vol II, Almedina, 2009, pág. 136).
Em sede de responsabilidade explica aquele Autor, «numa lógica de notariado privado, em que o notário é um profissional liberal, não se suscita qualquer dúvida de que existe um princípio de responsabilidade do notário pelo exercício da função notarial, como acontece para os advogados e solicitadores». Acrescenta que: «A privatização da função notarial retirou os notários do seio da administração pública. Eles são profissionais liberais, pessoas singulares de Direito privado, que comunicam a fé pública com a sua intervenção em documentos. Não exercem, contudo, uma função administrativa do Estado, nem lhes é conferido qualquer poder público no desempenho da actividade notarial.
(...) O notariado não pertence mais à actividade administrativa do Estado.
Fica, assim, afastada a aplicação do regime especial da responsabilidade extracontratual do Estado e pessoas colectivas públicas, cujos requisitos de aplicação não se verificam quanto aos notários privados» (obra cit., págs. 160-161).
Assim, podemos concluir que a responsabilidade civil do notário está sujeita ao regime de direito privado e será responsabilidade extracontratual quando decorra da violação dos princípios ou deveres da função notarial. O regime da responsabilidade extracontratual do Estado e pessoas colectivas públicas não lhe é aplicável.
Termos em que, o pedido formulado contra o quarto R. não se inscreve no art. 4º, nº 1, al. h) do ETAF segundo o qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a «Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público».


Veja-se também neste sentido os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 08.07.2015, Proc. 543/13.6TBPNF.P1, do Tribunal Central Administrativo Sul, de 02.07.2020, Proc. 2200/15.0BEALM e do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.09.2020. Proc. 1916/17.0T8LSB.L1-2.
São indubitável e igualmente da competência dos tribunais judiciais a apreciação dos pedidos formulados quanto aos demais Réus. São pedidos dirigidos a privados e que não emergem de uma relação jurídica administrativa mas antes de uma relação regulada pelo direito civil.
Deste modo, não se inscrevendo a acção em nenhuma das alíneas do nº 1 do art. 4º, do ETAF, que permitam submeter o litígio ao âmbito da jurisdição administrativa, e sendo da competência dos tribunais judiciais conhecer e decidir as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, conclui-se que a competência material para conhecer da presente acção cabe à jurisdição comum.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Guimarães.
Sem custas.

Lisboa, 18 de Outubro de 2021. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.