Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:039/13
Data do Acordão:11/05/2013
Tribunal:CONFLITOS
Relator:RUI BOTELHO
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
CONCESSIONÁRIO
ABASTECIMENTO DE ÁGUA
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS TRIBUTÁRIOS
Sumário:Compete aos tribunais tributários o conhecimento de acção em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende cobrar um "preço fixo" e consumos de água respeitantes a um contador totalizador que precede os das fracções e das partes comuns de um condomínio, por estarem em causa tarifas, taxas ou encargos resultantes de exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, relação jurídica que é regulada por normas de direito público tributário.
Nº Convencional:JSTA00068448
Nº do Documento:SAC20131105039
Data de Entrada:05/30/2013
Recorrente:A..., S.A. NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE FAFE E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:PRE CONFLITO
Objecto:AC TRG
Decisão:NEGA PROVIMENTO / JULGA COMPETENTE OS TRIBUNAIS TRIBUTÁRIOS
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO NEGATIVO - JURISDIÇÃO
Legislação Nacional: L 23/96 DE 1996/07/23
ETAF02 ART4 N1 H
DL 379/93 DE 1993/11/05
Jurisprudência Nacional:AC TCF 30/13 DE 2013/09/26; AC TCF 17/10 DE 2010/09/11; AC TCF 14/06 DE 2006/09/26; AC STAPLENO PROC15/12 DE 2013/04/10
Aditamento:
Texto Integral: I Relatório

A………………….., S.A. intentou junto do Tribunal Judicial de Fafe a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias contra Condomínio do prédio sito na Rua …..…, n.° ……….., Fafe e contra B……………, Lda, peticionando a quantia de € 1.778,78 (mil setecentos e setenta e oito euros e setenta e oito cêntimos), acrescida dos juros moratórios vencidos e os vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alegou, para o efeito, que no âmbito da sua actividade comercial - por concessão da exploração do sistema de captação, tratamento e distribuição de água ao concelho de Fafe - efectuou um contrato com o R. Condomínio, um contrato de fornecimento de água, tendo sido prestados aos RR. os serviços contratados, sendo que findo o prazo de vencimento o pagamento devido não foi efectuado.
O réu condomínio contestou o pedido referindo, resumidamente, que a dívida estava parcialmente prescrita, que ao impor nos prédios em propriedade horizontal um totalizador abusa do direito e que a taxa referente a esse totalizador (é o respectivo montante que exclusivamente está em causa) é nula.
O Tribunal Judicial de Fafe, por sentença datada de 3.5.2012, declarou-se incompetente referindo o seguinte:
“A competência do Tribunal afere-se em função da relação jurídica objecto do litígio, tal como está configurada pelo autor, atendendo à causa de pedir e respectivo pedido. De acordo com o art.° 66.° do CPC o Tribunal comum só não será competente em razão da matéria, se a apreciação desta for atribuída pela lei a uma outra ordem de tribunais (vd. art° 77.° n°1 al. a) da LOFTJ).
- Atento o disposto no art. 3º da Constituição da Republica Portuguesa compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Na lei ordinária o art.° 4.° do ETAF, aprovado pelo Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro, consagra o objecto dos litígios que devem ser submetidos aos tribunais administrativos e fiscais (“reclamando”, assim, nessas matérias a respectiva competência).
A situação em apreço reporta-se a serviços contratados de abastecimentos de água e saneamento prestados pela requerente ao requerido.
Como é sabido as autarquias dispõem de atribuições no âmbito do ambiente e saneamento básico (art° 13.° nº 1 da Lei 159/99, de 14/09).
Sendo que de acordo com o art.° 26.° da Lei 159/99, de 14/09, é da competência dos órgãos municipais o planeamento, a gestão de equipamentos e a realização de investimentos nos seguintes domínios:
í) Sistemas municipais de abastecimento de água.
ii) Sistemas municipais de drenagem e tratamentos de águas residuais urbanas.
iii) Sistemas municipais de limpeza pública e de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos.
Por contrato de concessão podem os órgãos municipais se socorrer de empresas privadas.
O concedente mantém a titularidade dos direitos e poderes relativos à organização e gestão do serviço público concedido, como o poder de regulamentar e fiscalizar a gestão do concessionário, aplicando-se aqui, no essencial, os princípios da tutela administrativa. O serviço público concedido nunca deixa, pois, de ser uma atribuição e um instrumento da entidade concedente, que continua dona do serviço, sendo o concessionário a entidade que recebe o encargo de geri-lo, por sua conta e risco (Prof. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, pp. 1081 e ss.).
Pelo que, e de acordo com o Ac do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 22/2/2011, Proc° 126982092YIPRT G1, disponível no site www.dgsi.pt com o qual concordamos e cuja posição seguimos, o conflito que opõe a empresa concessionária fornecedora do serviço público de abastecimento de água e o réu, utente ou consumidor ao qual o serviço público aqui em causa se destina, surgiu no âmbito de uma relação jurídica administrativa, cabendo a respectiva apreciação e decisão aos tribunais administrativos, conforme o art.° 1º do ETAF.
O tribunal judicial é materialmente incompetente para conhecer da acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias na qual a Autora, concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de distribuição de água pede a condenação do Réu no pagamento de quantias relativas a serviços de abastecimento de água e saneamento.
A requerente ao fixar, liquidar e cobrar tarifas ou taxas aos particulares no quadro da sua actividade de Concessionária está a agir no exercício de poderes administrativos.
Pelo que a jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação é a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais (hoc sensu, vide Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 9/11/2010, proc° 017/10).
O que determina a incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial de Fafe”.
Interposto recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, este, por acórdão de 22.1.2013, confirmou o decidido.
Deste acórdão a autora interpôs recurso para o Tribunal dos Conflitos concluindo assim a sua alegação:
1- Vem o presente recurso interposto do aliás douto acórdão de fls..., datada de 23 de Janeiro de 2012, através da qual se decidiu julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta e consequentemente declarar o Tribunal Judicial de Fafe materialmente incompetente para julgar a acção que a ora Recorrente intentou contra o ora Recorrido, absolvendo os aí Réus da instância.
2- Sustenta tal decisão que é “da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e não dos Tribunais Judiciais, a preparação e julgamento de um litígio entre um particular consumidor de água e uma empresa concessionária de um serviço público próprio de um Município ao abrigo de um contrato administrativo celebrado entre ela e a autarquia no exercício da sua actividade de gestão administrativa para a prática de actos de utilidade pública e interesse colectivo, impróprios de relações de natureza tipicamente privada, como é o sistema multimunicipal de contínuo abastecimento de água e de saneamento “, sustentando tal decisão no argumento de que “a causa de pedir da acção desenha-se pela pratica de actos característicos da actividade administrativa” (apesar de estar em causa apenas uma aecopec) e que, portanto, tratando-se de “questões suscitadas no âmbito do referido contrato (...) não pertence aos tribunais judiciais, mas, essencialmente nos termos dos artigos 178°, n.°1 e n.º2, al.s g) e h) do CPA e dos artigos 1 e 4 n°1 al. f), do ETAF, aos tribunais administrativos”.
3- Porém a relação contratual em causa nestes autos é uma relação jurídica de direito privado, no âmbito de um contrato de prestação de serviços (abastecimento de água e saneamento), com obrigações emergentes desse mesmo contrato.
4- A Recorrente não actua revestida de um poder público, não tendo as partes submetido a execução do contrato em causa a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 4°, n° 1, alínea f, a contrario, do ETAF).
5- A Recorrente não impõe taxas, nem tarifas, antes presta serviços, por força de um contrato celebrado com o recorrido, cuja contrapartida se intitula de preço, nos termos dos Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água ao Concelho de Fafe e do Contrato de Concessão celebrado entre a Autora e o município de Fafe, regulamento esse que impõe as referidas taxas e tarifas, bem como outras regras de conduta, seja à recorrente, seja ao recorrido.
6- No caso em apreço não está em causa a competência para conhecer das questões relativas à validade de regulamentos administrativos ou de contratos administrativos, mas sim da competência para conhecer das questões relativas à validade do contrato celebrado entre a ora Recorrente e o ora Recorrido e da execução e do seu cumprimento pelos outorgantes, o qual é uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado.
7- Nesta parte, em que a recorrente se limita a fornecer bens ao Recorrido, tendo este como obrigação pagar o preço correspondente e os acréscimos legais e regulamentares, não está em causa qualquer relação jurídico administrativa, nem o contrato celebrado entre as partes tem natureza de contrato administrativo, logo à partida porque a relação em causa se destina a prover as necessidades dos recorridos e não quaisquer fins de “interesse público”.
8- Apesar da Recorrente se tratar de uma empresa concessionária de um serviço público essencial, para determinar a natureza pública ou privada das relações jurídicas que esta estabelece, será necessário determinar em concreto se o fim visado é de interesse público ou geral, sendo este corolário exibido de forma plana pela doutrina existente.
9- O regime substantivo previsto na Lei n.° 23/96 de 26 de Julho, que regula o fornecimento e prestação de “serviços públicos essenciais”, apesar de conter normas imperativas de direito público é um regime substantivo de direito privado, enformando não só a relação entre recorrente e recorrido, mas igualmente a actividade das distribuidoras de gás, electricidade, operadoras de serviços de transmissão de dados ou serviços postais.
10- A expressão “serviços públicos essenciais”, prevista na Lei n.° 23/96, de 26 de Julho não tem correspondência com a definição de interesse público.
11- Ao invés, ao relacionar a actividade da Recorrente e os serviços que presta ao Recorrido na supra identificada lei, o legislador pretendeu submeter todos os contratos dessas categorias a um regime idêntico, que é de direito civil.
12- É certo que, no tocante à criação e à fixação de taxas pela prestação de um serviço público, correspondendo ao exercício de poderes públicos, apenas a jurisdição administrativa se pode pronunciar, mas tal questão não tem qualquer correspondência com o objecto do litígio, tal qual foi conformado pela Recorrente na petição inicial, uma vez que este se destina unicamente a obter a cobrança da contra- prestação que lhe é devida pela Recorrida pelo fornecimento de água e saneamento e respectivos acréscimos regulamentar e legalmente impostos.
13- A continuação, resulta que o contrato celebrado entre a Recorrente e os Recorridos não é enquadrável no artigo 178º do CPA, não podendo ser classificado como um contrato administrativo, não se tratando, pois, de um contrato de “fornecimento contínuo e de utilidade pública imediata”, nas asserções previstas nas alíneas g) e do n.° 2 do mesmo artigo.
14- Isto por que aqueles contratos de “fornecimento contínuo e de utilidade pública imediata” são os que se destinam ao suprimento do interesse público e, portanto, ao prosseguimento dos fins visados (atribuições) por determinado entre público, no âmbito das suas competências.
15- Em suma, pretendendo discutir a validade das normas (legais, regulamentares ou contratuais) de natureza administrativa ou fiscal que balizam a sua relação com a Recorrente, terá o Réu que se socorrer dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
16- Estando em causa a exigência do cumprimento das obrigações sinalagmáticas decorrentes do contrato e da sua execução e a cobrança dos acréscimos legais, os tribunais competentes são os Tribunais judiciais, in casu o Tribunal Judicial de Fafe, por força do disposto no artigo 66° do CPC.
17- A decisão proferida no Acórdão da Relação de Guimarães proferido no processo 12698209.2YIPRT.Gl (22.2.2008) e a decisão recorrida estão em directa oposição com o sentido da decisão proferida no processo n.° 103108.8TBFAF.G1, já transitado, e do acórdão proferido no processo 103543/08.8YIPRT (23.10.2012), todos do Tribunal da Relação de Guimarães.
18- Nesta medida, é forçoso concluir que ao julgar procedente a excepção de incompetência material andou mal o Tribunal da Relação de Guimarães, fazendo uma errada interpretação das disposições conjugadas do artigo 178º n.° 1 e 2 g) e h) do CPA, então em vigor, e ainda dos artigos 1° n.° 1 e 4° n.° 1 alínea 1) do ETAF, violando assim o disposto no artigo 66° do CPC e o artigo 24° e 26° da LOFTJ.
19- Finalmente, em resolução definitiva do pré-conflito de competência, deve o Tribunal dos Conflitos fixar, com força de caso julgado material que compete aos tribunais judiciais a preparação e julgamento das acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de fornecimento de água canalizada para consumo público e saneamento, celebrados entre um ente privado, concessionário do respectivo serviço público, e outro particular.
Nestes termos e nos que doutamente V. Exas. suprirão, deve o presente recurso ser julgado provido e procedente, decidindo o pré-conflito existente no sentido propugnado nas conclusões.”

O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal emitiu o seguinte parecer.
1. Como é por demais sabido aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídico administrativas e nos termos do art. 212° da CRP - “Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídico e administrativas e fiscais”.
E Vieira de Andrade in “ A Justiça Administrativa, 9 edição, págs. 55 escreve - “Esta questão sobre o que se entende por “relação jurídica administrativa sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito Constitucional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
Como também se escreveu no Ac. do Tribunal de Conflitos de 9.12.08 Proc. 017/08 - “Por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas”.
Como ensina o Prof. Freitas do Amaral (In “Lições de Direito Administrativo”, edição policopiada, p. 423.), a “relação jurídica de direito administrativo” é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração, perante os particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos, aos particulares, perante a administração”.
3. Por sua vez, os tribunais judiciais não podem conhecer dos litígios que envolvem a Administração Pública enquanto poder administrativo - isto é, dos litígios em que esteja em causa a actuação da Administração Pública no exercício de uma actividade de gestão pública (Freitas do Amaral - Direito Administrativo - II - 1988 - 12).
Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, p. 815), a qualificação como “relações jurídicas administrativas ou fiscais” «transporta duas dimensões caracterizadoras: as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público; as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.»
Seguindo, ainda a definição de VIEIRA DE ANDRADE (A Justiça Administrativa, Lições, 2000, p. 79) a relação jurídica administrativa é «aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».
A actual definição legal, na esteira da lei fundamental, deixou de estribar a delimitação da jurisdição administrativa na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada, deslocando o pólo aglutinador para o conceito de relação jurídica administrativa e de função administrativa, em que avulta a realização de um interesse público levado a cabo através do exercício de um poder público e, portanto, de autoridade, seja por uma entidade pública, seja por uma entidade privada, em que esta actua no uso de prerrogativas próprias daquele poder ou no âmbito de uma actividade regulada por normas do direito administrativo ou fiscal.
4. O art. 4.° do ETAF delimita o âmbito da jurisdição administrativa, ganhando particular relevo para o que nos interessa, de entre as várias alíneas do n.° l, a alínea f) que dispõe - “ Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público”.
5. Como se escreveu em Ac. deste Tribunal de Conflitos (Ac. 013/12 de 8.11.2012) - “É pacífico o entendimento de que o pressuposto processual da competência se determina em função da acção proposta, tanto na vertente objectiva, atinente ao pedido e à causa de pedir, como na subjectiva, respeitante às partes (entre muitos outros, cfr. os Ac. do Tribunal de Conflitos de 28-09-10, 20-09-11 e 10-07-12, www.dgsi.pt), importando essencialmente para o caso ter em consideração a relação jurídica invocada.
Tal preceito confere à jurisdição administrativa a competência para apreciar questões relativas a contratos administrativos típicos (a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam especificamente aspectos de natureza substantiva), contratos atípicos com objecto passível de acto administrativo (que determinem a produção de efeitos que também poderiam ser determinados através da prática, pela entidade pública contratante, de um acto administrativo unilateral) e de contratos atípicos com objecto passível de contrato de direito privado que as partes tenham expressa e inequivocamente submetido a um regime substantivo de direito público (cfr., entre outros, Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, págs. 38/41, Aroso de Almeida O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, págs. 104/107, e Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. 1, pág. 21).
Ao invés do que se estabelecia na redacção original do ETAF (aprovado pelo DL n.° 129/84, de 27-4), em que a competência da jurisdição administrativa era fundamentalmente definida em função do binómio gestão pública/gestão privada, em face da nova lei, a doutrina e a jurisprudência vêm destacando a utilização do conceito de relação jurídica administrativa (vide, entre outros, os Ac. do STJ de 12-2-07 e de 8-5-07 e o Ac. do STA de 14-1-10, www.dgsi.pt).
Relação jurídica administrativa “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração“ (Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, pág. 439), sendo pacífico que pelo menos um dos sujeitos tem de actuar nas vestes de autoridade pública, investido de ius imperium, com vista à realização do interesse público (cfr. José Eduardo Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, pág. 239).
6. Foi ao abrigo de um contrato de concessão, de cunho claramente administrativo, que a concessionária, ora autora, agindo em substituição do Município de Fafe, passou a gerir o sistema municipal de abastecimento de água aos munícipes, sendo que a titularidade dos direitos e poderes relativos aquela gestão continua a pertencer ao Município de Fafe.
Assim, não podemos deixar de acompanhar os fundamentos do Ac. recorrido e, por isso, somos de parecer que a competência deve ser atribuída aos Tribunais Administrativos, declarando-se improcedente o recurso.”

Sem vistos, mas com distribuição prévia do projecto de acórdão, cumpre decidir.

II Factos
No dizer do acórdão recorrido “Os factos com interesse para a apreciação do recurso sub judice são os narrados no relatório supra e ainda os constantes dos documentos juntos aos autos, concretamente: “Contrato de Concessão da Exploração do Sistema de Captação, Tratamento e Distribuição de Água do Concelho de Fafe” e “Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água ao Concelho de Fafe”, bem como as facturas, onde se discriminam; consumo de água, tarifa de disponibilidade, taxa de RSU (Município de Fafe), taxa de saneamento (M. Fafe), taxa de recursos hídricos/água/saneamento”.

III Direito
1. O presente recurso foi interposto nos termos do art. 107º, n.º 2, do CPC.
É ponto assente que a competência (ou jurisdição) de um tribunal se determina pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e esclarecida pela causa de pedir, isto é, pelos objectivos com ela prosseguidos (acórdão do Tribunal dos Conflitos de 21.10.04 proferido no Conflito 8/04).
Como se vê da petição inicial a autora, enquanto concessionária do serviço municipal de abastecimento de água à população do Município de Fafe, intentou no tribunal judicial uma acção visando o recebimento de uma determinada quantia resultante do incumprimento de um contrato de fornecimento de água, designadamente a falta de pagamento de um contador totalizador e consumos de água, celebrado com o réu condomínio.
Não se questiona que a autora seja concessionária do “Serviço Público de Abastecimento de Água no Concelho de Fafe” (artigos 1/3 da petição e 28 da contestação) e que, portanto, nessa medida, a autora actue em substituição do município e munida dos poderes que lhe estão atribuídos nessa área (conf. o art. 6º do DL 379/93, de 5.11).
2. De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 211º da CRP, (Idêntica redacção tem n.º 1 do art. 18º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13.1 e o art. 66º do CPC.) "Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais" e nos termos do art. 212º, n.º 3, (No mesmo sentido o art. 1º, n.º 1, do ETAF.) "Compete aos tribunais administrativos e fiscais o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas". O conceito de relação jurídica administrativa é, assim, erigido, tanto pela Constituição como pela lei ordinária, como operador nuclear da repartição de jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais judiciais. O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal encontra-se no art. 4º do ETAF (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19.2, alterada pela Lei n.º 10/D/2003, de 31.12) onde se diz que compete a esses tribunais “a apreciação de litígios que tenham por objecto” as situações a seguir enunciadas, sendo que a decisão recorrida identificou a alínea f) (Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público) como suporte da atribuição da competência à jurisdição administrativa.
Por outro lado, numa situação absolutamente idêntica, este Tribunal dos Conflitos, no acórdão de 26.9.13 proferido no Conflito n.º 30/13, identificou igualmente a alínea d) do n.º 1 desse mesmo preceito que alude à “Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos”.
No caso em apreço e de acordo com o n.º 2 do art. 13º do já citado DL 379/93, o concessionário, a autora in casu, “precedendo aprovação pelo concedente, tem direito a fixar, liquidar e cobrar uma taxa aos utentes, bem como a estabelecer o regime de utilização …”, o que ela fez, o que evidencia, com toda a clareza, a existência de uma relação jurídico-administrativa entre si e os consumidores de água da rede pública, por estar em causa a realização do interesse público mediante a utilização de um poder público.
Como se assinala naquele aresto, “Resta por último, determinar, no seio da categoria dos tribunais administrativos e fiscais, qual o concretamente competente para a acção.
Ora, atendendo a que este litígio assenta na exigência do pagamento de consumos de água, e demais encargos relativos à disponibilização dum contador totalizador, a questão suscitada reveste uma natureza fiscal entendendo-se como tal, "todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas", conforme se decidiu no acórdão de 9/11/2010, proferido no conflito n° 17/10, e que seguiu a posição já antes assumida no acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 26/09/2006, Processo n.º 14/06.
Diga-se ainda que o Pleno da Secção do Contencioso Tributário já se pronunciou sobre esta questão aceitando esta competência, conforme decorre do acórdão de 10/4/2013, proferido no processo n.° 15/12, onde se decidiu que:
"No domínio da vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n° 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n° 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes do abastecimento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que o termo "preços" utilizado naquela Lei equivale ao conceito de tarifas usado nas anteriores Leis das Finanças Locais, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal ".
No mesmo sentido pode ver-se, igualmente, o Acórdão deste Tribunal de 25.6.13, proferido no recurso 33/13.

IV Decisão
Nos termos e com os fundamentos expostos acordam em julgar improcedente o recurso, declarando-se competentes os tribunais tributários (art. 49º, n.º1, c), do ETAF) para conhecer da presente acção.

Sem custas.

Lisboa, 5 de Novembro de 2013. – Rui Manuel Pires Ferreira Botelho (relator) – Raul Eduardo do Vale Raposo Borges – Jorge Artur Madeira dos Santos – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – António Leonês Dantas.