Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/15
Data do Acordão:05/07/2015
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DO CÉU NEVES
Descritores:INTERVENÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO.
CPC.
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P18988
Nº do Documento:SAC2015050702
Data de Entrada:01/15/2015
Recorrente:O MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE AMARES E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos

1. A Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Vagos, C.R.L., intentou no Tribunal Judicial de Amares, acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo a condenação solidária dos RR [1º] A……….., [2] B………… e mulher C………….., no pagamento da quantia de 125.031,39€ por prejuízos sofridos em virtude da adjudicação aos segundos [2] RR do imóvel com hipoteca registada a favor da A, ocorrida em processo de execução que correu termos no TJ de Amares em que era exequente o primeiro [1] R. sem que a A. tenha sido citada para reclamar o seu crédito.

Alegou, em síntese, que:

a) outorgou um mútuo com hipoteca a favor dos RR, no valor de 10.150.000$00, tendo sido constituída a hipoteca, a seu favor, de um imóvel destinado a habitação, devidamente identificado nos autos;

b) o referido imóvel veio a ser penhorado a favor do 1º R. no âmbito dos autos de execução nº 40/99 que correu termos no TJ de Amares, tendo sido junta certidão de ónus e encargos de onde constava o registo da penhora efectuado a favor do 1º R., e pese embora a A. ser credora hipotecária dos ai executados, nunca foi citada no âmbito dos referidos autos de execução, para poder reclamar o seu crédito, ou participar fosse de que forma fosse nesta execução que foi sustada com o pagamento da quantia exequenda.

c) o Ministério Público requereu o prosseguimento da execução, por falta de pagamento das custas judiciais, tendo sido proferido despacho a determinar a venda do imóvel por negociação particular, e novamente foi junta aos autos certidão predial do imóvel, tendo a final sido admitido o pagamento das custas em prestações;

d) a execução, no entanto, prosseguiu para satisfação do crédito dos aqui segundos [2] RR, que requereram a adjudicação do prédio, o que foi deferido, sendo o imóvel entregue livre de ónus e encargos, sendo que nenhum dos credores dos executados detinha qualquer privilégio especial ou de prioridade de registo em relação à A;

e) assim que teve conhecimento de tais factos, deduziu no processo de execução, incidente de arguição de nulidade, alegando o não cumprimento, em relação a si do disposto no artº 864º, nº 2 do Código do Processo Civil, uma vez que se viu impossibilitada de reclamar o seu crédito, peticionando a anulação de todo o processado posterior ao momento em que a citação deveria ter ocorrido, e o cancelamento das inscrições prediais entretanto lavradas, incidente este que veio a ser indeferido.

f) do despacho que indeferiu este incidente consta o seguinte:

«(…) resta, então, à requerente, nos termos do citado artº 864º, nº 3 do CPC, a possibilidade de, querendo, propor contra o exequente acção de indemnização pelos prejuízos sofridos por falta da referida citação para reclamar o seu crédito, sendo o seu prejuízo correspondente à perda resultante de não ter podido reclamar o seu direito de crédito e consequentemente realizar o seu direito de crédito por via da garantia que entretanto perdeu (…)

(…) Acresce que, a responsabilidade/culpa do exequente pela omissão da citação se presume, e depende tão só da circunstância de haver sido omitida a citação da recorrida, na sua posição de credora garantida por direitos de hipoteca, para o concurso de credores (…)

(…) Efectivamente, é corrente jurisprudencial que não exime o exequente da referida responsabilidade o facto de haver juntado ao processo a certidão de ónus e encargos, requerendo o cumprimento do disposto no artº 864º do CPC e de ter havido publicação de anúncios para a citação de credores desconhecidos, dado que podia controlar o procedimento de citação de credores de modo a evitar o funcionamento sancionatório decorrente do aludido normativo (…)».

Ressuma, pois, do exposto que a A. assaca a responsabilidade da falta de citação e demais intervenção no processo executivo aos exequentes, conforme resulta de forma expressa dos artigos 54º a 56º do articulado inicial.


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Ainda no Tribunal Judicial de Amares, no âmbito dos presentes autos, foi proferido despacho judicial com o seguinte teor:

«(…) Atenta a configuração da lide e ao direito que a autora pretende exercer, é manifesta a falta de legitimidade dos réus contestantes porque desacompanhados de um outro exequente, ou seja, do exequente Estado [cfr. artº 28º, nº 2 e 864º, nº 3 do CPC].

É pois, nosso entendimento que estamos perante um caso de litisconsórcio necessário activo, nos termos definidos pelos artºs 28º, nº 2 do CPC.

Nestes termos, convido a autora a praticar os actos necessários ao suprimento da excepção dilatória de ilegitimidade».


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Na sequência deste despacho judicial, veio a autora deduzir o incidente de intervenção principal do Ministério Público, esclarecendo, porém, mais uma vez, que a acção se reporta à responsabilidade/culpa dos exequentes pela omissão da citação, que na sua óptica resulta tão só da circunstância de haver sido omitida a sua citação no processo de execução, na posição de credora garantida por direitos de hipoteca, para o concurso de credores.

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A intervenção principal do Ministério Publico foi admitida ao abrigo do disposto nos artºs 31º-B e 325º, nº 2 do CPC, na versão anterior a 2013, conforme consta do despacho de fls. 78 e, este, na contestação deduzida suscitou a incompetência do Tribunal Judicial de Amares, alegando em síntese:

O exequente A………….. juntou aos autos certidão de ónus e encargos sobre o imóvel penhorado da qual constava a aludida hipoteca e requereu o cumprimento do artº 864º, nº 2 do CPC;

Foi proferido despacho judicial a determinar o cumprimento do artº 864º do CPC, tendo sido omitida a citação da autora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Vagos

Esta omissão apenas à secção de processos pode ser imputada.

Concluiu pelo exposto que esta omissão ter-se-à de enquadrar num acto de gestão pública, e deste modo, atribui a competência à jurisdição administrativa, por força do disposto no artº 4º, nº 1, al. g) do ETAF


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Em sede de réplica, veio a autora reafirmar que a presente acção surge no seguimento do despacho judicial proferido no TJ de Amares, que indeferiu a arguição de nulidade suscitada, e que determinou que a questão de fundo se discutisse nos tribunais comuns.

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O Tribunal Judicial de Amares veio a declarar-se incompetente em razão da matéria, considerando estar-se perante um acto de gestão pública praticado pelo Estado, justificando tala afirmação no seguinte:

«Com efeito, pretendendo a autora a condenação dos RR nos quais se inclui o Estado a pagar-lhe uma indemnização por violação do procedimento a que este também estava obrigado à luz da legislação processual civil em vigor, é ponto assente que este tribunal é materialmente incompetente para apreciar o mérito da acção».


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Remetidos os autos ao TAF de Braga, este por sua vez, veio a considerar que atenta a causa de pedir e o pedido deduzidos, não restam dúvidas que se está perante uma relação jurídica em que não é parte qualquer entidade pública, nem está em causa qualquer regime substantivo de direito público, não caindo, portanto, no âmbito de aplicação do artº 4º do ETAF e que a intervenção à posteriori do Estado Português é irrelevante para aferir da competência em razão da matéria, dado que esta se fixa no momento da instauração da acção judicial e nos termos em que a mesma é configurada pelo autor.

E com este fundamento declarou o TAF incompetente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado na presente acção.


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As duas decisões transitaram em julgado.

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Neste Tribunal o Digno Magistrado do Ministério Público requereu, ao abrigo dos artigos 110º, nº 3 e 111º, nº 2 do CPC, a resolução do presente conflito negativo de jurisdição.

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Cumpre apreciar e decidir.

2. A factualidade com relevo para a resolução do conflito a decidir e que resulta dos autos, é a supra referida.


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Estamos perante um conflito negativo de jurisdição motivado pela pronúncia de duas decisões judiciais, de sentido inverso, emitidas, primeiro, por um tribunal da jurisdição comum e, subsequentemente, por um tribunal da jurisdição administrativa e fiscal, decisões que, mutuamente, declinaram a competência material para dirimir o litígio submetido a juízo.

O poder jurisdicional, é sabido, encontra-se repartido por diversas categorias de tribunais, segundo a natureza das matérias das causas que perante eles se suscitam - cfr. arts. 209º e segs da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Nos termos do disposto no art. 211º, nº 1 da CRP os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas.

Estabelecendo o art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) -, que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (também o art. 64º do CPC).

Por sua vez, art. 212º, nº 3 da CRP estabelece que, “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Também o artº 1º, nº 1 do ETAF estatui que, “os tribunais administrativos e fiscais são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.

A existência de várias categorias de tribunais supõe, naturalmente, um critério de repartição de competência entre eles, necessariamente de natureza objectiva, de acordo com a natureza das questões em razão da matéria, podendo, como tal, dar origem a conflitos de jurisdição.

A determinação do tribunal competente em razão de matéria, é aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, incluindo os respectivos fundamentos, ou seja, afere-se por referência à relação jurídica controvertida, tal como exposta na petição inicial, atendendo-se ainda à identidade das partes, pretensão formulada e respectivos fundamentos, sendo, no entanto, nesta fase, indiferente o juízo de prognose acerca da viabilidade ou não da acção, face à sua configuração - cfr. entre muitos outros, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 28-09-2010, processo nº 2/10 de 29-03-2011, processo nº 2510, de 02-03-2011, processo 9/10 e de 09-09-2010, proc. 011/10.

É inequívoco que a competência é apreciada em função da causa de pedir e pedido, aferidos à data da propositura da acção.

E quer o pedido, quer a causa de pedir invocados pela autora, conforme supra se referiu consiste na omissão da sua citação no processo de execução que correu termos no TJ de Amares, para reclamar o crédito a que tinha direito, em virtude da hipoteca registada a seu favor.

Torna-se, pois, decisiva, a interpretação que se tenha da petição inicial, analisando-se para isso, a verdadeira causa de pedir escolhida e pretendida pela autora, de molde a dar forma ao pedido formulado.

E da análise da petição inicial, resulta à evidência que, a causa de pedir é a omissão da citação no processo executivo que correu termos no TJ Amares, pelo facto do artº 864º, nº 2, do CPC [na redacção à data em vigor] não ter sido cumprido quanto à autora.

Dispunha o citado artº 864º, na versão à data aplicável:

«(…)

2. Os credores a favor de quem exista o registo de algum direito de garantia sobre os bens penhorados são citados no domicílio que conste do registo, salvo se tiverem outro domicílio conhecido; os credores desconhecidos, bem como, os sucessores dos credores preferentes, são citados por éditos de 20 dias».

E no nº 3:

«A falta das citações prescritas tem o mesmo efeito que a falta de citação dos réus, mas não importa a anulação das vendas, adjudicações, remissões ou pagamentos já efectuados, dos quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário, ficando salvo à pessoa que devia ter sido citada o direito de ser indemnizada, pelo exequente, do dano que haja sofrido».

E ciente desta redacção, a autora intentou a acção apenas contra os RR e não contra o Estado, não imputando qualquer responsabilidade nem ao julgador, nem à secção de processos no cumprimento dos processos.

Aliás, esta questão, apenas é suscitada nos autos, pelo Ministério Público, quando é chamado ao processo pela autora [depois do convite que o Tribunal Judicial de Amares lhe dirigiu] a título de interveniente principal, na contestação que apresenta.

Só que, a intervenção principal do Ministério Público, faz-se ao abrigo do disposto no nº 2 do artº 325º e artº 31º-B do CPC, ou seja, com vista a assumir a posição de réu, mas sempre numa perspectiva de pedido subsidiário; daí que, a contestação por este apresentada, entre muitos outros argumentos utilizados na sua defesa no processo, faça menção ao facto da omissão da citação da autora no processo executivo se ter devido a erro da secção no cumprimento do despacho judicial que determinou o cumprimento do disposto no nº 2 do artº 864º do CPC.

Mas, esta posição, assumida pelo Ministério Público, constitui apenas uma faceta da defesa apresentada que não pode confundir-se com a causa de pedir deduzida pela autora, nem a ela substituir-se.

E esta é clara quando imputa a responsabilidade da falta de citação aos RR, pretendendo a sua condenação nos termos previstos no nº 3 do artº 864º do CPC.

Ressuma do exposto, que a competência não se afere em função das linhas argumentativas utilizadas pelos RR nas respectivas contestações.

Ademais, a situação que acabamos de analisar não tem o enquadramento legal, designadamente na norma que consubstanciou a decisão de julgar os tribunais comuns incompetentes em razão da matéria, ou seja a al. g) do nº 1 do artº 4º do ETAF, dado que aqui apenas se atribui competência aos tribunais da jurisdição administrativa quando esteja em causa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa, o que não é manifestamente o caso dos presentes autos, pelo menos, da forma, como se mostra configurada a acção, em termos de causa de pedir e de pedido.

3. Pelo exposto, julga-se que a competência para a acção cabe aos tribunais judiciais.

Sem custas

Lisboa, 07 de Maio de 2015. – Maria do Céu Dias Rosa das Neves (relatora) – António Leones Dantas – Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Gabriel Martim dos Anjos Catarino – Ana Paula Soares Leite Martins Portela – Manuel Fernando Granja Rodrigues da Fonseca.