Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:027/15
Data do Acordão:01/21/2016
Tribunal:CONFLITOS
Relator:COSTA REIS
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL POR FACTO ILICITO.
BARRAGEM.
CONSTRUÇÃO.
TERRENO SUBMERSO POR ALBUFEIRA.
Sumário:Compete aos tribunais administrativos conhecer de acção proposta contra um município pelo proprietário de prédios ilegalmente ocupados para construção de uma barragem com vista a obter o pagamento numa indemnização que o compense dos danos que essa ocupação lhe causou. (*)
Nº Convencional:JSTA00069526
Nº do Documento:SAC20160121027
Data de Entrada:06/12/2015
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A COMARCA DA GUARDA - INSTÂNCIA CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL E CRIMINAL - J1 E O TAF DE CASTELO BRANCO
AUTOR: A... e OUTROS
RÉU: MUNICÍPIO DE TRANCOSO
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO NEGATIVO
Objecto:DECISÃO TJ GUARDA INSTANCIA CENTRAL CIVEL - DECISÃO TAF CASTELO BRANCO.
Decisão:ATRIBUIÇÃO COMPETENCIA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO NEGATIVO.
Legislação Nacional:CONST76 ART211 ART212.
ETAF04 ART1 ART4 N1 G.
CCIV66 ART483.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC0318 DE 2000/07/17.; AC TCF PROC0356 DE 2000/10/03.; AC TCF PROC0373 DE 2001/11/06.; AC TCF PROC06/02 DE 2003/02/05.; AC TCF PROC09/02 DE 2003/07/09.; AC TCF PROC09/05 DE 2005/09/29.; AC STAPLENO PROC044281 DE 1998/12/09.; AC STJ PROC373/98 DE 1999/04/21.
Referência a Doutrina:MARCELO REBELO DE SOUSA - LIÇÕES DE DIREITO ADMINISTRATIVO 1990 PAG12.
MANUEL ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES PROCESSO CIVIL PAG91 PAG88.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal de Conflitos:

1. As heranças de A……………. e de B…………….. e respectivos herdeiros devidamente identificados na petição inicial propuseram, no Tribunal Judicial da comarca da Guarda – Instância Central, Secção Cível, contra o Município de Trancoso, acção declarativa de condenação sob a forma comum pedindo que o Réu fosse condenado (1) a reconhecer que os Autores eram os titulares do direito de propriedade dos prédios descritos no requerimento inicial, (2) a pagar-lhes a quantia de 32.840,94 euros a título de indemnização pela sua ocupação ilegal, acrescida dos devidos juros moratórios, (3) a pagar-lhes a quantia de 10.355,00 a título de lucros cessantes acrescida dos devidos juros moratórios e a (4) a pagar-lhes a quantia de 17.000 euros a título de danos não patrimoniais.
Aquele Tribunal julgou-se incompetente, em razão da matéria, para decidir essa acção, declarando que essa competência cabia à jurisdição administrativa. Para decidir desse jeito começou por referir que se não estava perante um processo expropriativo para, depois, acrescentar:
Antes vêm os autores, invocando a violação do seu direito de propriedade sobre os prédios que referem, alegar que o réu, de forma abusiva, sem recurso a processo de expropriação e usando o seu ius imperium de forma ilegal, se apropriou de tais prédios onde construiu a Barragem da Teja, pelo que se encontram actualmente tais prédio submersos e, por esse motivo, vem peticionar a indemnização pelos danos que tal conduta da ré lhe causou.
Assim, vem agora intentar uma acção para obter a indemnização, invocando a responsabilidade civil extra-contratual, por acto ilícito, do Município de Trancoso, que, na sua tese, violou o seu direito de propriedade.
Atendendo, pois, ao pedido e causa de pedir, tal como são invocados pelos autores nesta acção, o Tribunal teria se apreciar e decidir se estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual por parte do Município de Trancoso.
Nada mais é pretendido, nomeadamente não é deduzido qualquer pedido de restituição dos prédios, que os próprios autores reconhecem não ser viável, em virtude dos seus prédios já estarem submersos na Barragem da Teja, pelo que é manifesto que não se trata aqui de uma acção de reivindicação, mas antes de uma acção de indemnização com fundamento, como vimos, na responsabilidade civil extracontratual.
Por outro lado, como já vimos, a acção é intentada contra o Município de Trancoso, ou seja, pessoa colectiva de Direito Público.
Ora, é evidente que para a prossecução dos seus fins lhe são atribuídos poderes de autoridade, em que se encontra investido, gozando de prerrogativas de direito público, actuando, como também o refere o próprio réu, em prole do interesse público, das populações, na construção da Barragem da Teja.”
Deste modo, tendo-se em conta o artigo 40 n°1 g) do ETAF e o disposto na Lei 67/2007, de 13/12, à luz de que esta acção terá de ser apreciada e decidida, concluiu que a competência material para o julgamento desta acção estava sediada na jurisdição administrativa.

Remetidos os autos ao TAF de Castelo Branco, este também se declarou materialmente incompetente por entender que era o Tribunal Judicial da Guarda que tinha a competência para o julgamento desta acção. E fundou esse entendimento nas seguintes considerações:
“ …. a relação jurídica em causa funda-se no direito das expropriações, mormente, na aplicação do Decreto-Lei n.º 438/91, de 09/11 e revogado pela Lei n.º 168/99, de 18/09, que aprovou o Código das Expropriações e demais legislação em vigor à data, e no art.º 1.310.° do CC, preceito em que é fundada a pretensão indemnizatória/compensatória por alegados danos causados pela expropriação, tendo sido peticionado o reconhecimento do direito a uma indemnização pela afectação de um direito real com dever de indemnizar. Ou seja, a relação material controvertia foi configurada como uma relação, à qual se aplica o direito das expropriações (fixação de indemnização/compensação por expropriação) que, expressamente, atribui competência aos tribunais comuns, e que, constituindo um conjunto de normas especiais, prevalece sobre o regime geral introduzido pela reforma do Processo nos Tribunais Administrativos; e não em matérias cujo conhecimento compete aos Tribunais Administrativos de Círculo, encontrando-se tal matéria excluída da jurisdição administrativa.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, terá de se considerar a matéria dos autos excluída do conhecimento da jurisdição administrativa e, ao invés, incluída no âmbito da jurisdição comum …..

Esta contradição de julgados levou a que fosse requerida a resolução do conflito negativo de competência que se havia formado o que determinou a remessa dos autos a este Tribunal dos Conflitos, nos termos e para os fins do disposto nos art.ºs 109.º/1, 110.º e 111.º do CPC.

A Ilustre Magistrada do Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer no sentido do conflito ser resolvido a favor dos Tribunais Administrativos e isto porque se estava perante uma acção de responsabilidade civil extra contratual, por acto ilícito, onde se pedia a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização que os ressarcisse dos danos causados por aquele com a ilegal ocupação dos seus prédios para os integrar na barragem que construiu.

Cumpre, pois, determinar qual dos dois Tribunais é o materialmente competente para conhecer e decidir dos pedidos formulados nesta acção.

2. É sabido que, nos termos constitucionais, "os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais" (art.º 211.º/1 da CRP), e que aos tribunais administrativos "compete o conhecimento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas" (art.º 212.º/3 da CRP), normativo que o ETAF verteu para a legislação ordinária onde se estatuiu que “os Tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.” (seu art.º 1.º/1).
Por outro lado, foi intenção do legislador do ETAF, manifestada na respectiva Proposta de Lei, “ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios nos quais, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns” e que, com vista a alcançar esse desiderato, a jurisdição administrativa deveria passar “a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.”
Se assim é, como é, podemos afirmar, por um lado, que a jurisdição dos Tribunais Judiciais se define por exclusão, visto lhe caber julgar todas as acções que não sejam atribuídas a outros Tribunais, por outro, que o conceito de relação jurídica administrativa e fiscal é decisivo para a definição da competência dos Tribunais Administrativos na medida em que lhes foi atribuído dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais e, finalmente, que, estando em causa a efectivação da responsabilidade civil, a identificação do Tribunal competente para julgar a acção não pode ser indiferente à natureza pública da pessoa demandada e à função em que a mesma praticou os actos susceptíveis de servir de fundamento à efectivação dessa responsabilidade.
Resta dizer que a determinação do Tribunal materialmente competente se afere em função dos termos em que a pretensão formulada vem proposta e dos fundamentos em que ela se estriba. É o que tradicionalmente se costuma exprimir com a fórmula «a competência determina-se pelo pedido formulado pelo Autor».

Sendo assim, e sendo que não se suscitam dúvidas de que o Município de Trancoso é uma pessoa colectiva de direito público e que a construção de uma barragem destinada a servir as necessidades das suas populações se integra na sua função administrativa - uma vez que esta, para além do mais, compreende o conjunto dos actos destinados à produção de bens e à prestação de serviços destinados a satisfazer aquelas necessidades (M. Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, 1999, pg. 12, com sublinhado nosso.) - resta analisar em que termos foi desenhada a causa de pedir e quais os pedidos formulados, pois será em função dessa análise que se decidirá se estamos, ou não, perante uma relação jurídica administrativa e, portanto, perante um acção cujo conhecimento caberá a essa jurisdição. Sendo certo que para esse efeito é irrelevante o juízo de prognose que faça relativamente à viabilidade da pretensão, por esta se tratar de questão atinente ao seu mérito (Vd. a este propósito, Manuel de Andrade, ”Noções Elementares de Processo Civil”, a fls. 91, e a título meramente exemplificativo, Acórdãos do Tribunal de Conflitos de 11/7/00, Conflito n.º 318 (AD 468/1.630) de 3/10/00, (Conflito n.º 356), de 3/10/00 (Conflito n.º 356), de 6/11/01, (Conflito n.º 373) e de 5/2/03, (Conflito n.º 6/02), de 9/07/2003 (Conflito 9/02) e de 29/09/2005 (Conflito n.º 9/05) e do Pleno do STA de 9/12/98, rec. n.º 44.281 (BMJ 482/93) e do STJ de 21/4/99, rec. n.º 373/98 e Prof. Manuel de Andrade ” Noções Elementares de Processo Civil” pg. 88 e seg.s.).

3. A leitura da petição inicial revela que as Autoras fundamentaram os seus pedidos com a alegação de que eram proprietários dos prédios descritos na petição inicial que, desde há séculos, estavam na sua família e que o Réu os havia ocupado sem qualquer título, designadamente expropriativo, para os integrar na barragem que havia construído. Foram, assim, ilegalmente desapossados de tais prédios, que se encontram totalmente submergidos pela água daquela barragem, o que os impede de usar e fruir tais bens e de retirarem dos mesmos os seus proveitos económicos. O que lhes causa graves danos patrimoniais e não patrimoniais, para os quais pretendem o respectivo ressarcimento.

4. É, assim, claramente evidente que a acção intentada pelos Autores contra o Município de Trancoso visa a efectivação da responsabilidade civil extracontratual deste por acto ilícito e culposo - traduzido na ilegal apropriação de vários prédios rústicos que lhes pertenciam para serem integrados numa barragem que aquele construiu - e a sua condenação no pagamento de uma indemnização que os compense dos danos que essa ocupação lhes causou.
Não vem, assim, formulado qualquer pedido relacionado com o direito de expropriação, como supôs o TAF de Castelo Branco, e, muito menos, com a restituição dos prédios, tanto mais quanto é sabido que tais prédios foram submersos pelas águas da barragem e que, por isso, a satisfação de tal pedido revelar-se-ia impossível.
Trata-se, pois, de uma clara acção de responsabilidade civil extracontratual a ser dirimida de acordo com as regras dessa responsabilidade constantes dos art.ºs 483.º e seg.s do CC e das normas constantes da Lei 67/2007, de 31/12.

Por outro lado, é também evidente que o Réu é uma pessoa colectiva de direito público e que a construção daquela barragem se insere no exercício da sua função administrativa uma vez que aquele equipamento não só se destina a satisfazer as necessidades das suas populações como a lei lhe confere poderes de autoridade no exercício dessa função.

Sendo assim, e sendo que, nos termos do art.º 4.º/1/g) do ETAF, compete aos Tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e legislativa é manifestamente evidente que a competência para julgar esta acção cabe aos Tribunais Administrativos.

Termos em que, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, os Juízes que compõem este Tribunal acordam em julgar os Tribunais da jurisdição administrativa os competentes para julgar esta acção.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Janeiro de 2016. – Alberto Acácio de Sá Costa Reis (relator) – João Luís Marques Bernardo – Jorge Artur Madeira dos Santos – José António Henriques dos Santos Cabral – Vítor Manuel Gonçalves Gomes – António Jorge Fernandes de Oliveira Mendes.