Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:04/19
Data do Acordão:06/06/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:TRIBUNAL DOS CONFLITOS
ANULAÇÃO DE CONTRATOS
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário:Dado o disposto nos arts. 64º do CPC e 4º do ETAF, compete à jurisdição comum, «ratione materiae», conhecer da acção instaurada por particulares com vista a recuperarem as verbas que – no âmbito de contratos «de fundador» alegadamente nulos ou justificativos da invocação de um enriquecimento sem causa – adiantaram a uma fundação de direito privado, entretanto extinta por acto legislativo.
Nº Convencional:JSTA000P24646
Nº do Documento:SAC2019060604
Data de Entrada:01/17/2019
Recorrente:A.................., S.A. E OUTROS, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DE FRONTEIRA - SECÇÃO ÚNICA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DE CÍRCULO DE LISBOA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:

A……………, SA, B……………., SA, C………….., RL, D…………., SA, E……………., Ld.ª, F……….. SGPS, Limited, e G……………, autores no processo dos autos, vieram solicitar a este tribunal que resolva o conflito negativo de jurisdição aberto entre o TJ de Fronteira e o TAC de Lisboa, já que, por decisões transitadas, ambos declinaram a competência própria para conhecer da acção dos autos – por eles movida contra a Fundação ………., a H…………., SA, e a Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária – atribuindo-a ao outro.

O Ex.º Magistrado do MºPº neste Tribunal dos Conflitos emitiu douto parecer onde defende que o conhecimento da causa incumbe aos tribunais judiciais.

Cumpre decidir.
Mediante o DL n.º 48/2007, de 27/2, foi instituída pelo Estado a Fundação ………., «pessoa colectiva de direito privado» cujos estatutos foram publicados em anexo. Um dos órgãos dessa fundação era o «Conselho de fundadores», constituído – para além do Estado – pelas pessoas singulares ou colectivas que, após cumprirem uma «dotação inicial a definir», recebessem o «status» de «fundadores» por parte do «membro do Governo responsável pela área da agricultura, desenvolvimento rural e das pescas» («vide» os arts. 2º e 4º do citado diploma e 1º, 8º e 19º dos referidos estatutos).
Cada um dos aqui autores celebrou com aquela fundação um «contrato de fundador»; e, através desses pactos, logo acompanhados de entregas individuais de €50.000,00, os autores obtiveram o estatuto de «fundadores» da pessoa colectiva – a que se seguiriam efeitos vários, previstos nos estatutos.
Contudo, a Fundação ………… foi extinta pelo DL n.º 109/2013, de 1/8 – diploma que transferiu o património dela para as rés DG de Alimentação e Veterinária e H………….., SA. E os autores, considerando que haviam prestado aquelas importâncias em vão, propuseram a acção dos autos a fim de reavê-las.
Para tanto, formularam os seguintes pedidos: «primo», que se anulem esses contratos de fundador, condenando-se as rés a restituir as quantias entregues ao abrigo de tais negócios, afinal inválidos; subsidiariamente, que se condene a ré Fundação – ou a ré H………….. – a restituir-lhes as mesmas importâncias, por enriquecimento sem causa; por último, e ainda subsidiariamente, que se condenem as rés a reconhecer a exigibilidade – «em sede de processo de liquidação da Fundação …………….» – dos créditos invocados pelos autores.
A acção foi instaurada no Tribunal Judicial de Fronteira, que se declarou incompetente «ratione materiae» em virtude do conhecimento do pleito incumbir à jurisdição administrativa. E, remetido o processo para o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, também este se julgou materialmente incompetente, atribuindo a competência para decidir a causa à jurisdição comum.
Ambas as decisões transitaram, pelo que existe um conflito negativo de jurisdição (art. 109º, n.º 1, do CPC), que deve ser dirimido por este Tribunal dos Conflitos (art. 110º, n.º 1, do mesmo diploma).
É sabido que a competência «ratione materiae» da jurisdição comum é residual (art. 64º do CPC); pelo que o conhecimento da presente lide só incumbirá à jurisdição administrativa se houver uma norma que assim o estabeleça. Por outro lado, convém lembrar que a competência em razão da matéria se afere pelo «petitus» – e, havendo vários, pelo principal – ainda que esclarecido ou iluminado pela «causa petendi».
«In casu», os autores – uma pessoa singular e seis pessoas colectivas de direito privado – pretendem a devolução das quantias que prestaram à Fundação ………… no âmbito dos contratos «de fundador» que celebraram com essa «pessoa colectiva de direito privado». E fundamentam tal pretensão na invalidade dos ditos negócios (por erro quanto à subsistência da fundação) ou, pelo menos, no instituto do enriquecimento sem causa.
Este circunstancialismo aponta, de imediato, para a atribuição da competência material aos tribunais comuns; pois tais contratos foram celebrados entre pessoas ou entidades privadas e as deslocações patrimoniais – que a acção pretende reverter – localizaram-se nesse estrito âmbito.
E essa sugestão é confirmada pelo art. 4º do ETAF – na sua redacção primitiva, ainda vigente aquando da dedução da causa. As únicas normas deste artigo susceptíveis de intervir no presente caso seriam as constantes das alíneas e) e f) do seu n.º 1 – já que só elas aludiam a questões relacionadas com a validade e a execução de contratos.
Mas é óbvio que essa al. e) não se aplica à presente situação, pois os «contratos de fundador» não foram precedidos de um qualquer procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público.
E é igualmente indiscutível que a dita al. f) é alheia ao presente litígio. Com efeito, e desde logo, o objecto dos contratos «de fundador» não era realizável por acto administrativo, pois a disponibilidade negocial dos autores para adiantarem verbas a fim de adquirirem o «status» de fundadores não era contornável e atingível por algum acto de autoridade. Depois, nada indicia que esses contratos «de fundador» estivessem submetidos a regras de direito público, reguladoras do seu regime substantivo; ao invés, decorre do alegado que tais pactos exclusivamente se basearam na liberdade contratual de entes privados, ao modo do art. 405º do Código Civil. Por último, o facto de nenhuma das partes contratantes ser uma entidade pública e, ainda, o pormenor dos contratos «de fundador» não estarem submetidos «expressis verbis» a «um regime substantivo de direito público» afasta decisivamente uma aplicação da alínea à situação «sub specie».
Portanto, o ETAF não inscrevia a acção dos autos no âmbito da competência material da jurisdição administrativa. Donde resulta, como inicialmente se antevia, que o conhecimento do pleito incumbe, «ratione materiae», à jurisdição comum.

Nestes termos, acordam em anular a pronúncia de incompetência emitida pelo TJ de Fronteira e em atribuir a competência material para conhecer da acção dos autos à jurisdição comum.
Sem custas.

Lisboa, 6 de Junho de 2019. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – Raúl Eduardo do Vale Raposo Borges – António Bento São Pedro – Maria Rosa Oliveira Tching – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa – António Pedro Lima Gonçalves.