Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01974/21.3T8LRA.S1-CP
Data do Acordão:07/13/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Sumário:1 - Compete à jurisdição administrativa apreciar uma acção proposta por uma entidade pública empresarial do Estado contra uma empresa pública sob a forma de sociedade anónima e uma sociedade anónima, invocando uma eventual concorrência de causas do acidente que lhe causou danos, que pode conduzir à responsabilização das duas demandadas, solidariamente ou não.
2 - O n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, traz para o âmbito da jurisdição administrativa o conhecimento de litígios que envolvem entidades privadas, desprovidas de poderes de autoridade, quando estão ligadas a entidades públicas por vínculos de solidariedade, nomeadamente nos exemplos referidos no mesmo n.º 2.
3 - A ampliação da competência da jurisdição administrativa verifica-se relativamente a essas entidades privadas, ou seja, só ocorre quando aquela competência abrange as entidades públicas nos termos das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 4.º (ou de outra disposição legal) e justifica-se pela vantagem manifesta de possibilitar o conhecimento global do litígio, sem obrigar à propositura de acções diferentes em diferentes jurisdições, com a duplicação de actividade processual e o risco de decisões contraditórias.
4 - Essa ampliação pode ser provocada por entidades privadas às quais “seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” (al. h) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), respeitando o litígio a esse âmbito de aplicação.
5 - A equiparação – e a correspondente interpretação extensiva do referido n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – encontra justificação na atribuição legal de prerrogativas de autoridade no exercício das competências de gestão das infraestruturas em causa e à sua qualificação legal como exercício (embora privado) da função administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P29801
Nº do Documento:SAC2022071301974
Recorrente:CP COMBOIOS DE PORTUGAL, EPE
Recorrido 1:COMPANHIA DE SEGUROS ALLIANZ PORTUGAL, S.A.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Consulta prejudicial
Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1. Em 24 de Maio de 2021, CP – Comboios de Portugal – E.P.E. instaurou no Tribunal Judicial da Comarca de Leiria uma ação contra Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., e IP – Infraestruturas de Portugal, S.A., pedindo a condenação individual ou solidária das rés a pagarem-lhe a quantia de € 220.665,746, acrescida de juros vincendos, a título de danos sofridos.
Para o efeito, e em síntese, invocou ter sofrido danos em consequência da colisão entre um comboio (explorado por si) e um veículo pesado de mercadorias (seguro na ré Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.), ocorrida numa passagem de nível situada numa linha de caminho de ferro explorada pela ré IP, tendo o sinistro sido causado
– pelo condutor do veículo de mercadorias, “por inobservância das regras que, enquanto condutor, deve respeitar, na aproximação e transposição das Passagens de Nível”,
– e / ou pela ré IP – Infraestruturas de Portugal, S.A., sendo que esta ré “omitiu o cumprimento do dever de conservação e manutenção daquela PN e do seu equipamento”, omissão que impediu que o maquinista “pudesse imobilizar o comboio antes daquela PN o que, não sucedendo, deu origem ao sinistro em causa, pois o comboio não conseguiu evitar o embate”.
Explicou que demandou as duas rés “por cautela e dever de patrocínio” (artigo 12.º da petição inicial).
As rés contestaram separadamente. Para o que agora releva, ambas invocaram a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, por se tratar de uma acção da competência dos Tribunais Administrativos.
A Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., alegou que a ré IP, S.A., é “uma sociedade anónima, que prossegue fins públicos, estando dotada de prerrogativas conferidas ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis no que respeita à responsabilidade civil extracontratual, no domínio de actos de gestão pública”, sendo “a gestão das infraestruturas de circulação ferroviária (…) um acto de gestão pública”.
Concluiu no sentido de que resulta do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
A ré Infraestruturas de Portugal, S.A., baseou a alegação de incompetência no disposto nos artigos 4.º, n.º 1, alínea f), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de Maio e 23.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro, referindo os poderes de autoridade detidos pela ré IP, S.A., necessários à garantia da segurança da circulação e das infraestruturas ferroviárias nacionais sob sua administração.
Por despacho de 22 de Outubro de 2021 do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Central Cível de Leiria – Juiz ..., foi admitida a intervenção principal provocada de F..., S.A., ao lado da ré Infraestruturas de Portugal, S.A., que a requereu, alegando ter transferido para a seguradora a responsabilidade relativa à gestão da infraestrutura rodoviária, mediante um contrato de seguro.
F..., S.A., contestou; releva agora que também invocou a incompetência material do Tribunal para conhecer da ação. Acompanhando as considerações apresentadas pela ré IP, S.A., concluiu que, por decorrência do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, é à jurisdição administrativa que compete a apreciação do presente litígio.
A autora respondeu à excepção de incompetência e, aludindo à previsão do n.º 1 do artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 104/97, de 29 de Abril, reiterou a competência dos tribunais comuns para o conhecimento da causa.

2. Por despacho de 15 de Março de 2022, o Juiz ... do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria – Juízo Central Cível de Leiria dirigiu oficiosamente ao Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça consulta prejudicial ao Tribunal dos Conflitos sobre a questão da jurisdição competente para a apreciação do presente litígio.
Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça admitiu a consulta, nos termos do n.º 2 do artigo 16.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro (Tribunal dos Conflitos), determinando que se seguissem os termos previstos na mesma Lei.
De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 11.º da Lei n.º 91/2019, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente ação à jurisdição administrativa: “Tal como a A. configura a acção, verifica-se que o pedido foi dirigido contra uma entidade pública empresarial, que se rege pelo disposto no DL n.º 133/2013, de 3/10.
Esta entidade pública empresarial foi demandada por eventual responsabilidade civil extracontratual derivada da alegada omissão do dever de gestão da infraestrutura integrante da rede ferroviária nacional.
Dispõe-se no artigo 4.°, n.° 1, alínea f) do ETAF que "Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(...)
f) - Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público
(...)
Tem-se entendido que esta norma revogou tacitamente a norma contida no artigo 32.° do DL n.° 104/97, de 29/4, citado pela A., na sua resposta de 16/2/22.
Neste sentido, ver os seguintes acórdãos do Tribunal de Conflitos, todos publicados nas bases de dados jurídico-documentais do IGFEJ:
011/10, de 9/9/10, relatado por Adérito Santos;
030/09, de 17/6/10, relatado por Jorge de Sousa;
017/07, de 23/1/08, relatado por Políbio Henriques.
Deste modo, somos de parecer que a competência material para conhecer da presente ação caberá à jurisdição administrativa”.
Os factos relevantes para a decisão constam do relatório.

3. Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (n.º 2 do artigo 212º da Constituição, n.º 1 do artigo 1.º e artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 52-53, o legislador deveria esclarecer o que se entende como “relação jurídica administrativa”, nomeadamente para ser possível saber, com segurança, como delimitar o âmbito da jurisdição administrativa: “De facto, face à complexidade actual das relações entre o direito público e o direito privado no âmbito da actividade administrativa, a questão (…) transformou-se numa decisão, numa opção política entre soluções igualmente defensáveis” (nota 68).
«Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido».

4. Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.
No caso dos autos, como se viu, a autora alega, por um lado, que o acidente se deveu “não só” à conduta do condutor do veículo pesado, que efectuou a travessia da passagem de nível sem se certificar de que o podia fazer sem perigo para si ou para terceiros, “mas também” ao mau funcionamento das meias barreiras da passagem de nível; ora, cabendo à ré IP – Infraestruturas de Portugal, S.A., a gestão da infraestrutura da rede ferroviária nacional (por força do disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 104/97, de 29 de Abril) e não tendo promovido o seu bom e regular funcionamento, a responsabilidade caberá também ou apenas à ré IP, S.A.. Assim, a autora entende que, ainda que não sejam responsáveis ambas as rés que demandou, pelo menos uma sê-lo-á.
Não se pode, pois, dizer que a autora formula um pedido principal e outro subsidiário; nem tão pouco que se possa enquadrar a sua pretensão na pluralidade de partes subsidiária prevista no artigo 39.º do Código de Processo Civil, que pressupõe que uma das partes é demandada a título subsidiário. Interpreta-se a petição inicial no sentido de a autora demandar as duas rés iniciais com o fundamento de, eventualmente, ter ocorrido uma concorrência de causas do acidente, que pode conduzir à responsabilização das duas, solidariamente ou não, ou apenas de uma delas.
Esta interpretação constitui um passo necessário para a definição da jurisdição competente, desde logo porque a competência se define em função da forma como a autora define os termos da causa, como se disse já.
A intervenção de F..., S.A., tem o efeito de, sendo caso disso, ser conhecida a relação que lhe respeita, ficando abrangida pelo caso julgado que vier a formar-se.

5. O Decreto-Lei n.º 104/97, de 29 de Abril, criou a Rede Ferroviária Nacional – REFER, E. P., com a natureza de pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio” e “sujeita à tutela dos Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território” (n.º 1 do artigo 2.º). O “objecto principal” atribuído à REFER foi o de “prestação do serviço público de gestão da infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacional, que nela é delegado por efeito automático do presente diploma.” (n.º 2).
Do artigo 32.º do Anexo I do citado Decreto-Lei n.º 104/97, que contém os Estatutos da REFER, E.P., resultava que, salvo tratando-se de taxas devidas à REFER, competia “aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que” era “parte a REFER, E. P., incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil dos titulares dos seus órgãos para com a respectiva empresa.” Esta regra, todavia, foi tacitamente revogada pela al. g) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na sua redação inicial, como se entendeu, por exemplo, no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 12 de Maio de 2016, www.dgsi.pt, proc. n.º 049/15: “Compete aos tribunais administrativos o julgamento de ação para efetivação de responsabilidade civil extracontratual da REFER, E.P.E., pessoa coletiva de direito público, por efeito de aplicação do art. 4.°, n.° 1, al. g), do ETAF, na redação de 2002, que se deve entender como lei geral revogatória da norma especial do art. 32.º dos respetivos Estatutos, constantes do anexo I ao DL n.º 104/97, de 29-04, alterado pelo DL n.º 141/2008, de 22-07”.
O Decreto-Lei n.º 91/2015, de 29 de Maio, procedeu à fusão, por incorporação, da E…, S. A., na REFER – Rede Ferroviária Nacional, E. P. E., e transformou a REFER em sociedade anónima, denominada Infraestruturas de Portugal, S. A. (IP, S. A.) – artigo 1.º, n.º 1.
Nos termos do n.º 1 do respectivo artigo 4.º, a IP, S. A., reveste a natureza de empresa pública sob forma de sociedade anónima. Rege-se “pelo presente decreto-lei, pelos seus estatutos, pelo regime jurídico do sector público empresarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro, pelo Código das Sociedades Comerciais, pelos seus regulamentos internos e pelas normas especiais que lhe sejam aplicáveis” (n.º 2) e “tem por objecto a concepção, projecto, construção, financiamento, conservação, exploração, requalificação, alargamento e modernização das redes rodoviária e ferroviária nacionais, incluindo-se nesta última o comando e o controlo da circulação”, assumindo “a posição de gestor de infraestruturas, nos termos do contrato de concessão geral da rede rodoviária nacional celebrado com o Estado e dos contratos de concessão que com o mesmo venham a ser celebrados, bem como a gestão das demais infraestruturas sob sua administração.” (n.ºs 1 e 2 do artigo 6.º).
Do artigo 12.º do mesmo Decreto-Lei n.º 91/2015, cuja epígrafe é “poderes de autoridade”, resulta (n.º 1) que “Compete à IP, S. A., relativamente às infraestruturas rodoviárias e ferroviárias nacionais sob sua administração, zelar pela manutenção permanente das condições de infraestruturação e conservação e pela segurança da circulação ferroviária e rodoviária”; e do n.º 2 decorre que “Para o desenvolvimento da sua atividade principal, a IP, S. A., detém os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis, designadamente no que respeita:
(…) k) À responsabilidade civil extracontratual, no exercício dos respetivos poderes públicos”.
Por seu lado, o n.º 3 do mesmo artigo 12.º confere à IP, S. A., nos termos da lei, os poderes de autoridade necessários para garantir a integridade dos bens que lhe estão confiados, bem como a segurança da circulação e das infraestruturas a seu cargo, que ali se enunciam.
Do artigo 22.º do regime jurídico do sector público empresarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de Outubro – aplicável como se viu, à IP, S.A –, consta a regra de que “1 - As empresas públicas podem exercer poderes e prerrogativas de autoridade de que goza o Estado, designadamente quanto a: (…) b) Utilização, proteção e gestão das infraestruturas afetas ao serviço público;(…)» Esta norma contém, para as empresas públicas, uma “habilitação legal expressa” para o “exercício de poderes públicos de autoridade”, como recorda Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 5.ª ed., 2018, Coimbra, pág.32.
Ora, de acordo com o n.º 1 do artigo 23.º, “Para efeitos de determinação da competência para o julgamento dos litígios respeitantes a actos praticados e a contratos celebrados no exercício dos poderes de autoridade a que se refere o artigo anterior” – como é o caso –, as empresas públicas são equiparadas a entidades administrativas.
Importa também ter em conta que, segundo a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, e no respectivo contexto, se esclarece, no n.º 2 do seu artigo 1.º, que “(…) correspondem ao exercício da função administrativa as acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”, resultando do n.º 5 que as regras relativas à “responsabilidade das pessoas colectivas de direito público (…) são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado (…) por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípio de direito administrativo”.

6. Da al. h) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais decorre que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos [que não os referidos nas alíneas anteriores, como as pessoas colectivas públicas] aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
Assim, deve, pois, concluir-se que a apreciação da eventual responsabilidade extracontratual da ré IP, S.A., cabe aqui à jurisdição administrativa, nos termos do disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. h), do ETAF. Neste mesmo sentido, e a propósito de questão similar, entendeu-se no acórdão de 29 de Janeiro de 2015 do Tribunal dos Conflitos, www.dgsi.pt, proc. n.º 050/14: «O DL nº 374/2007, de 7/11, transformou a E..., EPE em sociedade anónima de capitais públicos, com a designação de E..., S.A (cfr. art. 1º).
Apesar de ser uma sociedade anónima, a lei atribuiu-lhe poderes, prerrogativas e deveres de autoridade típicos dos atribuídos ao Estado.
Assim, no que respeita ao seu estatuto prevê o art. 10º, nº 1 do DL nº 374/2007 que: “compete à E..., S.A., relativamente às infra-estruturas rodoviárias nacionais que integrem o objecto da concessão a que se refere o n.º 1 do artigo 4.º, zelar pela manutenção permanente de condições de infra-estruturação e conservação e de salvaguarda do estatuto da estrada que permitam a livre circulação”.

E no nº 2 do mesmo preceito prevê-se que, “Para o desenvolvimento da sua actividade, a E..., S.A., detém os poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis no que respeita:(…)h) A responsabilidade civil extracontratual, nos domínios dos actos de gestão pública;”.
Por outro lado, determina o art. 8º, nº 1 do mesmo diploma que, “as infra-estruturas rodoviárias nacionais que integram o domínio público e que estejam em regime de afectação ao trânsito público ficam nesse regime sob administração da E..., S.A.”. Daqui decorre que pertence à aqui Ré EP, a representação do Estado no que respeita às infra-estruturas rodoviárias. Ou seja, estes normativos, nas funções atribuídas à EP (quanto às infra-estruturas rodoviárias nacionais que integram o objecto da sua concessão), concedem-lhe poderes de autoridade próprios do Estado.
Destas normas é possível inferir-se que a responsabilidade extracontratual por que a Ré é demandada, derivando das suas legais atribuições (designadamente conservação da rede rodoviária nacional), se desenvolve num quadro de ambiência pública.
Assim, a sua eventual responsabilização por actos ou omissões dessa sua actividade insere-se no quadro de aplicação da norma do art. 1º, nº 5 da Lei nº 67/2007, acima mencionada, e, consequentemente, serão os tribunais administrativos os competentes, em razão da matéria, para conhecer do litígio, nos termos do disposto no art. 4º, nº 1, alínea i) [corresponde à actual al. h)] do ETAF - cfr. neste sentido o Acórdão do STJ de 16.10.2012, proc. 950/10.6TBFAF.G1 e o Acórdão deste Tribunal dos Conflitos nº 048/13, de 27.02.2014.»
E no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 09/12/2014, www.dgsi.pt, proc. n.º 035/14, entendeu-se o seguinte:
«II - Pedindo-se a condenação dos RR em indemnização por danos causados na sua casa de habitação com a utilização de explosivos na construção de um troço de auto-estrada e detendo a Ré E..., S.A prerrogativas concedidas ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis no que respeita à responsabilidade civil extra-contratual, no domínio dos actos de gestão pública, é de concluir que a apreciação da eventual responsabilidade extra-contratual dessa mesma Ré cabe à jurisdição administrativa.»

7. Nesta acção foi demandada a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., e interveio a F..., S.A., sociedades privadas que não exercem poderes de autoridade e que não são abrangidas por nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
No entanto, o n.º 2 do mesmo artigo 4.º, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro (2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.”) – e que deve ser entendido em conjunto com o n.º 10 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, relativo à legitimidade passiva – traz para o âmbito da jurisdição administrativa o conhecimento de litígios que envolvem entidades privadas, desprovidas de poderes de autoridade, quando estão ligadas a entidades públicas por vínculos de solidariedade, nomeadamente nos exemplos referidos no citado n.º 2. A ampliação da competência da jurisdição administrativa verifica-se relativamente a essas entidades privadas, ou seja, só ocorre quando aquela competência abrange as entidades públicas nos termos das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 4.º (ou de outra disposição legal) e justifica-se pela vantagem manifesta de possibilitar o conhecimento global do litígio, sem obrigar à propositura de acções diferentes em diferentes jurisdições, com a duplicação de actividade processual e o risco de decisões contraditórias (“O art. 4.º, n.º 2, do ETAF apresenta-se como uma concretização do princípio da tutela jurisdicional efectiva, designadamente dos sub-princípios da economia e da celeridade processual (…)”, escreve Sandra dos Reis Luís, O artigo 4.º, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais: sentido e alcance, in Comentários à Legislação Processual Administrativa, vol. I, 5.ª ed., Lisboa, 2020, pág. 407 e segs.., pág. 434).
No caso, a solidariedade foi invocada pela autora – há que ter sempre presente que a competência se afere pela forma como o autor desenha o litígio – e verifica-se, justamente, que invocou concorrência de causas dos danos que pretende que sejam ressarcidos. É claro que a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A. foi demandada por ser a seguradora do veículo de mercadorias envolvido no acidente, tendo sido a responsabilidade transferida por virtude desse contrato; a concorrência de causas alegada respeita naturalmente à actuação do respectivo condutor.
Já a intervenção de F..., S.A., preenche a hipótese da parte final do n.º 2, quanto às suas relações com a ré IP – Infraestruturas de Portugal, S.A.
A dificuldade que se pode encontrar na aplicação ao caso presente da ampliação de jurisdição à 1.ª ré e à seguradora da ré IP – Infraestruturas de Portugal, S.A. decorre, como é bom de ver, da circunstância de IP – Infraestruturas de Portugal, S.A., não ser uma entidade pública, mas sim uma empresa pública sob a forma de sociedade anónima. No entanto, tratando-se de uma acção de responsabilidade civil extracontratual por alegada omissão do exercício de competências abrangidas pela atribuição legal de prerrogativas de autoridade, correspondentes, como se viu, “ao exercício da função administrativa” (n.º 2 do artigo 1.º da Lei 67/2007), quanto a si, a competência da jurisdição administrativa está assegurada pela al. h) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e pelo n.º 1 do artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 133/2013.
Deve, assim, interpretar-se o n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais no sentido de que a ampliação da jurisdição administrativa a entidades privadas, nas condições ali previstas, pode ser provocada por entidades privadas às quais “seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público” (al. h) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), respeitando o litígio a esse âmbito de aplicação.
A equiparação – e a correspondente interpretação extensiva do referido n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – encontra justificação na atribuição legal de prerrogativas de autoridade no exercício das competências de gestão das infraestruturas ferroviárias e à sua qualificação legal como exercício (embora privado) da função administrativa.
Ora a autora invocou factos aptos a desenhar uma relação de solidariedade entre os demandados, por descreverem uma concorrência de causas (actos do condutor do veículo de mercadorias e omissões da ré IP, S.A.) que conduziram, sempre na sua configuração da acção, aos danos cuja indemnização pretende; e ao demandar a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., alegou a transferência da responsabilidade pelo sinistro por contrato de seguro. A intervenção da F..., S.A., foi requerida pela ré I.P., S.A., com fundamento também em ter transferido para esta seguradora a responsabilidade relativa à gestão da infraestrutura rodoviária, através de um contrato de seguro, e foi admitida por esse motivo.
Como se escreveu no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 17 de Maio de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 052/17, para ser aplicável o n.º 2 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “para o efeito de aferir a competência da jurisdição administrativa”, é necessário “que na petição inicial tenham sido articulados factos que permitam, primo conspectu, fundamentar a imputação de responsabilidade solidária às entidades públicas e particulares que nela são demandadas. Não basta, para tal, a mera invocação, «oca de factos», dessa mesma responsabilização solidária (…)”, como ali sucedia – mas não no caso presente.
“A seu tempo”, como no mesmo acórdão se escreveu e atrás se recordou, o tribunal que for competente apreciará, e decidirá, de acordo com o regime jurídico que deva ser aplicado aos factos provados.

8. Cabe, portanto, à jurisdição administrativa e fiscal a competência para apreciar esta acção; concretamente, ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (artigos 18.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 9.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, 7.º do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e 1.º, f), da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio e artigo 3.º e mapa anexo ao Decreto-Lei n.º 325/2003, de 29 de Dezembro).

9. Assim, nos termos do disposto no artigo 17° da Lei n° 91/2019, de 4 de Setembro, acordam em emitir pronúncia no sentido de que cabe à Jurisdição Administrativa e Fiscal conhecer da presente acção; no caso, ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.
Sem custas (n.º 2 do artigo 5.º da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


Lisboa, 13 de Julho de 2022. - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (relatora) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa - Henrique Luís de Brito Araújo.