Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:023/22
Data do Acordão:03/22/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA E FISCAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
Sumário:Se na acção, tal como configurada pelo Autor Município, tendo presente o pedido e a causa de pedir, estamos perante poderes de autoridade deste, com imposições de interesse público e deveres impostos ao Réu perante o Autor, tanto na celebração do contrato de compra e venda como na obrigação de cumprir as regras impostas pelo Regulamento, característicos de uma relação jurídica administrativa, sendo o litígio subsumível no art. 4º, nº 1, al. o) do ETAF, para o respectivo conhecimento é competente a jurisdição administrativa.
Nº Convencional:JSTA000P30735
Nº do Documento:SAC20230322023
Data de Entrada:07/08/2022
Recorrente:REQUERENTE: CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ALMEIDA E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU
REQUERENTE: MUNICÍPIO DE ALMEIDA
REQUERIDO: AA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 23/22

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
Município de Almeida intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Guarda, Juízo de Competência Genérica de Almeida, acção declarativa de simples apreciação, sob a forma de processo comum, contra AA, formulando os seguintes pedidos:
a) Ser declarado resolvido o contrato de compra e venda outorgado por escritura públicas de 05 de Agosto de 2002 que teve como objecto o prédio urbano, lote ...5, sito no Loteamento Industrial de ..., ..., Freguesia de ... e Concelho de Almeida, com área total de 2.665 m2, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº ...64 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...95, a confrontar de Norte com rua, de Sul com BB e de Nascente com lote nº ...4 e de Poente com rua;
b) Ser o R. condenado a reconhecer o A. como dono e legítimo proprietário do prédio supra identificado, com o cancelamento do registo efectuado na aquisição a favor do aqui R., em função da compra e venda então outorgada.
Em síntese, o Autor alega que é proprietário e legítimo possuidor do prédio urbano acima identificado, tendo o R. adquirido o dito prédio por escritura pública, outorgada em 05.08.2002, sendo a aquisição realizada com cláusula de reversão a favor do A., prevista no Regulamento de Cedência de Lotes no Loteamento Industrial de ... (Regulamento publicado no DR nº 254, 2ª série, de 02.11.1996, com sucessivas alterações). Refere ainda que, de acordo com o referido Regulamento o R. encontrava-se obrigado a constituir uma Unidade Industrial cujo objecto seria a transformação metalo-mecânica, com 15 postos de trabalho, mediante entrega de projecto de construção e que, de acordo com os arts. 8º e 9º do referido Regulamento, após a apresentação do projecto de construção na Câmara Municipal de Almeida, a referida Unidade Industrial deveria entrar em funcionamento no prazo de um ano após a aprovação definitiva do projecto de construção pela Câmara Municipal. Após a celebração do referido negócio o R. não cumpriu aquilo a que estava obrigado por escritura pública e pelo referido Regulamento, pelo que o A., através do seu órgão executivo, em 20.10.2020, deliberou exercer o seu direito de reversão, pelo que pretende com a presente acção obter sentença judicial que determine a entrega do prédio ao A., fazendo operar a estipulada condição resolutiva.

Em 02.04.2022, no Juízo de Competência Genérica de Almeida foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria e absolvido o Réu da instância (cfr. fls. 61 a 66 dos autos).
Por despacho de 10.05.2022 o Juízo de Competência Genérica de Almeida determinou a remessa dos autos ao TAF de Viseu, a solicitação do Autor (cfr. fls. 72 e 73/74).
No Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, por sentença de 25.05.2022, o Tribunal também se declarou incompetente em razão da matéria (cfr. fls. 78 a 84).
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição no TAF de Viseu, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019.
O Exma. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum – Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Juízo de Competência Genérica de Almeida (cfr. fls. 91 a 93).

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo de Competência Genérica de Almeida e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.
Entendeu o Juízo de Competência Genérica de Almeida, nomeadamente, que “(…) importa apurar se, no concreto litígio que está em causa, nos encontramos perante uma questão de natureza meramente privada (ou jurídico-civil), relativa ao incumprimento de um contrato de compra e venda de um imóvel (lote), ou perante uma questão jurídica que assume contornos que lhe conferem natureza administrativa.
Na verdade, o âmbito da jurisdição administrativa não se limita aos contratos administrativos, abrangendo contratos celebrados por entidades públicas: «especialmente regulados por legislação administrativa avulsa» (VIEIRA DE ANDRADE, a Justiça Administrativa, Lições, Almedina, 2020, p. 110), como é o caso, tendo em conta a submissão/indexação do contrato ao referido Regulamento Municipal (Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 17-03-2021, Proc. 0180/20.9T8FVN.S1).
Essa submissão permite concluir pela qualificação do presente litígio como respeitante a uma relação jurídica administrativa, incluído na al. o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF. (…)
O caso dos autos é em todo, sim, similar àquele plasmado no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 17-03-2021, Proc. 0180/20.9T8FVN-S1 (e que veio a merecer mais recentemente renovação do mesmo entendimento, no Acórdão do mesmo Tribunal, de 02-12-2021, Proc. 01301/17.4BELRA.S1). (…). Do exposto resulta assim que, segundo o A., a relevância do Regulamento de Cedência de Lotes no Loteamento Industrial de ... na relação jurídica em apreço não se limita a uma aplicação subsidiária ou secundária, mas antes a uma aplicação essencial na, e para, a vivência do contrato (exactamente nos mesmos termos do Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 17-03-2021, Proc. 0180/20.9T8FVN-S1).
Por fim, as disposições dos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 12.º traduzem a inexistência de uma posição de paridade entre A. e R. na relação contratual, mas, antes, uma posição de autoridade do contraente público, tendo em vista os fins e interesses públicos visados pelo Regulamento de Cedência de Lotes no Loteamento Industrial de ....
Afigura-se, portanto, que no caso dos autos o A. não estruturou a relação material controvertida na mera violação de obrigações fixadas num contrato de compra e venda”.
Por sua vez o TAF de Viseu considerou, nomeadamente, que “A intervenção do A. na efectivação deste contrato colocou-o na mesmíssima situação de qualquer particular, não exercendo qualquer posição de superioridade em relação aos restantes contraentes. Na presente acção apenas vem pedida, e procura o A. conseguir, um juízo definitivo sobre a execução de um contrato de direito privado, se o R. o cumpriu e, na hipótese negativa, que consequências devem extrair-se desse facto – cf Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 22.09.2011, (proc. n.º 030/10)”.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Na presente acção o Autor, pessoa colectiva pública, alegou ter vendido ao Réu o prédio urbano, lote ...5, sito no Loteamento Industrial de ..., de acordo com deliberação tomada na reunião da Câmara Municipal de Almeida, sendo a aquisição realizada com cláusula de reversão a favor do A., prevista no Regulamento de Cedência de Lotes no Loteamento Industrial de ... (Regulamento publicado no DR nº 254, 2ª série, de 02.11.1996, com sucessivas alterações).
De acordo com o referido Regulamento o R. encontrava-se obrigado a constituir uma Unidade Industrial cujo objecto seria a transformação metalo-mecânica, com 15 postos de trabalho, mediante entrega de projecto de construção e que, de acordo com os arts. 8º e 9º do referido Regulamento, após a apresentação do projecto de construção na Câmara Municipal de Almeida, a referida Unidade Industrial deveria entrar em funcionamento no prazo de um ano após a aprovação definitiva do projecto de construção pela Câmara Municipal. E, de acordo com o art. 10º do Regulamento, havendo incumprimento justificado e alienação a terceiros, terá necessariamente “de haver autorização prévia da Câmara Municipal de Almeida, reservando-se sempre o direito de preferência”. Após a celebração do referido negócio o R. não cumpriu aquilo a que estava obrigado por escritura pública e pelo referido Regulamento, pelo que o A., através do seu órgão executivo, em 20.10.2020, deliberou exercer o seu direito de reversão, pretendendo com a presente acção obter sentença judicial que determine a entrega do prédio ao A., fazendo operar a estipulada condição resolutiva.
Com efeito, de acordo com o disposto no art. 12º do Regulamento, “A inobservância de qualquer das condições aqui expressas, ou a falta de cumprimento das formalidades e prazos estabelecidos é motivo suficiente para o adquirente perder o direito ao terreno adquirido, que, reverterá para a Câmara Municipal de Almeida, bem como, os trabalhos e ou benfeitorias de qualquer natureza já nele realizadas, sem que o adquirente tenha direito a ser reembolsado das importâncias pagas ou a indemnização de espécie alguma.”
O presente caso é em tudo semelhante ao relatado no acórdão deste Tribunal dos Conflitos, de 17.03.2021, Proc. 0180/20.9T8FVN-S1 (entendimento já reiterado no ac. deste Tribunal, de 02.12.2021, Proc. 01301/17.4BELRA.S1), e que aqui assumimos, tendo-se aí expendido: “(…) Não há dúvida que se trata de um contrato de compra e venda, cujo regime essencial se encontra no Código Civil.
No entanto, importa apurar se, no concreto litígio que está em causa, nos encontramos perante uma questão de natureza meramente privada (ou jurídico-civil), relativa ao incumprimento de um contrato de compra e venda de um imóvel, ou perante uma questão jurídica que assume contornos que lhe conferem natureza administrativa.
Na verdade, o âmbito da jurisdição administrativa não se limita aos contratos administrativos, abrangendo contratos celebrados por entidades públicas: “especialmente regulados por legislação administrativa avulsa” (José Carlos Vieira de Andrade, a Justiça Administrativa, Coimbra, 2020, pág. 110), como é o caso, tendo em conta a submissão do contrato ao referido Regulamento Municipal.
Essa submissão permite concluir pela qualificação do presente litígio como respeitante a uma relação jurídica administrativa, incluída na al. o) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais. Recorrendo de novo ao ensinamento de José Carlos Vieira de Andrade, op. cit., págs. 51 e segs., e ao critério substancial de delimitação da justiça administrativa, diremos que, “na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…) A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica. (…) lembraremos apenas que se têm de considerar relações públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público legalmente definido.”
Não se trata de uma situação equiparável à que foi considerada no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 11 de Abril de 2019, www.dgsi.pt, processo n.º 049/18:
“(…) No contrato em causa Autor e Ré actuaram como qualquer ente privado numa relação jurídica privada. Um vende e outro compra determinado bem.
Não se vislumbra que o Autor tenha agido «numa situação de “jus imperii”» como se afirma no Parecer do MP.
As partes, Autor e Ré celebraram entre si, como dois entes privados e nessa qualidade, um contrato de empreitada, cujo objecto é puramente privado.
Este contrato reveste uma natureza privada e não pública.
Não estamos perante um contrato que deva ser qualificado pela lei como administrativo, nem quanto às pessoas que o celebraram nem quanto ao seu objecto.
Esse contrato não é qualificado pela lei como administrativo nem no seu objecto – venda de um terreno – está em causa um litígio relativo a cláusulas ou normas específicas de interesse público.
Assim, entendemos que nesta hipótese o Tribunal Judicial Comum é o competente em razão da matéria”.
No caso dos autos, o autor alega ter vendido à ré o lote em causa ao abrigo do disposto no Regulamento Municipal de Acesso aos Incentivos à Instalação de Unidades Industriais, que faz parte integrante da respectiva escritura de compra e venda.
Em concreto, para fundamentar o pedido de reversão, invoca o incumprimento das obrigações a que a ré se vinculou na escritura pública de aquisição, bem como daquelas que constam do Regulamento e a que também se obrigou. (…)
Do exposto, resulta assim que, segundo o autor, a relevância do Regulamento na relação jurídica em apreço não se limita a uma aplicação subsidiária ou secundária, mas antes a uma aplicação essencial na, e para, a vivência do contrato. (…)
Esta disposição traduz a inexistência de uma posição de paridade entre o autor e a ré na relação contratual, mas, antes, uma posição de autoridade do contraente público, tendo em vista os fins e interesses públicos visados pelo Regulamento. (…)
7. Afigura-se, portanto, que no caso dos autos o autor não estruturou a relação material controvertida na mera violação de obrigações fixadas num contrato de compra e venda.
A relevância das normas contidas no regulamento (que integra a escritura de compra e venda) e o preço acordado (revelador da intenção subjacente ao contrato, alegados na petição inicial, apontam para a existência de poderes de autoridade do autor, bem como para a imposição de restrições de interesse público e de deveres perante a administração característicos de uma relação jurídica administrativa.
Pelo exposto, conclui-se que a relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, deve ser qualificada como uma relação jurídica administrativa.
Igualmente na presente acção, tal como configurada pelo Autor, tendo presente o pedido e a causa de pedir, estamos perante poderes de autoridade deste, com imposições de interesse público e deveres impostos ao Réu perante o Autor, tanto na celebração do contrato de compra e venda como na obrigação de cumprir as regras impostas pelo Regulamento, característicos de uma relação jurídica administrativa
Estamos, por isso, perante um litígio subsumível no art. 4º, nº 1, al. o) do ETAF, emergente de uma relação jurídica administrativa para cujo conhecimento é competente a jurisdição administrativa.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.
Sem custas.

Lisboa, 22 de Março de 2023. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.