Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:016/21
Data do Acordão:07/14/2022
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO.
TRIBUNAIS JUDICIAIS.
DIREITO DE PROPRIEDADE.
Sumário:A competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais.
Nº Convencional:JSTA000P29794
Nº do Documento:SAC20220714016
Data de Entrada:04/30/2022
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU, JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU - JUIZ 1, E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE VISEU, U.O. 1
AUTOR: A…………
RÉU: JUNTA DE FREGUESIA DE CAVERNÃES
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 16/21

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
A…………, identificado nos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, Juízo Local Cível de Viseu, acção declarativa contra a Junta de Freguesia de Cavernães, formulando os seguintes pedidos:
“1) Declarar-se que o Autor é legítimo e exclusivo dono e proprietário do prédio descrito supra no artigo primeiro;
2) A Ré ser condenada:
a) A reconhecer e respeitar esse direito de propriedade e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito;
b) A demolir de imediato a construção na parte em que viola o direito de propriedade;
c) A pagar ao Autor a indemnização pelos prejuízos causados na quantia que vier a liquidar-se.”
Em síntese, alega ser proprietário do prédio rústico que identifica. Mais alega que a Ré ocupou uma parte desse prédio com as obras de pavimentação da estrada com ele confinante, cobriu parte de uma represa, também propriedade do Autor, e canalizou o escoamento das águas pluviais para o referido prédio, tudo na sua ausência e sem o seu consentimento. Pretende ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre parte do prédio que foi ocupada pela pavimentação e exige a restituição do que lhe pertence, por força do disposto no art. 1311º do Código Civil, além de uma indemnização pelos prejuízos causados.
No Juízo Local Cível de Viseu, o Autor, notificado para se pronunciar sobre a excepção de incompetência material do Tribunal, defendeu a competência dos tribunais judiciais argumentando que o fundamento do litígio é uma questão exclusivamente de direito de propriedade sobre o terreno em causa e a alegada violação desse direito.
Em 21.01.2021, no Juízo Local Cível de Viseu – Juiz 1, foi proferida decisão a julgar o tribunal incompetente em razão da matéria para apreciação e julgamento da acção intentada, absolvendo a Ré da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu (TAF de Viseu) foi aí proferido despacho saneador em 04.03.2021 a declarar a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos, absolvendo a Entidade Demandada da instância.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos, as partes, notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º. da Lei nº 91/2019, nada disseram (sendo que o Autor já havia requerido que se suscitasse oficiosamente a resolução do conflito).
A Exma. Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que a competência material para apreciar a acção deverá ser atribuída aos tribunais comuns.

2. Os Factos
Os factos com interesse para a decisão são os constantes do relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Juízo Local Cível de Viseu e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu.
Entendeu o Juízo Local Cível de Viseu ser a jurisdição comum incompetente, em razão da matéria para conhecer do litígio por, “(…) nos termos da alínea h) do mencionado art. 4º, nº 1, do ETAF, compete aos tribunais administrativos apreciar os litígios que tenham por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extra-contratual das pessoas colectivas de direito público.
No caso vertente está em causa a atuação da Junta de Freguesia de Cavernães.
Entre o mais, a indemnização peticionada pelo autor funda-se em responsabilidade extra-contratual.
Assim sendo e em face do disposto no citado art. 4º, nº 1, do ETAF, este tribunal é materialmente incompetente sendo competentes os Tribunais Administrativos.”
Por sua vez o TAF de Viseu também se considerou incompetente em razão da matéria. Entendeu que “(…) o A. pretende intentar uma acção de reivindicação, nos termos previstos no art.º 1311º do CC.
A questão material controvertida, tal como apresentada pelo A. na petição inicial, é, portanto, o reconhecimento e a reivindicação do direito de propriedade, a reposição do terreno no estado em que se encontrava, bem como a indemnização por prejuízos causados.
E, em aplicação da jurisprudência do Tribunal dos Conflitos que cita, concluiu que “caberá aos tribunais comuns a competência para conhecer de acção em que o autor, invocando a qualidade de proprietário de prédio ocupado por uma autarquia local, pede a condenação desta ao reconhecimento do seu direito de propriedade sobre aquele prédio, a reposição do prédio no estado em que se encontrava antes da intervenção da autarquia e ainda à respectiva condenação em indemnização por prejuízos provocados por tal actuação.
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas «que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» [artigos 211.º, n.º1, da CRP, 64.º do CPC e 40.º, n.º1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas «emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» (artigos 212.º, n.º 3, da CRP e 1.º, n.º 1, do ETAF).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.ºs 1 e 2) e negativa (n.ºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo".
Analisados os termos e o teor da petição inicial constata-se estarmos perante um litígio cuja causa de pedir se situa no âmbito dos direitos reais. Com efeito, o Autor alega que a Ré violou o seu direito de propriedade, já que sem qualquer autorização ou consentimento, invadiu o seu prédio, ocupando parte do mesmo com a pavimentação do caminho com o qual ele confronta, daí resultando um alargamento daquele caminho à custa da perda de área do seu prédio, que canalizou indevidamente águas pluviais para o seu prédio e cobriu parte de uma represa sua propriedade, causando-lhe prejuízos que pretende ver indemnizados. Invoca no seu requerimento inicial que tem “o direito de ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre parte do prédio que foi ocupada pela pavimentação e de exigir a restituição do que lhe pertence, por força do disposto no artigo 1311.º do Código Civil”.
Por sua vez, a Ré defende que não existe “nenhuma ocupação indevida do terreno do Autor”.
A jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos tem, abundantemente, entendido que a competência para conhecer de acções em que se discutem direitos reais cabe apenas na esfera dos Tribunais Judiciais (cfr. Acs. de 30.11.2017, Proc. 011/17, de 13.12.2018, Proc. 043/18, de 23.05.2019, Proc. 048/18, de 23.01.2020, Proc. 041/19 e de 02.12.2021, Proc.03802/20.8T8GMR.G1.S1 (todos consultáveis in www.dgsi.pt).
A apreciação do pedido indemnizatório mostra-se dependente do que vier a ser decidido quanto ao pedido principal, trata-se pois de pedidos que, na economia da acção não têm autonomia, “sendo uma mera decorrência da pretensa violação do direito de propriedade e que, por isso, não relevam para a determinação da competência material do tribunal” (cfr. Ac. Tribunal dos Conflitos de 23.01.2020, Proc. 041/19 e jurisprudência nele citada, disponível em www.dgsi.pt).
É esta jurisprudência que se reitera, pelo que a competência para apreciar a pretensão do Autor cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a acção o Tribunal Judicial da Comarca de Viseu - Juízo Local Cível de Viseu. Juiz 1.
Sem custas.

Lisboa, 14 de Julho de 2022. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.