Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:012/15
Data do Acordão:03/08/2017
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:RELAÇÃO LABORAL. DIREITO A SEGURO DE SAÚDE.
Sumário:I — Se o fundamento da acção for uma relação laboral de direito privado, na qual os autores filiam o direito que invocam «in judicio» contra o réu, deve a causa, atento o modo como vem configurada «in initio litis», ser conhecida na jurisdição comum.
II — A competência «ratione materiae» dessa jurisdição não se dissipa por tal relação laboral porventura ter sido transposta para um enquadramento de direito público, já que isso, na medida em que negaria o direito invocado, concerne ao mérito do pedido.
Nº Convencional:JSTA00070063
Nº do Documento:SAC20170308012
Data de Entrada:12/07/2015
Recorrente:A........ E OUTROS
Recorrido 1:INSTITUTO DA HABITAÇÃO E DA REABILITAÇÃO URBANA, I.P.
Votação:MAIORIA COM 2 VOT VENC
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO TT T COMUM
Decisão:DECL COMPETENTE TT
Área Temática 1:CONFLITO DE COMPETÊNCIA.
Legislação Nacional:CONST05 ART211 N1 ART212 N3.
ETAF02 ART1 ART4.
L 3/99 DE 1999/01/13.
L 62/13 DE 2013/08/05.
DL 223/07 DE 2007/05/30 ART10.
L 59/08 DE 2008/09/11 ART17 N2.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC010/15 DE 2016/03/10.; AC TCF PROC08/14 DE 2015/10/01.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. A………….e Outros intentaram no (então) Tribunal do Trabalho de Lisboa uma acção contra o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I.P. (IHRU) pedindo que
- o R. seja condenado a respeitar o direito ao Seguro de Saúde de Grupo dos AA e demais beneficiários, como um direito incorporado no seu contrato individual de trabalho, unilateralmente irrevogável por aquele;
- seja a deliberação do R. a determinar “que o contrato de seguro de saúde não seja renovado na data do seu vencimento em 31/12/2009” declarada nula, por contrária à lei;
- seja o R. condenado a reconstituir integralmente a situação que existia na data da não renovação do seguro em causa através de indemnização em dinheiro, dada a impossibilidade de reconstituição natural em montante equivalente aos 80% da comparticipação contratualizada através do seguro em causa, acrescido de juros à taxa legal, aos AA e demais beneficiários e seus familiares, relativamente aos gastos realizados nas situações de hospitalização, medicamentos, próteses oculares, consultas e serviço de enfermagem particular em hospital ;
- seja o R. condenado a pagar uma indemnização aos AA e demais beneficiários e seus familiares pela manifesta privação ilegítima do gozo do direito de saúde de grupo no montante de 100€ ano ou fracção a cada um dos autores e demais beneficiários e seus familiares.

No despacho saneador, o Tribunal do Trabalho de Lisboa (após a reorganização judiciária decorrente da Lei n.º 62/2013, de 5 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), Instância Central – Secção do Trabalho, da comarca de Lisboa), julgou-se incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, atribuindo a competência aos tribunais da jurisdição administrativa. Por acórdão de 23/9/2015, o Tribunal da Relação de Lisboa, negando provimento a recurso interposto pelos Autores, confirmou essa decisão de incompetência, com fundamento em que, atendendo à data relevante para fixação da competência (a da propositura da acção: 6/02/2010, através do CITIUS), o litígio emerge de uma relação de trabalho em funções públicas, para cuja apreciação seriam competentes os tribunais administrativos.

Os Autores interpuseram recurso para o Tribunal dos Conflitos, recurso este que não foi admitido na Relação. Os Autores reclamaram da decisão de não admissão do recurso para este Tribunal.
Por despacho do relator, que não foi impugnado, foi deferida a reclamação e o recurso admitido, pelo que cumpre agora apreciá-lo.

2. O âmbito da jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (art. 211.º, n.º 1, da CRP). Disposição esta que, à data da propositura da acção, era reproduzida no art. 18.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei 3/99, de 13 de Janeiro, republicada pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro) e, actualmente, no art.º 40.º, n.º1, da LOSJ.

Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do art. 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Na redacção anterior à que lhe foi conferida pelo Dec. Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF-2002, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, alterado pelas Leis n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, 107-D/2003, de 31 de Dezembro, 1/2008 e 2/2008, de 14 de Janeiro, 26/2008, de 27 de Junho, 52/2008, de 11 de Setembro, pelo Dec. Lei n.º 166/2009, de 31 de Julho, pelas Leis n.ºs 55-A/2010, de 31 de Dezembro e 20/2012, de 14 de Maio) replicava no art.º 1.º, n.º 1, essa genérica previsão. Essa enunciação genérica era concretizada no art.º 4.º, com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (n.º 1) e negativa (nºs 2 e 3).

Deste preceito último interessa reter o disposto na al. d) do n.º 3, que excluía da jurisdição administrativa, “ [a] apreciação de litígios emergentes de contratos individuais de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa colectiva de direito público, com excepção dos litígios emergentes de contratos de trabalho em funções públicas”. É nesta norma (parte em destaque) que se situa o fulcro da atribuição da competência à jurisdição administrativa pelo acórdão recorrido.

3. É corrente, na doutrina e na jurisprudência, designadamente no Tribunal dos Conflitos, a afirmação de que a competência dos tribunais se estabelece em função dos termos em que a acção é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão.

O acórdão recorrido não nega que o vínculo estabelecido entre os Autores e o Réu tivesse originariamente a natureza de contrato de trabalho de direito privado. Entendeu, porém, que com a entrada em vigor do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas, aprovado pela Lei n.º 59/2008, de 11 de Setembro, os contratos de trabalho que vinculavam cada um dos Autores ao Réu se converteram ipsa vis legis (art.º 17.º, n.º 2, da dita Lei n.º 59/2008), em contratos de trabalho em funções públicas. Deste modo, emergindo os pedidos formulados pelos Autores de relações jurídicas que actualmente estão assim qualificadas, a competência material para a sua apreciação caberia aos tribunais administrativos, nos termos do art.º 4., n.º 3, al. d) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Os recorrentes sustentam, em síntese, que a sua pretensão se fundamenta na existência de uma relação jurídica privada, a qual não se converteu em relação jurídica de direito público a partir de 1 de Janeiro de 2009, contrariamente ao que o acórdão entendeu. E que isso basta para determinar que a causa incumbe aos tribunais do trabalho, atento o disposto no art.º 85.º, al. b), da então vigente LOFTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, na redacção dada pela Lei 105/2003, de 10 de Dezembro (competência actualmente regulada no at.º 126.º, n.º1, al.b), da LOSJ) e no art.º 4.º, n.º 3, al. d) do ETAF.

4. Importa referir que conflito similar ao presente nos seus elementos essenciais, em acção proposta contra o mesmo Instituto, foi objecto de resolução por acórdão deste Tribunal de 10/3/2016, Proc. n.º 10/15, com atribuição da competência à jurisdição comum. É também nesse sentido que agora se decidirá.

Não porque se deva aqui tomar posição definitiva, como os recorrentes parecem pretender, sobre a natureza, designadamente face à evolução legislativa em matéria de emprego público, do vínculo que actualmente liga os Autores ao IHRU, mas porque é isso que resulta do clássico entendimento de que a questão da competência se decide pelos elementos essenciais da configuração da acção tal como o autor a apresenta. Com efeito, a pretensão dos autores assenta na tese jurídica, em que vigorosamente apostam, de que tinham e mantêm com o réu uma relação laboral de direito privado em cujo regime ancoram a intangibilidade por acto unilateral da entidade patronal dos direitos que querem ver reconhecidos. É em função da relação jurídica assim caracterizada que pedem a manutenção do seguro de saúde e o mais que disso é instrumental ou consequência. Como os Autores o configuram, o litígio respeita a matéria não incluída na jurisdição administrativa. Ora, se é assim ou não, se o vínculo de emprego se mantém juridicamente com a natureza inicial ou sofreu modificação de natureza, é aspecto que interessa ao mérito da causa, não à questão da competência em razão da matéria.

Transpondo para o caso o que se disse no acórdão de 1/10/2015, Proc. 8/14, é certo que o juiz é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência, pelo menos numa situação como a presente em que a causa de pedir e o pedido vão dirigidos ao reconhecimento dos efeitos resultantes de uma relação laboral de direito privado. Para a apreciação desta questão o que releva é a alegação dos Autores de que estão ligados ao Réu através do regime contrato individual de trabalho e de que é esse contrato de direito privado o fundamento da pretensão de verem reconhecidos direitos que a lei estabelece para os trabalhadores vinculados por contratos desse tipo e que não seriam, porventura, suportados pelo regime do contrato de trabalho em funções públicas. Isto é, os Autores têm direito a que seja apreciado se têm ou não o direito que se arrogam, emergente do contrato individual de direito privado que defendem vinculá-los ao Réu.

5. Decisão

Pelo exposto, concedendo provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido e julga-se improcedente a excepção da incompetência do tribunal do trabalho em razão da matéria, atribuindo-se a competência ao então Tribunal do Trabalho de Lisboa (ora Instância Central – Secção do Trabalho).

Sem custas.

Lisboa, 8 de Março de 2017. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – Alberto Acácio de Sá Costa Reis – Maria da Graça Machado Trigo Franco Frazão –

Alberto Augusto Andrade de Oliveira – Gabriel Martim dos Anjos Catarino (vencido pelos fundamentos expostos pelo Exmo. Senhor Conselheiro Gonçalves Rocha) – António Gonçalves Rocha (Vencido pelas seguintes razões: conforme diz o acórdão recorrido, com a entrada em vigor da Lei n.º 59/2008 de 11 de Setembro, que aprovou o regime do contrato de trabalho em funções públicas, o contrato de trabalho invocado pelos autores, converteu-se “ope legis” em contrato de trabalho em funções públicas. Nesta linha, atribuiria a competência material para à causa júrisdição administrativa.)