Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:09/05
Data do Acordão:09/29/2005
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANTÓNIO SAMAGAIO
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA-CONTRATUAL.
CONFLITO DE JURISDIÇÃO.
COMPANHIA SEGURADORA.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Sumário:I - A competência para resolver pré-conflitos — n° 2 do artigo 107° do Código de Processo Civil — como conflitos de jurisdição entre tribunais administrativos e os tribunais comuns pertence ao Tribunal de Conflitos, constituído por seis juízes conselheiros, sendo três do Supremo Tribunal de Justiça e os outros três do Supremo Tribunal Administrativos, presidido pelo Presidente deste último e sediado nele, conforme o disposto nos Decretos n°s 19 243, de 16.01.1931 e 23 185, de 30.10.1933.
II - Tendo a acção declarativa de condenação sido intentada apenas contra a Companhia Seguradora, para quem o médico cirurgião, do Hospital Militar Principal, por contrato de direito privado, transferiu a sua responsabilidade por danos emergentes do exercício da sua profissão, é competente para conhecer de tal acção, de responsabilidade civil extra-contratual por danos resultantes de intervenção cirúrgica naquele Hospital pelo referido médico, o tribunal cível da comarca de Lisboa.
II - A competência dos tribunais administrativos, nos termos da alínea h), n° 1, do artigo 51° do ETAF84, determina-se em função de um elemento subjectivo —Estado e demais entes públicos e titulares dos seus órgãos ou agentes — e de um elemento objectivo — prejuízos decorrentes de actos de gestão pública — não se verificando aquele elemento subjectivo já que a acção foi proposta apenas contra a Companhia Seguradora que é uma entidade particular.
Nº Convencional:JSTA00062130
Nº do Documento:SAC2005092909
Data de Entrada:05/23/2005
Recorrente:B... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE A 7ª VARA CÍVEL DE LISBOA E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:AC RL DE 2004/12/14.
Decisão:DECL COMPETENTES OS TRIBUNAIS COMUNS.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA.
Área Temática 2:DIR JUDIC - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:CPC96 ART107 N2.
ETAF84 ART51 N1 H.
Jurisprudência Nacional:AC TCONFLITOS PROC318 DE 2000/07/11.; AC TCONFLITOS PROC6/02 DE 2003/02/05.; AC TCONFLITOS PROC9/02 DE 2003/07/09.; AC TCONFLITOS PROC312 DE 1998/02/05.; AC TCONFLITOS PROC1/04 DE 2004/06/29.
Aditamento:
Texto Integral: A..., casada com um soldado da G.N.R., doméstica, residente no ..., Lote ..., ..., Apartado ..., em ..., freguesia do concelho e comarca do Fundão, intentou nas varas cíveis da comarca de Lisboa, a 6 de Maio de 2002, contra B..., acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a condenação desta no pagamento de €50 000 relativos a danos não patrimoniais e juros à taxa legal desde a citação e no que viesse a liquidar-se posteriormente quanto ao dano de incapacidade para o trabalho, com fundamento em intervenção cirúrgica dita negligente realizada no Hospital Militar Principal de Lisboa, a 13 de Maio de 1999, pelo segurado da referida Ré B..., Dr. ..., na qualidade de cirurgião daquele Hospital, e no respectivo contrato de seguro celebrado entre este médico e aquela Companhia de Seguros.
Citada a Ré, B..., suscitou esta, na contestação, a incompetência em razão da matéria do tribunal cível para conhecer da acção, afirmando serem competentes para o efeito os tribunais do foro administrativo, tendo a A. replicado no sentido da não verificação da referida excepção.
Na fase de condensação, no dia 29 de Março de 2004, o tribunal cível da 1ª instância julgou improcedente a mencionada excepção por considerar que competentes para o conhecimento da acção eram, efectivamente, os tribunais cíveis.
Agravou, então, a Ré B... tendo a Relação de Lisboa, por acórdão proferido no dia 14 de Dezembro de 2004, decidido que competentes para conhecer da acção eram os tribunais administrativos, pelo que absolveu a Ré da instância.
Perante o assim decidido a A., em 5 de Janeiro de 2005, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que o relator da Relação, por despacho de 9 de Fevereiro seguinte, admitiu como agravo, para subir imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Chegados os autos ao STJ e distribuídos os mesmos, pelo relator foi proferido, a 18 de Maio de 2005, o seguinte despacho que se transcreve na parte que interessa: “(...) a lei estabelece que se a Relação tiver julgado incompetente o tribunal judicial por a causa pertencer ao âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, o recurso destinado a fixar o tribunal competente é interposto para o Tribunal de Conflitos (art. 107°, n°2 do Código de Processo Civil).
Assim, há erro de direito da recorrente e do relator da Relação sobre o tribunal competente para conhecer do referido recurso ou sobre o funcionamento do Tribunal de Conflitos.
À luz do princípio da cooperação, a que alude o artigo 266°, n°1, do Código de Processo Civil, impõe-se, nesta sede, que o referido erro seja corrigido, naturalmente considerando-se que o recurso deve ser conhecido pelo Tribunal de Conflitos e remetendo-se o processo, para os pertinentes efeitos, ao Supremo Tribunal Administrativo
Trata-se, efectivamente, do denominado pré-conflito cuja resolução, à semelhança do conflito propriamente dito, é da competência do Tribunal de Conflitos, o qual é constituído por seis juizes conselheiros, três do Supremo Tribunal de Justiça e os outros três do Supremo Tribunal Administrativo, com sede neste último Tribunal e presidido pelo Presidente deste, conforme os Decretos n°s 19 243, de 16.1.1931 e 23 185, de 30.10.1933.
Posto isto, vejamos se a competência para conhecer da acção instaurada pela A. pertence aos tribunais cíveis, como sustenta, ou se aos tribunais administrativos, tal como é defendido pela Ré B....
A Relação de Lisboa, pelo seu citado acórdão, decidiu que os tribunais competentes eram os administrativos porquanto, e em síntese, i) a actuação negligente do médico (eventual abandono de um corpo estranho de densidade metálica no abdómen da A., após intervenção cirúrgica) causadora dos danos alegados surge integrada numa prestação de cuidados de saúde por parte de uma entidade pública — o Hospital Militar Principal — pelo que ii) a responsabilidade civil extracontratual emergente dessa prestação de cuidados de saúde está sujeita ao regime estabelecido no DL n° 48 051, de 21.11.67, que regula a responsabilidade civil do Estado e das demais pessoas colectivas públicas por danos resultantes de actos de gestão pública, não relevando a circunstância daquele médico ter transferido, para a Ré B..., a sua responsabilidade civil decorrente da actividade profissional através de contrato de seguro.
A Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta, neste Supremo Tribunal Administrativo, emitiu douto parecer no sentido de que, ao contrário do decidido, competente para conhecer da acção em causa são os tribunais cíveis e não os administrativos. E, de facto, assim é.
Estatui a alínea h), do n° 1, do art. 51º do ETAF de 1984, ainda aplicável, e não o ETAF de 2004, por a acção ter sido proposta antes de 1 de Janeiro daquele ano, que os tribunais administrativos são os competentes para conhecer “Das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso”. Ou seja, a competência dos tribunais administrativos é, assim, definida em função de um elemento subjectivo - Estado, demais entes públicos e titulares dos seus órgãos ou agentes - e de um elemento objectivo — prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.
Isto por um lado. Por outro, como é jurisprudência e doutrina pacíficas, a competência dos tribunais afere-se em função dos termos em que a acção é proposta, quer quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada, natureza do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto de que teria emergido o direito, etc.) quer quanto aos seus elementos subjectivos (identidade e natureza das partes). Isto é: a competência dos tribunais determina-se pelos termos do pedido.- Cfr., neste sentido, os Acs. deste Tribunal de Conflitos, citados no douto parecer da Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta, de 11.07.00, Proc. N° 318, de 5.02.03, Proc. n° 6/02 e de 9.07.03, Proc. n° 9/02, nomeadamente.
No caso em apreço é fora de dúvida que os prejuízos invocados decorrem de actos de gestão pública, nos precisos termos referidos pelo acórdão recorrido — intervenção cirúrgica integrada numa prestação de cuidados de saúde por parte de uma entidade pública (Hospital Militar Principal).
Todavia, não foi contra o Hospital Militar Principal que a A. intentou a presente acção nem contra o agente (médico) de tal ente público mas apenas contra a Companhia de Seguros B....
Ora, a referida Seguradora, para quem o médico terá transferido a sua responsabilidade civil através de um mero contrato de direito privado, é um ente particular, pelo que só nos tribunais cíveis pode ser accionada como responsável pelos prejuízos alegados pela A..
Como sustenta a Ex.ª Procuradora —Geral Adjunta no seu douto parecer: “nem a A. veio invocar como fundamento da sua pretensão qualquer acto ou relação jurídico-administrativa, nem qualquer das partes na acção tem natureza pública ou se mostra investida em poderes de autoridade.
Não se verifica, pois, quanto à Ré Companhia de Seguros B..., o requisito subjectivo que, nos termos da alínea h) do n° 1 do art, 51º do ETAF84 determina a atribuição da competência material dos tribunais administrativos.- Cfr., neste sentido, o Ac. deste Tribunal de Conflitos de 5.02.98, Proc. n° 312.
Anote-se que o Supremo Tribunal Administrativo tem admitido, em acções declarativas de condenação por responsabilidade civil extracontratual intentadas nos tribunais administrativos, a intervenção de Companhias Seguradoras ao lado de entes públicos para quem estes transferiram a sua responsabilidade civil. Mas isto não significa que sejam demandadas em plano de igualdade com os entes públicos, ou que ocorra uma situação de litisconsórcio necessário passivo, mas tão só como responsáveis pelo “quantum” indemnizatório já que o contrato de seguro não transfere para elas a responsabilidade jurídica pelo evento. — Cfr., a título de exemplo, o ac. da 2ª subsecção, de 16.03.2004, Proc. n° 01715/03, e o ac. deste Tribunal de Conflitos, de 29.06.2004, Proc. n° 1/04, in www.dgsi.pt.
Pelo exposto, conclui-se pela incompetência dos tribunais administrativos, revogando-se o acórdão da Relação de Lisboa, e pela competência do tribunal judicial da comarca de Lisboa para apreciação do pedido formulado pela A. contra a Companhia Seguradora B..., face ao disposto no n° 1 do art. 18° da LOTJ..
Sem custas.
Lisboa, 29 de Setembro de 2005.
António Fernando Samagaio – (relator) - João Carlos de Barros Caldeira - Armindo Luís - José Santos Carvalho - Jorge Artur Madeira dos Santos - Adérito da Conceição Salvador dos Santos.