Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:037/18
Data do Acordão:03/21/2019
Tribunal:CONFLITOS
Relator:HENRIQUE ARAÚJO
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P24386
Nº do Documento:SAC20190321037
Data de Entrada:07/23/2018
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DO PORTO, JUÍZO LOCAL CRIMINAL DO PORTO, JUIZ 1 E O TAF DO PORTO
RECORRENTE: A………., LDA.
RECORRIDO: ÁGUAS DO PORTO, E.M.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito Negativo de Jurisdição
N.º 37/18
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DE CONFLITOS

I. RELATÓRIO

“A………, Lda.”, com sede no Porto, interpôs recurso judicial da decisão de aplicação de coima pela empresa municipal “Águas do Porto, E.M.”, por incumprimento da obrigação de ligação dos sistemas prediais aos sistemas públicos, nos termos do DL 194/09, de 20 de Agosto.

O Juízo Local Criminal do Porto declarou a sua incompetência material, apoiado na seguinte fundamentação:
“No caso dos autos, a recorrente recorre da decisão administrativa que o condenou em coima, por incumprimento da obrigação de ligação dos sistemas prediais aos sistemas públicos, o que segundo se entende se insere no amplo âmbito do direito do urbanismo (neste sentido entendeu o douto acórdão do STA, de 30/03/17, www.dgsi.pt).
Ora, tendo em conta a actual redacção do citado art. 4º, n.º 1, al. l), do ETF e o objecto dos presentes autos, entende-se que competentes para decidir a impugnação judicial dos autos são os tribunais administrativos” - cfr. fls. 133.

Por sua vez, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, afastando a aplicação ao caso da alínea l) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF, declinou igualmente a sua competência material para conhecer da questão.
O essencial da fundamentação resume-se ao seguinte:
“(... para a competência dos tribunais administrativos é necessário que o bem jurídico protegido seja o urbanismo. No caso em apreço o bem jurídico protegido é a higiene, saúde e salubridade públicas”.

Remetidos os autos ao Tribunal de Conflitos, foi junto douto parecer do Ministério Público em que se defende que a competência material deve ser cometida aos tribunais comuns - cfr. fls. 159 a 162 - invocando-se, curiosamente, o mesmo acórdão do Tribunal de Conflitos (n.º 31/16, de 30.03.2017) em que o Mmº Juiz do Juízo Local Criminal do Porto se havia estribado para recusar a competência desse Juízo.
*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS
A factualidade a considerar é a que acima se reproduziu no relatório.

O DIREITO

A regra geral é a de que são da competência dos tribunais comuns todas as causas que não forem, por lei, da competência de alguma jurisdição especial; aos tribunais especiais só competem as causas que a lei directamente lhes atribua.
Isto mesmo decorre do art. 40º, n.º 1, da Lei 62/2013 de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) (Ver também o artigo 211º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.) ao estabelecer que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais.
A competência dos tribunais judiciais determina-se, pois, por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias não conferidas aos tribunais de competência especializada.
No que toca à competência dos tribunais administrativos, determina o artigo 1º, n.º 1, do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - Lei 13/2002, de 19 de fevereiro) (Ver também o artigo 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.) que “os tribunais administrativos e fiscais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”.
É o artigo 4° do ETAF que enuncia em concreto o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
No caso vertente, o Juízo Local Criminal do Porto baseou a pronúncia da incompetência material na alínea l) do n.º 1 do referido artigo 4º, da qual decorre que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo (Redacção introduzida pelo DL n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.).
Resta, então, apurar se a coima aplicada à recorrente está relacionada com a violação de normas de direito urbanístico, pois só nesse caso se imporá à jurisdição administrativa e fiscal a respectiva apreciação.

À sociedade “A………., Lda.” foi imputada a violação do disposto no artigo 69º do DL 194/2009, de 20 de Agosto, a que corresponde a sanção prevista no artigo 72º, n.º 2, do mesmo diploma.
O referido artigo 69º determina, no seu n.º 1:
“Todos os edifícios, existentes ou a construir, com acesso ao serviço de abastecimento público de água ou de saneamento de águas residuais devem dispor de sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais devidamente licenciados, de acordo com as normas de concepção e dimensionamento em vigor, e estar ligados aos respectivos sistemas públicos”.
Por sua vez, o n.º 2, alínea a) do artigo 72º preceitua:
“Constitui contra-ordenação, punível com coima de (euro) 1500 a (euro) 3740, no caso de pessoas singulares, e de (euro) 7500 a (euro) 44 890, no caso de pessoas colectivas, a prática dos seguintes actos ou omissões por parte dos proprietários de edifícios abrangidos por sistemas públicos ou dos utilizadores dos serviços:
a) O incumprimento da obrigação de ligação dos sistemas prediais aos sistemas públicos, quando tal resulte do disposto no artigo 69.º;”
O diploma onde estas normas se inserem (DL 194/2009) constitui mais uma emanação da Lei de Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril), que se assume como a lei-quadro definidora da política de ambiente, cujos princípios são integrados por um elenco de técnicas básicas de protecção, pelo estabelecimento de uma planificação directamente dirigida à defesa do meio e do ambiente (necessariamente em coordenação com outras espécies de planificação, como a urbanística (Só nesta relação de complementaridade se pode compreender a referência feita no acórdão acima citado (cfr. relatório) de que a infracção se insere no “amplo âmbito do direito do urbanismo”, salientando-se, por outro lado, que aí se teve em consideração a anterior redacção da norma da alínea l) do n.º 1, do artigo 4º do ETAF.) e a económica) e por um conjunto de medidas informais de actuação. O objectivo último é a criação de um ambiente propício à saúde e bem-estar das pessoas e ao desenvolvimento social e cultural das comunidades, em sintonia com a fundamentalidade material e formal do direito ao ambiente e à qualidade de vida consagrado no artigo 66° da Constituição.
O preâmbulo do DL 194/2009 reafirma esse objectivo, na área específica a que se dirige:
“As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente.”
A imposição da ligação dos sistemas prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais aos respectivos sistemas públicos surge assim, ao mesmo tempo, como medida inibidora de poluição de componentes ambientais naturais (água e solo) e como fonte de melhor saúde pública, segurança e bem-estar das populações.
Sendo uma norma de cariz eminentemente ambiental está excluída do âmbito de actuação da alínea l) do n.º 4 do ETAF, na medida em que esta atribui à jurisdição administrativa a apreciação de impugnações de decisões judiciais que apliquem coimas por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo. Ora, como o direito do urbanismo é constituído pelo conjunto de normas e institutos jurídicos que, no quadro das directivas e orientações definidas pelo direito do ordenamento do território, se destinam a promover o desenvolvimento e a conservação cultural da urbe (Luís Filipe Colaço Antunes, “Direito Urbanístico - Um outro paradigma - a planificação modesto- situacional”, Livraria Almedina, 2002, páginas 68 e seguintes.) (figurando portanto como um desenvolvimento ou prolongamento do desenvolvimento do ordenamento do território), facilmente se constata que a norma que esteve na origem da aplicação da coima não tem qualquer ponto de contacto com esta matéria.
*

III. DECISÃO
Em conformidade, decide-se o presente conflito de jurisdição atribuindo-se a competência material ao Juízo Local Criminal do Porto.
*
Sem custas.
*
Lisboa, 21 de Março de 2019. - Henrique Luís de Brito Araújo (relator) – José Augusto Araújo Veloso – José Luís Lopes da Mota – José Francisco Fonseca da Paz – Graça Maria Lima de Figueiredo Amaral – Carlos Luís Medeiros de Carvalho.