Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:04/14
Data do Acordão:06/05/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:PAULO SÁ
Descritores:DIREITO DE PROPRIEDADE.
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL.
CONCESSIONÁRIO.
AUTO-ESTRADA.
Sumário:Compete aos tribunais judiciais conhecer da acção, proposta contra o concessionário de uma auto-estrada e o respectivo empreiteiro, em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade sobre um prédio e do direito à água de uma nascente que para ele corria, bem como uma indemnização pelo desapossamento da água em consequência das obras de construção da auto-estrada (*).
Nº Convencional:JSTA00068765
Nº do Documento:SAC2014060504
Data de Entrada:01/20/2014
Recorrente:A... E MULHER, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O 1 JUÍZO CÍVEL DO TRIBUNAL JUDICIAL DE BARCELOS E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE BRAGA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO
Objecto:NEGATIVO JURISDIÇÃO 1JUIZO CIVEL TRIBUNAL JUDICIAL BARCELOS - TAF BRAGA.
Decisão:DECL COMPETENTE TRIBUNAL JUDICIAL DE BARCELOS.
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDIÇÃO.
Legislação Nacional:CONST76 ART209 ART212 N3 ART268.
LOFTJ ART18.
ETAF02 ART1 ART4.
CPC13 ART64 ART101 ART102 N1 ART288 N1 A ART494 A
CPTA02 ART13.
CCIV66 ART1311.
L 67/07 DE 2007 DE 2007/12/31 ART5 N1.
DL 48051 DE 1967/11/21.
DL 248-A/99 DE 1999/07/06 BASEXXIII.
Jurisprudência Nacional:AC TCF PROC021/12 DE 2012/09/20.; AC TCF PROC08/11 DE 2012/01/12.; AC STA PROC031478 DE 1993/05/13.; AC STA PROC039389 DE 1996/10/01.; AC STJ PROC03A1376 DE 2003/05/27.; AC STJ PROC03B3845 DE 2003/12/11.; AC STJ DE 1990/02/20 BMJ394/453.; AC STJ DE 1995/05/09 CJSTJ ANO II TOMOII PAG68.
Referência a Doutrina:GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA PORTUGUESA ANOTADA 3ED PAG805 PAG815.
MANUEL DE ANDRADE - NOÇÕES ELEMENTARES DE PROCESSO CIVIL PAG90.
REDENTI - DIRITTO PROCESSUALE CIVILE VOLI PAG265.
VIEIRA DE ANDRADE - A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 9ED PAG53-55.
MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA - CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS VOLI PAG26-27.
FREITAS DO AMARAL E AROSO DE ALMEIDA - GRANDES LINHAS DA REFORMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO 2ED PAG36-37.
FERNANDES CADILHA - REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO E DEMAIS ENTIDADES PUBLICAS 2ED PAG55.
MARCELO REBELO DE SOUSA - LIÇOES DE DIREITO ADMINISTRATIVO 1999 PAG148.
FREITAS DO AMARAL - CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO VOLII 2ED PAG167.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:

I. A………….., e mulher, B…………….., propuseram Acção Ordinária contra E.P., ESTRADAS DE PORTUGAL E.P, C………….., S.A. e D……………., ACE, na qual peticionam que:
a) Se declare que os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no Art. 1.º e do direito à água referida nos itens 23.° e 41.° da Pet. Inicial;
b) Se condenem os RR. a reconhecer que o sobredito prédio e a indicada água são propriedade dos AA;
c) E a pagar, solidariamente aos AA, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos, em consequência da ablação e desapossamento do direito à água, quantia não inferior € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.

Alegaram, em síntese, a aquisição originária, por usucapião, e derivada com a inscrição no registo, em seu nome, dum prédio urbano para onde corria a água duma nascente, através dum rego a céu aberto, vinda dum prédio que fica a nascente do seu, invocando o direito à água e servidão de aqueduto.
Com a construção da A11/C14-Esposende-Barcelos, sublanço EN 205/Barcelos, foi destruída a nascente e parte do rego que conduzia a água para o seu prédio, cuja existência era sabida das RR, uma vez que houve a expropriação de vários prédios, incluindo aqueles onde nascia a água e se situava o rego por onde circulava, através dos projectos que elaboraram e executaram para a concretização do troço da auto-estrada.

A ré E.P, Estradas de Portugal defendeu-se por excepção, invocando a incompetência do tribunal, em razão da matéria, e sua ilegitimidade, porquanto a relação jurídica em questão é de natureza administrativa, pelo que são competentes os tribunais administrativos para conhecerem dos pedidos formulados, assim como, através do contrato de concessão que celebrou com a segunda ré, esta é a responsável pela execução da obra e pelos danos que causar.
A ré C…………… defendeu-se também por excepção dilatória, suscitando a sua ilegitimidade, alegando que celebrou um contrato de empreitada com a terceira ré, e suscitou a intervenção provocada da E……………, S.A., com quem a terceira ré celebrou um contrato de subempreitada para a construção do troço da auto-estrada.

A fls. 333 e 334, o Tribunal julgou a excepção dilatória da incompetência do tribunal em razão da matéria e absolveu as rés da instância.

Interposto recurso de agravo pelos AA, veio a Relação a negar provimento ao agravo.

Os Autores intentaram então, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, acção administrativa comum, sob a forma de processo sumário, contra os mesmos RR, tendo formulado idênticos pedidos, com igual fundamentação à da acção proposta nos tribunais comuns

Regularmente citadas, as Rés contestaram, defendendo-se por excepção e por impugnação.

Por excepção, suscitou a Ré Estradas de Portugal a sua ilegitimidade, sustentando, em suma, que a obra em causa nos autos, não foi dirigida por si, antes faz parte do empreendimento que foi concessionado à C…………….., SA., através do Decreto-lei n.° 248-A/99, de 6 de Julho, concessão cujas bases legais foram aprovadas pelo referido diploma, pelo que consequentemente, cabia à C……………. dirigir os respectivos trabalhos de construção, sendo esta responsável pela reparação dos danos causados, nomeadamente a terceiros, em resultado da execução das obras, que era da sua responsabilidade.

Por sua vez, as Rés C…………….., SA, e D…………….., ACE, deduziram contestação conjunta, na qual contrariaram a argumentação expendida pelos Autores, requerendo a sua improcedência, invocaram a sua ilegitimidade passiva, argumentando, no essencial, que são completamente alheias ao processo e decisão de expropriação por utilidade pública da parcela de terreno, onde se situa a nascente e parte do rego que conduzia a água para o prédio dos Autores, que não assumiram qualquer responsabilidade no que se refere à actividade expropriativa, sendo apenas beneficiárias da expropriação e não as entidades expropriantes, uma vez que o Estado Português tomou a decisão de expropriar, a Ré Estradas de Portugal conduziu todo o processo e à C……………., foram entregues, nos termos do n.° 3 da Base XXIII das Bases da Concessão, os terrenos livres de encargos e desocupados.
Concluem, dizendo que não são os responsáveis pelo ressarcimento dos prejuízos alegados pelos Autores e, nessa medida, não têm interesse directo em contradizer, pelo que deverão ser consideradas partes ilegítimas nesta acção.

Notificados das contestações deduzidas, os Autores vieram apresentar Resposta, pela qual contrariaram os argumentos expendidos em sede das excepções suscitadas, concluindo que as mesmas devem ser julgadas improcedentes, por não provadas.

A final, o Tribunal decidiu declarar-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer do mérito da causa e, consequentemente, absolveu as Rés C………………, SA (hoje denominada F…………… SA) e D………………, A.C.E., da instância (Artigos 288.°, n° 1, al. a), do CPC).

O Tribunal de Barcelos suscitou oficiosamente a resolução do presente conflito.

As decisões em causa transitaram em julgado.

Está configurado um conflito negativo de jurisdição.

Foi dada vista ao M. P.° que emitiu parecer no sentido da competência dos tribunais comuns.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação.

A. De Direito

O Tribunal de Barcelos fundou a sua decisão de incompetência no facto de considerar os tribunais administrativos como os competentes em razão da matéria para conhecer da acção, porquanto, atenta a relação material controvertida, tal como configurada pelos AA. constata-se que estes se arrogam titulares de um direito que, em consequência de um processo de expropriação, terá resultado lesado e que não foi considerado pela entidade expropriante, para efeitos de indemnização.

Nesta mesma linha, decidiu a Relação de Guimarães, atribuindo a competência aos tribunais administrativos, por estarmos perante uma actividade administrativa (expropriação), da qual nasceu um dano.

Disse-se neste acórdão:

"Os autores assentam a responsabilidade extracontratual das rés no facto de a EP. Estradas de Portugal E.P.E. ser um organismo público, responsável pela expropriação das parcelas necessárias à realização da auto-estrada, cuja execução terá de fiscalizar, face ao contrato de concessão celebrado com a C………….. e esta está incumbida de acompanhar as obras perante o contrato de empreitada que outorgara com a D…………….. O que está em causa é a execução duma obra pública que emanou dum acto administrativo de expropriação de várias parcelas de terreno, com vista à construção dum troço duma auto-estrada. E incumbia à E.P. Estradas de Portugal assumir o encargo com a expropriação e execução da obra, consequência natural do acto de expropriação. Sem a sua execução, não faria sentido a expropriação dos terrenos. E o certo é que a execução da obra foi conferida à C………….. através dum contrato administrativo de concessão, em que foram definidos os direitos e deveres dos outorgantes. E, através desse contrato, a C…………… assumiu a prerrogativa de entidade administrativa, ou como tal agindo, na execução e exploração futura da auto-estrada em causa. O que quer dizer que a actividade por si desenvolvida, relacionada com a execução da auto-estrada, traduz-se numa actividade administrativa, enquanto confinante à realização do interesse público. Estamos perante uma entidade de direito privado que age como se de entidade pública se tratasse, enquanto executante do interesse público. E é indiferente que se tenha socorrido de colaboradores privados para a realização do fim público. Pois, o que é importante, para o caso, é o fim, que é público. Mesmo os executores colaboradores, não deixam, na sua actividade específica, de comungarem das mesmas prerrogativas da concessionária, enquanto executores da obra. A relação que têm com terceiros é de natureza administrativa, por força do contrato de concessão.
Assim, nesta perspectiva, estamos perante uma actividade administrativa, da qual nasceu um dano, como alegam os autores. E esta actividade administrativa enquadra-se numa relação jurídica administrativa, regulada pelo direito administrativo, e, como tal, subsumível ao artigo 4.° n.° 1 al. g) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais consignados na lei 13/2002 de 19 de Fevereiro. O que quer dizer que os tribunais administrativos são competentes para julgarem esta acção nos termos em que foi explanada na petição inicial, onde foi centrada a responsabilidade extracontratual das rés, perante os autores, pelos danos que causaram aos seus direitos reais violados, em consequência da execução das obras para a construção do troço da auto-estrada.”

Por sua vez, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga sustenta:

As Rés C……………., SA (hoje denominada F……………… SA e D……………., A.C.E., partes legitimas, são sociedades comerciais constituídas segundo um regime de direito privado e que actuam desprovidas de quaisquer poderes públicos, são, pois, entidades de direito privado, sendo certo que a C…………… é uma concessionária, enquanto parte privada de um contrato público de concessão.
Assim, a presente acção, tal como é configurada pelos Autores, radica na responsabilidade civil extra contratual, envolvendo apenas entidades privadas, os próprios Autores e as Rés.
Comungando e fazendo nossa a argumentação exposta no Acórdão do Tribunal de Conflitos (Conflito n.° 8/11 de 12/01/2012) afirmamos que a apreciação dos pedidos formulados nesta acção está excluída do âmbito da pronúncia dos Tribunais Administrativos por se tratarem de matérias cujo conhecimento está reservado aos Tribunais Comuns — Cfr. Artigo 212.° da CRP, 1.º e 4.° do ETAF.
As Rés C…………….., SA (hoje denominada F…………… SA) e D……………., A.C.E., “não agiram ao abrigo de quaisquer prerrogativas de direito público, mas antes como meros sujeitos de direito privado”.
Conclui-se, assim, ser este Tribunal Administrativo, incompetente em razão da matéria para se pronunciar sobre os pedidos formulados pelos Autores do respectivo petitório.
Nos termos do artigo 101.° do CPC e 1.º e 4.° do ETAF a infracção das regras de competência em função da matéria, determina a incompetência absoluta do Tribunal, o que constitui uma excepção dilatória que, como tal, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância — Cfr. Artigo 494.° al. a) e artigo 493°, n.° 2, ambos do CPC.”

Antes de avançarmos reportarmo-nos ainda ao que defende o Ministério Público junto do Tribunal de Conflitos que considera ser competente o Tribunal de Barcelos.

Vejamos.

Conforme dispõe o art.° 209.° da Constituição da República Portuguesa, CRP, existem diversas ordens ou categorias de tribunais (Cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Anotada, 3.ª ed., p. 805), uma das quais a dos tribunais judiciais, que são, nos termos do artigo 211.º da lei fundamental, os «comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».
A competência residual dos tribunais judiciais resulta também do art.° 18°, n.° 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, a Lei n.° 3/99, de 13.01 e do art.° 64.° do CPC, com a redacção dada pela Lei n.° 41/2013, de 26.06, ao referir que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

Outra ordem ou categoria é a dos tribunais administrativos e fiscais, aos quais, de acordo com o preceituado no art.° 212°, n.° 3, da Constituição, compete o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

A competência dessa jurisdição encontra-se ainda prevista e regulada nos art.os 1.º e 4.º do ETAF (Lei n.° 13/2002, de 19/02).

Aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, competindo-lhes, nomeadamente, conhecer das acções sobre responsabilidade civil dos entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso, do mesmo passo que lhes é retirada competência para conhecimento de acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público (arts. 212°, n.° 3, da Constituição da República Portuguesa e 1.º e 4.° do ETAF).

A atribuição da competência em razão da matéria será daquele tribunal que estiver melhor vocacionado para apreciar a questão colocada pelo autor, projectando um critério de eficiência que só poderá ser aferido em função do pedido deduzido e da causa de pedir, donde, portanto, a necessidade de verificar se existe norma que atribua a competência a um tribunal especial e, não havendo, caberá ela, subsidiária e residualmente, aos designados “tribunais comuns” (Cf. Acs STJ de 27.05.03, Proc. n.° 03A1376 e de 11.12.03, Proc. n.° 03B3845, disponível em http.//www.dgsi.pt).

A competência material está ligada à defesa de interesses de ordem pública, pelo que o seu conhecimento deve preceder qualquer outro, podendo ser arguida pelas partes ou suscitada oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão sobre o fundo da causa, nos termos dos art.os 101.°, 102.°, n.° 1, 288.°, n.° 1, a), e 494.°, a), do Código de Processo Civil e art.° 13.° do CPTA.

Como é jurisprudencialmente incontroverso, a competência do Tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca — cf. Acs. do STJ, de 20.2.1990, BMJ n.° 394, p. 453, e de 9.5.95, CJSTJ, ano II, tomo II, p. 68, entre vários.

Porém, MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, p. 90), acerca do critério aferidor da competência material, ensina:

“São vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei).
Constam das várias normas que prevêem a tal respeito.
Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção — seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes).
A competência do tribunal — ensina Redenti (vol. 1, pág. 265), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.
E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes”.

Esta última referência também tem que ser acentuada, pois que a competência em razão da matéria afere-se não apenas nos termos objectivos mas igualmente nos termos subjectivos em que a acção é posta (vide Ac. STA de 13.05.93, Rec.31.478).

Temos, assim, que não deixar de considerar os sujeitos activos e passivos, não perdendo de vista que “[a] competência funcional da justiça administrativa, consiste, como regra geral, em julgar as acções e recursos destinadas a dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas” sendo certo que, com esta expressão, “teve o legislador constitucional e ordinário, em vista apenas os vínculos que intercedem entre a administração e os particulares (ou entre actividades distintas) emergentes do exercício da função administrativa e não genericamente autoritária de qualquer agente do Estado” (Ac. STA de 01.10.96, Rec. 39.389).

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 815) dizem, em comentário ao artigo 212°, n.° 3, da Constituição da República:

“Estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais) (n.° 3, in fine). Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e os recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão do poder público (especialmente administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”. Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”.

Também VIEIRA DE ANDRADE (A Justiça Administrativa, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, p. 55) sustenta: “Esta questão sobre o que se entende por “relação jurídica administrativa”, sendo fulcral, devia ser resolvida expressamente pelo legislador. Mas, na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração (...)”.

Importa, assim, verificar se o caso cabe no âmbito da competência dos tribunais administrativos, de acordo com o critério substancial das “relações jurídicas administrativas e fiscais” do n.° 3 do artigo 212.° da CRP, reproduzido no ETAF, ampliado e restringido em algumas situações previstas no artigo 4.° do ETAF — cfr. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, pp. 26 e 27; e VIEIRA DE ANDRADE, ob, cit. pp. 53 e ss.

Para esse efeito, é entendimento jurisprudencial e doutrinário constante o de que “a competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a acção é proposta, concretamente, afere-se em face do relação jurídica controvertida, tal como configurada na petição inicial, relevando, designadamente, a identidade das partes, a pretensão e os seus fundamentos” cfr., por todos, o acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 20.09.2012, proc. 02112.

Os AA. visam efectivar a responsabilidade civil extracontratual das RR, para o que, começam por peticionar o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio e a água onde os RR. terão causado danos.

Trata-se de uma acção com características de uma acção de reivindicação, havendo três pedidos principais (artigo 1311.° do CC).

Assim, o tribunal competente será aquele que possa conhecer dos três pedidos e não apenas do pedido indemnizatório.

Inicialmente a acção foi proposta também contra a E.P., Estradas de Portugal, EPE.

Porém, a EDP foi absolvida da instância, por ter sido julgada parte ilegítima.

Assim, independentemente da correcção e oportunidade dessa decisão — cfr. art. 13°, último segmento, do CPTA —, uma vez que a mesma não foi impugnada, a questão da competência do tribunal deverá ser decidida, tal como a acção se apresenta actualmente configurada quanto às partes, isto é, sem levar em consideração que a acção foi também proposta contra a EP.

Deste modo, sendo as Rés pessoas jurídicas de direito privado, importa considerar a norma do artigo 4°/1, al. i), do ETAF, segundo a qual compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto “Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.

Só que à data dos actos alegadamente geradores de responsabilidade (teriam sido cometidos em 2005), ainda estava em vigor o regime da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público constante do DL n.° 48051, de 21.11.1967, que apenas era aplicável a entidades, funcionários ou agentes.

Sendo assim, tal como sustentam DIOGO FREITAS DO AMARAL E MÁRIO AROSO DE ALMEIDA (in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 2ª ed., p. 36 e 37), “na ausência de disposições de direito substantivo que prevejam a aplicação do regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público a entidades privadas, parece que a previsão do art° 4°, n.° 1, alínea i), do ETAF permanecerá sem alcance prático: os tribunais administrativos não serão competentes para apreciar a responsabilidade de entidades privadas por não haver norma que submeta (Como se sabe, o novo regime, aplicável também a entes privados, viria a ser aprovado pela Lei n.° 67/007, de 31.12.) essas entidades ao regime da responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas”.

Mesmo que assim se não entendesse, isto é, a propugnar-se pela aplicação ao caso vertente da Lei n.° 67/2007, de 31/12 (que, no seu artigo 5°, n.° 1, dispõe que as disposições que, na referida lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, “são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”, nem assim se atingiria um resultado diferente.

A nova lei é tributária do critério geral substancial da relação jurídica administrativa, porquanto a competência dos tribunais administrativos para conhecer dos litígios que tenham por objecto a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados depende de lhes ser aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público, o que só ocorre “por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”.

Como em anotação à referida norma da Lei n.° 67/2007, CARLOS ALBERTO CADILHA escreve: “... tal como de resto sucede em relação a órgãos e serviços que integram a Administração Pública, o regime da responsabilidade administrativa é apenas aplicado no que se refere às acções ou omissões em que essas entidades tenham intervindo investidas de poderes de autoridade ou segundo um regime de direito administrativo, ficando excluídos os actos de gestão privada e, assim, todas as situações em que tenham agido no âmbito do seu estrito estatuto de pessoas colectivas de direito privado” (Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, 2.ª edição, 2011, Coimbra Editora, Coimbra, p. 55).

Ora, a actividade de “gestão pública” pode ser empreendida por entidades privadas, desde que sujeitas ao direito administrativo e, por essa via, tenham de organizar o serviço público em que colaborem ou operar o seu funcionamento em conformidade com regras e princípios daquela natureza. Tal acontece com as empresas concessionárias que, sendo privadas, exercem actividades materialmente administrativas. Exercendo actividades de gestão pública, não há razões para que, se delas emergirem danos na esfera jurídica de terceiros, estes não possam ser ressarcidos de acordo com as regras que regulam as demais actividades de gestão pública do Estado e demais entes públicos.

Como sustenta M. REBELO DE SOUSA, em Lições de Direito Administrativo, 1999, Lex, Lisboa, p. 148: “A função administrativa é desempenhada essencialmente por pessoas colectivas públicas, entre os quais o Estado-Administração, e, marginalmente, por pessoas colectivas privadas integradas na Administração Pública. As primeiras formam o cerne da Administração Pública e exercem a função administrativa do Estado-colectividade de forma imediata, necessária e por direito próprio, em obediência a opções prévias, que se traduziram no exercício da função legislativa daquele Estado, função principal ou primária. As segundas assumem uma posição secundária dentro da Administração Pública, exercendo a função administrativa por delegação daquelas. Assim, as pessoas colectivas privadas que se encontram nesta posição exercem a função administrativa do Estado por efeito de decisão prévia de uma pessoa colectiva pública, decisão essa que se insere no exercício da função administrativa por parte da pessoa colectiva delegante.”

E, como adverte Freitas do Amaral, também há relações jurídico-administrativas “(...) tão-só entre particulares, desde que no exercício de direitos ou deveres públicos”, Curso de Direito Administrativo, II, 2ª ed. Almedina, Coimbra, p. 167.

Sucede que, embora a R. F…………… seja concessionária da concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação do lanço de auto-estrada em causa, daí não decorre que a actividade de construção, levada a cabo através da Ré D……………., e em que os AA. fundam a invocada responsabilidade civil extracontratual, fosse regulada por normas ou princípios de direito público, derrogatórios do regime geral aplicável aos meros sujeitos de direito privado.

Pelo contrário, como dispõe expressamente a BASE XXIII das bases da concessão, aprovadas pelo DL 248-A/99, de 6 de Julho, “A Concessionária responderá nos termos da lei geral por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito”.

Por conseguinte, a apreciação da acção proposta não respeita a litígio decorrente de relação jurídica administrativa, antes corresponde ao conhecimento de questão de direito privado, da competência dos tribunais judiciais, como em caso assimilável ao presente, este Tribunal dos Conflitos decidiu, no acórdão de 12.01.2012, conflito 8/11, conforme o sumário:
“IV — Assim, cabe aos tribunais comuns a competência para conhecer de Acção ordinária, na qual os autores, invocando a qualidade de proprietários de prédio rústico abrangido por obras de construção de auto-estrada levadas o efeito pelas rés, sociedades de direito privado, pedem a condenação destas no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre aquele prédio, a reposição dos solos nas condições em que se encontravam anteriormente à intervenção das rés e, ainda, à respectiva condenação em indemnização pelos danos causados com tal intervenção.”

No caso em apreço a acção, na configuração resultante dos pedidos e causa de pedir não cabe na competência dos tribunais administrativos.

Por outro lado, quer os AA, quer os RR., são particulares, não está em questão qualquer acto praticado por um particular no uso de poderes de autoridade (caso dos concessionários), nem a acção se funda em qualquer relação jurídico-administrativa.

A acção está claramente dirigida contra particulares, não se inserindo em qualquer dos tipos de acção do contencioso administrativo.

Se é manifesto que não é uma acção relativa a contratos administrativos, nem por responsabilidade extracontratual por actos de gestão pública, também não é uma acção para reconhecimento de um direito ou de um interesse, porquanto, mesmo neste caso, o sujeito passivo teria que ser a Administração (ex vi do artigo 268.° da Constituição da República Portuguesa).

Está, pois, a presente acção fora da competência dos tribunais administrativos, o que nos remete para a competência residual dos tribunais comuns.

III. Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal de Conflitos em decidir o presente conflito no sentido de atribuir competência material, para o seu julgamento, ao Tribunal Judicial de Barcelos.

Sem custas.
Lisboa, 5 de Junho de 2014. – Paulo Armínio de Oliveira e Sá (relator) – António Políbio Ferreira Henriques – João Luís Marques Bernardo – Jorge Artur Madeira dos Santos – João Moreira Camilo – António Bento São Pedro.