Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/23
Data do Acordão:07/05/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
ERRO JUDICIÁRIO
PRISÃO PREVENTIVA
TRIBUNAIS JUDICIAIS
Sumário:Cabe aos tribunais judiciais conhecer do pedido de indemnização por danos decorrentes de uma decisão de decretamento de prisão preventiva alegadamente injustificada e ilegal.
Nº Convencional:JSTA000P31168
Nº do Documento:SAC2023070502
Data de Entrada:01/16/2023
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE SANTARÉM JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE SANTARÉM - JUIZ 2 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA
AUTOR: AA
RÉU: ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 2/23

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
AA, com os sinais dos autos, intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível de Santarém, acção declarativa de condenação contra o Estado, pedindo a condenação do Réu no pagamento de uma indemnização no montante global de 152.000,00€, sendo 42.000,00€ respeitante a danos patrimoniais, 50.000,00€ respeitante a dano biológico e 60.000,00€ a título de danos não patrimoniais, bem como nos juros moratórios "desde a data da entrada do A. no estabelecimento prisional ... em 21/10/2016, até efectivo e integral pagamento" e ainda em custas, procuradoria condigna e custas de parte.
Em síntese, alegou que esteve sujeito a prisão preventiva durante 1 ano, 4 meses e 17 dias à ordem de Processo Crime nº 515/15...., que correu termos no Juízo Central Criminal ... e que tal prisão preventiva ordenada e confirmada pelo Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi injustificada e se ficou a dever a “erro e incompetência, atenta a notória e objectiva falta de provas, relativas aos factos indiciários acusatórios, ínsitos nos relatórios investigatórios das polícias, que ousaram dolosamente entregar no Tribunal”, vindo a ser absolvido. Mais alega que, em consequência da prisão a que foi sujeito, sofreu graves danos morais e patrimoniais e, por isso, pretende a condenação do Réu “em indemnização com base no instituto da responsabilidade civil decorrente da privação da liberdade ilegal ou injustificada, e suas consequências, nos termos dos artigos 225.º e 226.º do Código de Processo Penal”.
O Réu contestou e, além do mais, arguiu a excepção da incompetência material do Tribunal. O Autor pugnou pela competência do Tribunal, defendendo a improcedência da excepção.
Em 26.11.2019, no Juízo Central Cível de Santarém, Juiz 2, foi proferida decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria, absolvendo o Réu da instância.
Os autos foram remetidos ao Tribunal Central Administrativo Sul que, por sua vez, os remeteu ao Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa).
Por decisão proferida em 01.06.2021 foi julgada procedente a excepção da incompetência territorial do TAC de Lisboa, suscitada pelo Réu, e determinada a remessa da acção ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (TAF de Leiria).
No TAF de Leiria o Autor juntou nova petição inicial aperfeiçoada, respondendo a convite do Tribunal, e o Réu contestou arguindo, além do mais, a excepção da incompetência material do Tribunal.
Na sequência, o TAF de Leiria em saneador-sentença proferido em 16.09.2022 declarou a incompetência em razão da matéria para conhecer do objecto dos autos, absolvendo o Réu da instância.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019, de 4/9.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da atribuição da competência para o conhecimento do litígio aos tribunais da jurisdição comum.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível de Santarém, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria.
Entendeu o Juízo Central Cível de Santarém “(…) que a causa de pedir fundamentadora do pedido de indemnização civil ora em análise não é a prática ou a omissão, de qualquer ato jurisdicional, porquanto, desde logo, não revestem tal natureza os atos praticados pelos órgãos polícia criminal. Na verdade, o autor estriba a sua pretensão indemnizatória na alegação dos seguintes factos: - A sua prisão injustificada dado que não havia contra si qualquer prova objetiva da acusação de que foi alvo; - Porém o autor esteve preso de 20 de outubro de 2016 a 7 de março de 2018, tudo isto exclusivamente por erro e incompetência, atenta a notória e objetiva falta de provas, relativas aos factos indiciários acusatórios ínsitos nos relatórios acusatórios das polícias que dolosamente entregaram no Tribunal. - Porque, diga-se em abono da verdade, que foram esses relatórios contendo meros opiniões e imputações sem prova, falseadas dos seus feitores, que motivaram a prisão do autor, convencendo o Tribunal que se estava presente um trabalho investigatório, com competência profissional para responder perante o tribunal coletivo, o que na realidade assim não aconteceu. - Tal foi a evidência do erro grosseiro relativo à inexistência de provas que, finda a audiência de julgamento, quer o Digno Procurador da República, quer o Tribunal coletivo, decidiram, e bem, inocentar plenamente o autor dando ordens de libertação imediata do autor. (…) Na medida em que o autor não imputa a sua prisão, alegadamente ilegal, a um erro de um juiz, mas antes à atividade policial, este Juízo Central Cível não é competente para conhecer da presente ação.”.
Por sua vez o TAF de Leiria considerou que “nos termos da alínea b) do nº. 3 do artigo 4° do ETAF, encontra-se excluída do âmbito da jurisdição administrativa as decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal, bem como nos termos da alínea c) a apreciação de atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões. E, pese embora, não se esteja perante uma ação de impugnação, como é facilmente entendido, o Tribunal para ajuizar a ilicitude deste facto ilícito em concreto, sempre teria, que a título incidental efetuar um juízo sobre a validade desses atos, juízo esse, para o qual não tem competência. Ademais, e ainda que assim não se considerasse, a competência deste Tribunal sempre estaria subtraída ao conhecimento do presente dissídio por força da previsão contida no mesmo normativo no seu nº. 4, alínea a), onde se prevê que estão igualmente excluídas as ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por outras ordens de jurisdição. (…) Por tudo isto, e desde logo, por força da previsão específica para estas matérias no artigo 225° do Código de Processo Penal, se considera este Tribunal incompetente em razão da matéria para apreciar a causa”.
Vejamos.
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta.
Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
A jurisdição dos tribunais judiciais é constitucionalmente definida por exclusão, sendo-lhe atribuída em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais [artigos 211º, nº 1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26/8 (LOSJ)].
Por seu turno, a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo nº 3 do art. 212º da CRP, em que se estabelece que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” e concretizada no art. 4º do ETAF (Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro), com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Na sua petição inicial, o Autor pede a condenação do Réu Estado “em Indemnização com base no instituto da responsabilidade civil, decorrente da privação da liberdade ilegal ou injustificada, e suas consequências, nos termos dos artigos 225.º e 226.º do Código de Processo Penal”. Sustentando, assim, como facto ilícito gerador da responsabilidade a prisão preventiva a que foi sujeito, aplicada pelo Juiz de Instrução Criminal, decisão que alega ser injustificada por falta de provas e baseada nos relatórios policiais que continham meras opiniões e imputações sem prova.
Portanto, da análise do pedido formulado na acção e da respectiva causa de pedir resulta que, para o Autor, existiu um erro de facto ou erro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.
Ora, essa medida de coacção só poderia ter sido aplicada pelo Juiz conforme decorre do nº 1 do art. 194º do Código de Processo Penal (CPP): “À exceção do termo de identidade e residência, as medidas de coação e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Ministério Público e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público, sob pena de nulidade”.
Segundo o disposto na alínea f) do nº 1 do art. 4º do ETAF, compete à jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo.
Por sua vez, estipula a alínea a) do nº 4 deste mesmo dispositivo legal, que ficam excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: “A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso”.
A responsabilidade civil por erro judiciário está submetida a um regime específico próprio contemplado nas disposições dos arts. 13º e 14º da Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro. O nº 1 do art. 13º ressalva o regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, que está concretizado quanto aos pressupostos e regime processual nos artigos 225º, 226º, 461º e 462º do CPP.
Nos termos do art. 225º daquele diploma legal, o direito à indemnização por privação da liberdade abrange as situações de detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação decretadas com violação da lei ou com erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto ou ainda que venha a comprovar-se que o arguido não foi agente do crime ou agiu justificadamente.
Em anotação ao art. 13º da Lei nº 67/2007, sustenta Carlos Fernandes Cadilha que, nos casos de indemnização por privação da liberdade previstos no art. 225º do CPP, “A indemnização deverá ser requerida no tribunal cível territorialmente competente, por efeito do funcionamento da regra do artigo 4.º, n.º 3, alínea a), do ETAF, pela qual estão excluídas do âmbito da jurisdição administrativa «a apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição». Visto que o erro judiciário é imputável, no caso, a um tribunal de instrução criminal ou a um tribunal penal, o direito indemnizatório deverá ser efectivado perante a jurisdição comum” (cfr. Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Anotado, 2008, pag. 208).
Também este Tribunal dos Conflitos, em situações similares, se tem pronunciado uniformemente no sentido de que cabe aos Tribunais Judiciais conhecer do pedido de indemnização por danos decorrentes de uma decisão de decretamento de prisão preventiva injustificada e ilegal (cfr., entre outros, os Acórdãos de 21.10.2014, Proc. nº 034/14 e de 08.11.2018, Proc. nº 27/18 e jurisprudência aí citada).
De acordo com a referida orientação jurisprudencial, transponível para o presente caso, e configurando-se a causa de pedir da acção indemnizatória num alegado erro praticado por um órgão jurisdicional, estranho ao foro administrativo, na emissão da decisão de prisão preventiva do Autor, tida por injustificada e ilegal, a presente acção está excluída da competência material dos tribunais administrativos, cabendo a competência material para a apreciar e decidir aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Central Cível de Santarém, Juiz 2.
Sem custas.

Lisboa, 5 de Julho de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.