Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02/03
Data do Acordão:12/18/2003
Tribunal:CONFLITOS
Relator:ANTÓNIO NEVES RIBEIRO
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL.
PENHORA.
EMBARGOS DE TERCEIRO.
RELAÇÃO JURÍDICO ADMINISTRATIVA.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA.
Sumário:I - Estando em conflito uma relação de direito público, entre o Estado (Administração fiscal) e um particular ao qual, em execução fiscal, em que não é parte, foi penhorado indevidamente, a sua casa de habitação, cabe à jurisdição fiscal o conhecimento da legalidade da penhora efectuada pelo Fisco.
II - Para a determinação da natureza, pública ou privada, da relação litigiosa, assim constituída entre Estado e particular, e da consequente determinação do tribunal competente para dela conhecer, deve considerar-se a acção (pedido e causa de pedir), tal como foi proposta pelo particular/autor, tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo Tribunal que relevem da exacta configuração da causa.
Nº Convencional:JSTA00062172
Nº do Documento:SAC2003121802
Data de Entrada:01/13/2003
Recorrente:B... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 2 JUÍZO CÍVEL DA COMARCA DE AVEIRO E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO DO CÍRCULO DE COIMBRA
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:CONFLITO.
Objecto:TR DE COIMBRA.
Decisão:DECLARA COMPETENTES OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Área Temática 2:DIR JUD - ORG COMP TRIB.
Legislação Nacional:ETAF84 ART3 ART4.
ETAF02 ART49 N1 D.
CPPT99 ART215 N1.
L 103/03 DE 2003/12/05 ART1.
DL 303/03 DE 2003/12/05.
Jurisprudência Nacional:AC STJ DE 1994/09/17 IN CJST.; AC STJ PROC800/97 DE 1998/03/19.; AC STA DE 2000/09/27 IN AP-DR DE 2003/01/17.; AC STJ DE 1980/04/17 IN BMJ417 PAG851.
Jurisprudência Internacional:MARCELLO CAETANO MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO PAG1131.
VAZ SERRA RLJ ANO110 PAG315.
MOTA PINTO TEORIA GERAL DO DIREITO CIVIL PAG32-45 3ED.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal de Conflitos:
I
Razão do recurso
1. A Fazenda Nacional moveu a execução fiscal nº 10.1671.7/97, através da
Repartição de Finanças de Aveiro, contra A..., por dívidas fiscais, da sua responsabilidade.
Então, este, nomeou à penhora o prédio urbano, composto de casa de habitação, de rés-do-chão e sótão, com a área coberta de 150 m2, pátio com 225 m2, e quintal, com 225 m2, sito na Rua ..., nº ..., freguesia de ..., concelho de Aveiro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, sob o nº 05496/241197, conforme documentos de fls. 129 a 132.
A penhora fiscal foi efectuada por termo lavrado no mesmo processo, em 4 de Março de 1998, e levada ao registo predial.
2. As dividas haviam sido contraídas pelo executado e venceram-se posteriormente ao decretamento do divórcio, entre ele e sua mulher, a indicada B..., autora da acção donde emerge o presente recurso, e por ela interposto.
O réu A..., omitindo o seu estado civil e o facto de não lhe pertence todo o imóvel identificado, mas à comunhão, ainda então, indivisa, do seu dissolvido casal com a autora, não hesitou em nomeá-lo a penhora fiscal.
3. Logo que teve conhecimento desta nomeação, a autora expôs a situação ao Chefe da Repartição de Finanças de Aveiro, onde pende a execução fiscal, tentando evitar o recurso a tribunal.
Mas não teve êxito, vendo aquele seu requerimento indeferido.
4. Foi então que a autora, em 21 de Dezembro de 1998, (na conjuntura da venda, por ordem fiscal) instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, com base no que acaba de ser exposto, acção declarativa, com processo sumário, contra o réu A..., seu ex-marido, e contra o Estado Português, pedindo que:
a) se declare “(...) que o identificado imóvel pertence ao património comum, ainda indiviso, do dissolvido casal da A. com o 1º R., fazendo parte da respectiva comunhão”.
b) se declare “(...) a nulidade da penhora efectuada sobre aquele bem no identificado processo de execução fiscal, assim como da venda que eventualmente venha a ser feita na sequência dessa penhora, ordenando-se o cancelamento dos respectivos registos”.
c) Se condenem os “(...) RR. a indemnizarem a A. pelos prejuízos que lhe causaram e venham a causar com os acto descritos, no montante que vier a ser liquidado em execução de sentença”.
5. Citados os dois réus, apenas o Estado Português, por intermédio do Digno Magistrado do Ministério Público, deduziu oposição, impugnando o alegado pela autora no seu articulado inicial.
6. A Senhora Juíza do 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Aveiro proferiu despacho, decidindo absolver ambos os réus da instância. (Fls. 136/137), com base na incompetência absoluta do tribunal comum para conhecer da matéria da causa.
7. A autora, B..., interpôs recurso (de agravo) do aludido despacho, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra negado provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. (Fls. 182/184).
8. É daí que decorre o presente recurso para o Tribunal de Conflitos, proposto pela autora, B..., com suporte, entre outros, no artigo 107º-2, do Código de Processo Civil.
II
Objecto do recurso
O objecto do recurso é traçado pelas conclusões da recorrente (fls 191 e seguintes, e artigos 684º-3 e 4, e 690º-1 e 2, do Código de Processo Civil aplicável supletivamente, como dispõe o artigo 357º do Código de Processo Tributário).
Conclusões que são as seguintes:
I – A agravante não é parte na instância executiva (fiscal), não podendo, assim, recorrer dos actos ali praticados, designadamente, da penhora ajuizada, nos termos (de atribuição de competência) emergentes do artº 118º do CPT.
II – O CPT admite o incidente de embargos de terceiro, para defesa da posse, no seu artº 319º – mas, exclusivamente para defesa da posse.
III – Não sendo obrigatório que o lesado recorra a esse procedimento.
IV – Além de que pode ter interesse em discutir o direito de propriedade, cuja apreciação está expressamente vedada à jurisdição fiscal no artº 320º do mesmo CPT.
V – Que expressamente remete a apreciação dessa questão para o tribunal comum, mesmo que se trate do Estado.
VI – Na sequência (e tendo como pressuposto), aliás, do disposto na alínea f) do artº 4º do ETAF, que expressamente retira aos tribunais fiscais competência para apreciar questões de direito privado, mesmo que um dos intervenientes seja pessoa de direito público.
VII – A questão que se discute na presente acção é eminentemente (exclusivamente) de direito privado – ou seja, expressamente excluída da jurisdição fiscal.
VIII – Sendo, materialmente, da competência da jurisdição comum – artº 18º da LOTJ.
IX – Além disso, e salvo o devido respeito, não se afigura correcto o entendimento de que só em embargos de terceiro pode ser defendida a “posse”.
X – Uma vez que isso igualmente pode ser feito na acção de reivindicação prevista no artº 910º do CPC, por implícita remissão para o disposto no artº 1311º, nº 1, do CC.
XI – E está expressamente previsto no artº 256º do CPT, onde se prevê especificamente a defesa da posse por esse meio.
XII – O que implica não ser obrigatório ou exclusivo para esse fim o incidente de embargos de terceiro.
XII – O acórdão recorrido, tal como o despacho proferido em 1ª instância, violaram, todas as disposições legais citadas.
III
Colocação do problema e fundamentos da sua resolução
1. O problema consiste em saber, se estamos em presença de uma questão administrativa (fiscal) para a qual é, em princípio, competente o tribunal tributário; ou se a questão é meramente de direito privado, para a qual é competente o tribunal comum.
É competente o tribunal tributário! disseram as instâncias, secundadas pelo parecer do Digno Agente do Ministério Público (fls.233).
É competente o tribunal comum! diz a recorrente, porque – em resumo – estamos perante uma questão de direito privado.
Aceitando algum risco de coligir ideias já conhecidas e adquiridas sobre o tema, que vem colocado, julgamos de algum interesse reciclar o enquadramento normativo da questão – o que ajuda à compreensão geral da sua análise e ao bom encaminhamento do discurso que conduz ao resultado final decisório.
É o método de tratamento da matéria, que seguiremos.
Assim:
2. A competência judiciária em razão da matéria (a par da competência hierárquica e da competência internacional) é de ordem pública.
Só pode decorrer da lei; e é indelegável, a não ser que a lei permita a delegação.
Fixa-se em função da natureza da matéria a judicar, sendo critério relevante da sua atribuição, a escolha do tribunal que mais vocacionado estiver para dela conhecer. (Seguimos de perto um alinhamento de pensamento que, a este propósito, foi usado no acórdão proferido no agravo nº 1484/03, em 27 de Maio de 2003 e no agravo nº 3445/03, em 27 de Novembro de 2003, ambos decididos pelo STJ, relatados, pelo também aqui, relator.)
Reclama a eficiência de organização judiciária com vista à melhor prestação da qualidade da justiça pública.
Por isso, releva de interesse público fundamental, dando lugar à sanção da incompetência absoluta do tribunal que dela conheça, em violação das regras que a determinam (artigo 101º do Código de Processo Civil).
E determinam-na, procurando adaptar o órgão à função, assegurando a idoneidade funcional do juiz, através de uma relação de pertinência o mais apropriada possível, entre ele e a matéria da causa de que deve conhecer.
O critério de atribuição de competência material ao juiz projecta a vocacionalidade, aptidão, adequação ou agilização do tribunal à causa.
Todos são vocábulos de conteúdo homólogo, traduzindo, na essência, a habilitação funcional do tribunal para a matéria que constitui objecto do conhecimento que em cada causa estiver.
Idoneidade do juiz, como se começou por referir, e também assim lhe chamou o Professor Alberto Reis. (Página 107 do Comentário ao Código de Processo Civil, volume I.)
Num Estado de Direito, é fundamental a bondade da lei organizativa judiciária, no acerto e determinação dos factores objectivos de conexão ou elos materiais de ligação correspondentes, para que o Estado cumpra, ao mais alto nível possível, a qualidade da prestação judiciária pública.
E quanto mais apurado for o critério atributivo de competência material (só para falar desta), melhor sortirá a garantia da qualidade com que a Justiça é administrada ao cidadão a quem se destina.
3. A organização judiciária portuguesa integra, fundamentalmente, três Ordens – a que a Constituição chama categorias de tribunais (artigo 209º).
Em jeito de organograma, poderemos traçar o quadro seguinte:
A Ordem Constitucional; A Ordem Judicial Comum e a Ordem Administrativa (que envolve a fiscal).
Fixemos então a nossa reflexão sobre as duas últimas Ordens Judiciárias, verificando como elas ganham visibilidade na Constituição do modo que assim se enuncia:
O artigo 212º, nº 1, diz, relativamente à jurisdição comum:
«Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas as outras ordens judiciais».
E o artigo 214º, nº 3, diz quanto à ordem administrativa:
«Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais».
A regra geral é a da jurisdição comum e sempre subsidiária.
Não se estranha, por isso, que o artigo 18º, nº 1, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ), recuperando uma orientação que já estava, e está, no artigo 66º do Código de Processo Civil, venha confirmar que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
De resto, não é por acaso do que, os tribunais que, integram a ordem judiciária comum, são designados na linguagem corrente, e vulgarmente, como os “tribunais comuns”. (No sentido corrente – vulgar, comum ou civil – do ensinamento que Miguel Real chama ao Código Civil (ao novo Código Civil brasileiro, em vigor desde o princípio deste ano), a “Constituição do Povo”.)
4. Quando a Constituição e a Lei estabelecem e organizam (estatuem) a Ordem Judiciária do Estado, fixam as competências dos órgãos judiciais integrantes da estrutura judiciária correspondente.
Por forma que, a cada categoria judiciária orgânica é atribuída uma parcela ou medida da jurisdição.
É a competência ou fracção de poder jurisdicional da categoria orgânica respectiva a que são afectadas certas matérias
Portanto, basta examinar a lei orgânica de determinada categoria de tribunal, para se verificar se certa causa está, ou não, compreendida na área da sua jurisdição.
Como exercício de análise, inserido no método de conhecimento proposto, iremos proceder a esta verificação, tendo em conta a causa concreta da acção, donde emerge o recurso, na versão apresentada pela autora/recorrente, através da petição inicial. (Pontos 1 a 4, Parte I).
5. O artº 3º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na Linha do que estatui a Constituição, no preceito anteriormente reproduzido, dispõe que «incumbe aos tribunais administrativos e fiscais... dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais».
E o artigo 4º, ao estabelecer, nas várias alíneas, os limites da jurisdição administrativa, exclui do âmbito dessa jurisdição, na alínea f), as acções ou recursos que tenham por objecto: ... « as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja uma pessoa de direito público». (É a seguinte a formulação das normas parcialmente correspondentes, do novo Estatuto a vigorar a partir de 1 de Janeiro de 2004: «Compete à jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de direito administrativo ou fiscal; ... responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime especifico da responsabilidade do Estado e demais pessoas de direito público». (Alíneas a) e i), do artigo 4º, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro.
Para as antigas Auditorias, no domínio dos artigos 815º e 816º, do Código Administrativo, o contencioso por elas conhecido, já excluía desses tribunais administrativos as questões sobre direito de propriedade ou posse; e incluía os pedidos de indemnização por danos decorrentes de actos de gestão pública).
6. É assim ponderoso verificar, como já ficou dito acima, se, a questão colocada pela autora na acção, é uma questão de direito privado, ou uma questão de direito público, não obstante o recorrido ser uma pessoa jurídica, direito público – a pessoas das pessoas jurídicas internas – ou seja, o Estado Português.
Se for uma questão de direito público, estaremos perante uma causa que deve pertencer ao foro administrativo/ fiscal, sendo incompetente o foro comum, comum, como decidiram as instâncias.
Se for uma questão de direito privado, naturalmente que cairemos na competência do foro comum, conforme pretende a recorrente.
Vamos, então, explorar este caminho:
a) – Primeiro, através de uma ideia básica e simplificadora sobre a noção de relação de direito público, de natureza fiscal – o que ajuda à compreensão do que vai dizer-se e do sentido da decisão a que vai chegar-se. E,
b) Depois, no numero seguinte, veremos como vem apresentada, e como se caracteriza, a relação conflituosa, na configuração da acção proposta pela recorrente.
Voltemos, então, àquela ideia primária: a noção de relação jurídica, de direito público (em que o direito tributário se integra), versus relação jurídica de direito privado. (As fontes doutrinais portuguesas consultadas e que, sobre esta distinção, nos pareceram mais didácticas, são Manual de Direito Administrativo, edição brasileira, páginas 1131 e seguintes, do Professor Marcelo Caetano; A RLJ Ano 110º, páginas 315 e seguintes, um estudo do professor Vaz Serra. Também o acórdão deste Tribunal, de 17 de Setembro de 1994, publicado na CJSTJ II; e de 19 de Março de 1998, proferido no agravo 800/97, contêm vários elementos de reflexão com interesse para a distinção da matéria: questão de direito privado.
A relação de direito público é regulada essencialmente por normas de direito público; a relação de direito privado é regulada por normas de direito privado. É do ABC dos Manuais Jurídicos que estudam estas matérias, em que, classicamente, repousa, quer a dicotomia (apenas pedagógica – claro!, já que o Direito é um todo inteiro) dos grandes ramos: Direito Público/Direito privado; quer a dupla função do direito objectivo – público e privado. (Organizar os poderes do Estado (estatuto do poder) e as suas relações com o cidadão (Direito público); e disciplinar as relações entre estes (Direito privado).
Dos vários critérios de distinção (o da natureza dos interesses; o da posição dos sujeitos; ou o da qualidade em que intervêm na relação), (Por todos, pode conferir-se para maiores desenvolvimentos, o Professor Mota Pinto, na obra, Teoria Geral do Direito Civil, páginas 32 a 45, 3ª edição, actualizada, 1996.) aquele que mais tem recolhido o consenso generalizado da doutrina e da jurisprudência, é o que considera a qualidade em que o sujeito (público) intervém na relação jurídica.
Será ma relação de direito público, quando um dos sujeitos (o de direito público) intervém na relação jurídica que em causa estiver, numa qualidade que lhe confere, por lei, e em razão do interesse publico que prossegue, uma posição de supremacia sobre o outro sujeito dessa mesma relação, impondo-lhe unilateralmente a sua vontade, por via da necessidade daquele prosseguimento.
Com a crescente criação de situações novas de tipo social a tutelar pelo direito, em domínios onde o traço de demarcação entre o público e o privado é cada vez mais difícil de definir (assim, por exemplo: no direito do trabalho, no direito financeiro, da bolsa, da banca, dos seguros, do consumo, do ambiente, da bioética, do desporto, da negociação à distância, das novas tecnologias...) uma correcta perspectivação (Perspectivação que encontra dificuldades progressivas – de método e de objecto – à medida que, de uma Sociedade clássica e de relacionamento pessoal imediato, se vai mudando para uma Sociedade de Informação e de Conhecimento, de tipo relacional mediato, e à distância.
Acode, por isso, à análise, a lembrança do conceito actual de Sociedade de Informação: A Sociedade de Informação é uma sociedade onde a componente da informação e do conhecimento desempenham papel nuclear de todos os tipos de actividade humana, em consequência do desenvolvimento da tecnologia digital, e da INTERNET em particular, induzindo novas formas de organização da economia e da sociedade. No seu estágio final, a Sociedade de Informação é caracterizada pela capacidade dos seus membros (cidadãos, empresa e Estado) de obterem e partilharem qualquer tipo de informação e de conhecimento instantaneamente, a partir de qualquer lugar e forma mais conveniente. (Sobre esta matéria deve ter-se em conta, o Plano de acção para a Sociedade de Informação, em Portugal, e que pode ler-se, no D.R. I Série – B de 12 de Agosto de 2003) do que seja, e deva ser, o âmbito do direito público e privado, impõe-se, como forma de modelar a intervenção do próprio direito (e do Estado) (Nesta perspectiva, o conceito de Direito acaba por se identificar com o conceito de Estado, como expressão normativa deste) na vida social, aproximando-se, tanto quanto possível, e na medida socialmente útil, da sua real função normativa, reguladora da vida das pessoas, e delas próximo, enquanto cidadãos – agentes individuais ou intergrupo.
É exactamente com este sentido que pode afirmar-se, na esteira de Radbruch que “nada caracteriza melhor uma determinada Ordem Jurídica do que a relação em que, dentro dela, são colocados, um em face do outro, o Direito Público e o Direito Privado, e o modo como aí, são distribuídas, entre estes dois domínios, as diversas relações jurídicas”.
Trata-se – passe a expressão, quando falamos de direito público – de uma relação de poder, que se desenha em modelo vertical. De cima para baixo, como estrutura típica do poder, através da relação Estado/Cidadão. (Aqui, o conceito excede o âmbito do Estado/Administração, para se rever na abrangência do próprio conceito Estado/Colectividade. (Sobre estes conceitos O Estado nos Tribunais, 2ª edição, páginas 54 e seguintes; 179 e seguintes).
E de cima para baixo, enquanto projecta o exercício de um poder de soberania (na linguagem antiga: um poder majestático), ou uma sua parcela, mas sempre de forma imperial, impositiva e unilateral, como acto de poder soberano (o tão apregoado Jus Imperii).
Ao contrário, a relação de direito privado estrutura-se na horizontal, ou seja, pessoa a pessoa, numa posição em que os dois sujeitos, estão confrontados numa situação de igualdade, formal e substancial: são verdadeiros pares iguais, gozando de um igual estatuto, e de idêntica qualidade relacional, igualmente vinculados na modelação dos correspondentes direitos, deveres e sujeições, recíprocos, a que estão adstritos.
Nenhum dos sujeitos tem, ou actua, na qualidade de “Majestade” na relação que os vincula reciprocamente.
Mas ambos estão colocadas no mesmo plano de estatuto jurídico, sem que um se superiorize ao outro, na regência do vinculo jurídico que os liga, pelos ditos direitos, deveres e sujeições.
7. Traçado este quadro dogmático-normativo, donde decorre a solução do problema, é altura de particularizar, verificando, conforme ficou enunciado atrás, como é que a relação jurídica em conflito é apresentada na acção. (ponto 6, b).
Em bom rigor a autora veio pedir o reconhecimento do seu direito de propriedade (comum) sobre o imóvel
Por isso: « ... que se declare que o identificado imóvel (é o prédio penhorado pelo Fisco) pertence ao património comum, ainda indiviso, do dissolvido casal da A. com o 1º R., fazendo parte da respectiva comunhão”. [(Sic – Parte I, nº 4, alínea a)].
Como vem salientado nas decisões proferidas pelas instâncias, este pedido não tem verdadeira autonomia, face aos pedidos seguintes [( Parte I, ponto 4, alínea b)], de declaração de nulidade da penhora e da eventual venda do bem penhorado, de cancelamento dos registos efectuados e ainda do pagamento de uma indemnização. [(Parte I, ponto 4, alínea c)].
A autora enunciou tal pedido apenas como suporte dos outros, seus consequentes.
Efectivamente, a “centralidade” da acção projecta-se na reacção contra uma penhora fiscal mal efectuada pelo Fisco. O resto (a definição de propriedade, o cancelamento do registo da penhora, a indemnização por facto ilícito) é puramente acessório, iludindo um claro “desvio” do fundamental – o pedido nuclear da causa.
Sejamos preciso:
O que a autora não quer evidentemente, é a penhora fiscal!
A propriedade está definida e não é controvertida. Não é verdade o que diz na conclusãoVII, transcrita (“a questão que se discute nesta acção é exclusivamente de direito privado, expressamente excluída da jurisdição fiscal”), e, daí, todo o exercício e resultado, errados que desenvolve sobre este pressuposto.
Ainda por delimitação negativa do pedido, afastando tal pressuposto:
ressalta dos autos, nomeadamente dos documentos juntos, que não constitui matéria litigiosa entre as partes, a questão da existência do direito de propriedade sobre o identificado imóvel e respectivos titulares ou contitulares.
É assim, melhor explicado: tinha sucedido que a recorrente/autora celebrou casamento com o réu A..., em 22 de Dezembro de 1974, no regime da comunhão de adquiridos; e, por sentença proferida em 27 de Novembro de 1996, transitada em julgado em 16 de Dezembro de 1996, foi decretado o divórcio entre os dois, como mostra pelos documentos de fls. 10 a 15.
O imóvel tinha sido comprado pelo réu, em 16 de Março de 1996.
A execução fiscal foi instaurada em 1997, tendo a penhora ocorrido em 4 de Março de 1998.
Em 29 de Junho de 1998, foi requerido para partilha dos bens comuns, em que se integra a identificada casa, o qual está pendente no Tribunal de Família e Menores de Aveiro, com o nº 868/98, continuando a habitá-la em virtude de a mesma lhe ter sido atribuída em arrendamento, conforme decisão, já transitada em julgado, proferida na acção especial de atribuição de casa de morada de família, com o nº 868/98-A.
O imóvel foi adquirido, por compra, pelo ex-cônjuge da autora na constância do casamento, assim ingressando no acervo do património conjugal comum.
É dado adquirido que a autora não é devedora, nem executada, nunca teve qualquer intervenção no processo de execução fiscal.
E sempre ignorou a realidade descrita, para a qual foi alertada pelo filho mais velho, já na conjuntura da marcação do dia para a venda do imóvel, em 21 de Dezembro de 1998.
Entretanto, e já pendência destes autos, foi objecto de partilha no âmbito de processo de processo de inventário, passando a autora a deter a titularidade exclusiva do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel (vide fls. 113 a 133).
É bom de ver insista-se, que não está em causa a definição da propriedade da casa.
Está em causa a penhora que o Estado realizou, como credor de dividas fiscais e titular do poder tributário.
Trata-se de um acto unilateral e impositivo da Administração, regulado por normas de direito público, claramente expressivo do Jus Imperii, que determina, a constituição de uma relação de direito público, enquanto traduzida por acto ofensivo da propriedade privada da recorrente, praticado ao abrigo daquele direito (daquele “império”):
E quanto ao concreto fundamento do pedido indemnizatório dirigido ao réu, Estado, também o pedido decorre da mesma ofensa, derivada do exercício de um poder público do Estado.
Sucede ainda que, relativamente ao réu A..., a autora não alegou na acção, factualidade suficiente para tornar compreensível o pedido indemnizatório dirigido contra este mesmo réu, o que inviabiliza o desencadeamento da correspondente da pretensão indemnizatória, por falta de causa de pedir.
E observe-se, por fim, e neste particular aspecto, o objecto do recurso interposto para este Tribunal, delimitado na Parte II, pelas enunciadas conclusões, não contem a reapreciação da questão da competência quanto ao pedido indemnizatório.
8. Que é como quem diz que, tudo o que em causa está, no objecto do recurso trazido a este Tribunal de Conflitos (e na acção), projecta-se numa relação de direito público, porque regida pelo direito público como ficou explicado.
Pelo que, possível ainda é – reforçando a análise – olhar as coisas se outra maneira, se, e na medida em que, o discurso que segue, não esteja já contido no que precede.
Um dos sujeitos – Estado – intervém na relação no exercício de um Jus Imperii, vis a vis o outro sujeito – o particular – que se queixa ofendido no seu direito de propriedade, com uma penhora de um imóvel, que é seu.
Está aqui, claramente, o Estado, como tal (Estado-Administração Fiscal) contra um particular – o cidadão – numa relação jurídica, assim constituída, e que opõe um ao outro – o autor e o réu na relação controvertida, na acção e nos recursos.
Trata-se, como é bom de ver, de uma relação gerada com o mandado de penhora (artigo 215º -1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário; ex- artigo 297º, do Código de 1991) ordenada pelo Estado, através da autoridade fiscal competente, para execução de dividas fiscais, sobre coisa que, na tese da acção, é propriedade comum da recorrente.
Há ou não – pergunta-se? – alguma manifestação dos Jus Imperii por que se revele esta conduta da Administração fiscal, como acima se disse?
Interrogarmo-nos sobre a questão, é responder-lhe!
O Estado actuou no exercício de um poder público, apreendendo judicialmente o bem, para se garantir de uma divida de que é credor, ou nessa qualidade.
Usou das “armas de Estado”, como Administração fiscal e como titular do poder tributário sobre os seus cidadãos – pessoas singulares ou jurídicas.
Não se trata de um crédito do Estado, como um qualquer credor privado, sujeito a regras do direito civil ou comum – na forma da relação, na substância que a regula e na tutela judiciária que a garante.
Não estamos perante um cenário de realização coactiva da prestação, ou de acção de cumprimento e execução de que tratam, pela substância, os artigos 817º a 830º do Código Civil, e pela forma processual, os artigos 801º e seguintes, do Código de Processo Civil.
Tanto é dizer que, a qualidade em que intervém o Estado, na relação conflituosa donde emerge o recurso, não é idêntica a um qualquer exequente particular, a requerimento do qual se fizesse judicialmente a penhora de um determinado bem, para garantir uma divida privada, que atingisse esfera jurídica de outrem, não devedor.
A divida é fiscal, (Por outras palavras, trata-se de “um crédito emergente de relação juridico-tributária proveniente de tributo fiscal”, na definição do artigo 1º da Lei nº 103/03, de 5 de Dezembro, que regula a cessão de créditos do Estado; e do 3º do Decreto-Lei nº 303/03, da mesma data, diploma que mantém a competência dos tribunais tributários e dos tribunais administrativos, como se o cedente (o Estado) mantivesse a titularidade do crédito (nº 3, artigo 5º, do Decreto-Lei indicado) com todas as garantias, formas de oposição, processo de cobrança, venda e pagamento, que o Código de Procedimento e de Processo Tributário confere a esta modalidade de execução (artigos 195º a 258º, entre outros).
Daí que tenha colocado a autora, ao penhorar o que é dela, numa rota de colisão entre ele, Estado, e ela, dona do bem indevidamente atingido.
Natural se evidencia, agora por este prisma, que o conflito Recorrente/Estado, se situa na discussão da legalidade da penhora efectuada, no âmbito de uma relação juridico-tributária, como a define o artigo 1º- 2, da Lei Geral Tributária, ao pretender este último (o Estado) cobrar um tributo “para a satisfação de necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas para promover a justiça social, a igualdade de oportunidades e as necessárias correcção de desigualdades na distribuição da riqueza do rendimento” (artigo 5º- 1).
O que está, e sempre esteve, em causa na acção (e nos recursos) foi a penhora efectuada e, consequentemente, a crise da relação tributária, em que um dos sujeitos dessa relação – o Estado – se apresenta a exercer um poder público. E por aí, lesando a esfera jurídica de um particular – o cidadão – sendo que a natureza da relação, pela qualidade em que o Estado nela intervém, determina a forma judicial de tutela – do Estado e do particular atingido – através de foro apropriado, integrante da Ordem administrativa (fiscal) de que, de inicio, se falou.
9. Uma palavra final sobre a queixa da recorrente, quando se diz desprotegida, perante o caracter publicistico da relação.
Feita a penhora e junta a certidão de ónus, deverá ser citado o “cônjuge do executado”, quando a penhora incida sobre bem imóvel, citação que não terá ocorrido no mencionado processo de execução fiscal e era exigida pelo artigo 321º, nº 1, então vigente, do CPT.
Certo é que, não lhe estavam vedados os embargos de terceiro (ou outros meios de oposição que não cabe aqui diagnosticar), a contar da data em que teve conhecimento do acto ofensivo da sua propriedade, uma vez que a casa ainda não tinha sido vendida (nem foi ainda). – Artigo 319º do CPT; actual, 237º - (12/13) (No sentido do meio próprio serem os embargos de terceiros, entre outros, podem ver-se, o acórdão do STJ de 17 de Abril de 1980, no BMJ, nº 296, páginas 229; o acórdão do tribunal de 2ª Instância, de 26 de Maio de 1992, publicado no BMJ nº 417, páginas 851; e o acórdão do STA, de 27 de Setembro de 2000, publicado no DR, de 17 de Janeiro de 2003 (Apêndice), páginas 3213 e seguintes. (Contencioso tributário)./(O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei nº 13/02, de 19 de Fevereiro) que vigora a partir de 1 de Janeiro de 2004, diz no seu artigo 49º, nº 1, alínea d) que ... « Compete aos tribunais tributários ... conhecer dos incidentes, embargos de terceiro, verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposição e impugnação de actos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas no processo de execução fiscal».
Por último, diga-se que este Tribunal de Conflitos, ainda recentemente, no seu acórdão de 13 de Maio de 2003 (processo nº 06/03), decidiu que, pendendo a execução fiscal numa repartição de finanças e devendo esta remetê-la ao tribunal tributário, por força do disposto no nº 1, do artº 151º do CPPT, é este o competente para decidir da respectiva oposição, e não os tribunais comuns.
Nem podia ser diferentemente!
10. Em conclusão:
a) Em forma concisa, o que está em causa na acção donde emerge o presente recurso, é a apreciação da legalidade, ou não, da penhora efectuada pela autoridade fiscal, do imóvel, actualmente propriedade da recorrente, (então, bem comum do casal) para pagamento de dividas fiscais, de exclusiva responsabilidade de seu ex-marido.
b) A situação traduz um conflito regulado pelo direito público, e, porque assim é, revê-se, na linguagem da lei transcrita, numa “questão de direito público” entre o Estado (Administração fiscal), e um particular, atingido na sua esfera jurídica por um acto administrativo fiscal que tem subjacente a mesma questão.
c) Para a determinação da natureza pública ou privada da relação litigiosa correspondente, e da consequente determinação do tribunal competente para dela conhecer, deve considerar-se a acção (pedido e causa de pedir), tal como configurada pela autora, tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo Tribunal que relevem da exacta configuração dos termos da causa proposta.
d) A configuração da acção feita pela recorrente mostra que não está em apreço judicial a definição de qualquer questão de propriedade (ou de obrigação de indemnizar), mas, essencialmente, e apenas, uma questão de direito público, relativa á legalidade da penhora fiscal, efectuada nas condições de facto que ficaram descritas. (Rectius: Parte III, ponto 7).
e) Consequentemente: não aproveita à recorrente, por um lado, a forma como vem configurada a acção proposta, o modo como a fundamenta e o efeito jurídico que dela pretende retirar; e, por outro lado, também não lhe aproveita o modo como, paralelamente, vem pressuposto, deduzido e concluído o recurso (Parte II), emergente da mesma acção.
f) Estão assim prejudicadas, e improcedem, todas as conclusões do recurso, descritas na Parte II.
IV
Decisão
Ponderando tudo quanto se expôs, acordam no Tribunal de Conflitos, em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, ou seja, julgam incompetente o tribunal comum, em razão da matéria, para o conhecimento da causa, tal como esta foi apresentada pela autora, na acção donde emerge o presente recurso, sendo competente a jurisdição fiscal.
Custas pela autora/recorrente.
Lisboa, 18 de Dezembro de 2003.
António Neves Ribeiro – Relator – António Samagaio – Fernando Pinto Monteiro – Luis Flores Ribeiro – Pais Borges – Fernanda Xavier