Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01301/17.4BELRA.S1
Data do Acordão:12/02/2021
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete à jurisdição administrativa apreciar uma acção na qual o autor, pessoa colectiva de direito público, pede a resolução (e a reversão do direito de propriedade) de um contrato mediante o qual vendeu à ré, por preço simbólico, com a finalidade de prossecução de interesses de natureza pública, correspondentes às atribuições da ré, e com cláusulas reveladoras de uma posição de autoridade da ré e da finalidade de incentivo ao desenvolvimento da actividade a que a venda se destinava, com fundamento no incumprimento das obrigações assumidas.
Nº Convencional:JSTA000P28744
Nº do Documento:SAC2021120201301
Recorrente:PEDROGÃO GRANDE – MUNICÍPIO
Recorrido 1:T.D.M. – TURISMO E DESPORTOS MOTORIZADOS, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Tribunal dos Conflitos

Acordam, no Tribunal dos Conflitos:

1- Em 15 de Setembro de 2017, o Município de Pedrógão Grande intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria uma ação administrativa contra a TDM –Turismo e Desportos Motorizados, Lda, formulando o seguinte pedido:
I - Declarar-se que:
a) A R. incorreu em incumprimento das obrigações contratuais por si assumidas na escritura de compra e venda, depois de 2006;
b) A resolução do aludido contrato, por incumprimento da R. tem o A. direito à reversão do aludido prédio integrando-o no seu domínio privado.
c) Está a R. obrigada a restituir o aludido imóvel à R.
II - Condenar-se a R. a:
a) Reconhecer quanto vem peticionado e será declarado;
b) A restituir o aludido imóvel à R”.
Alegou, para o efeito e em síntese, assistir-lhe o direito à reversão de uma parcela de terreno para construção que vendeu à ré em 1 de Junho de 2000, por um preço “largamente inferior ao do mercado e ao do valor real e venal do prédio” (€ 89,78 - 18.000$00), porquanto a ré, desde 2006, não exerce ali a actividade a que se obrigou, incumprindo o projeto de investimento apresentado e as condições do contrato, que é um contrato administrativo.
Disse ainda que o contrato foi celebrado com “fundamento” na “deliberação da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, datada de 10 de Setembro de 1998”, “na prossecução das suas atribuições legais e no intuito de proceder ao desenvolvimento económico do município, pretendendo salvaguardar o interesse público”, e teve a finalidade de permitir à ré “proceder à construção de um recinto para a prática desportiva de Karting, especialmente, por jovens, incluindo a construção de um pavilhão pré-fabricado, de apoio à respectiva actividade”.
A ré contestou, excecionando caso julgado anterior e incompetência material da jurisdição administrativa para conhecer da causa, considerando dever ser atribuída a competência aos tribunais judiciais.
Sustentou, em suma, que, contrariamente ao alegado pelo autor, o contrato celebrado entre as partes não é um contrato administrativo e não está submetido às regras da contratação pública.
Por fim, impugnou os factos e deduziu pedido reconvencional.
O autor contestou a reconvenção. Pronunciou-se no sentido de não ocorrer a exceção de caso julgado e reafirmou a competência material da jurisdição administrativa para conhecer da causa, reiterando a natureza administrativa do contrato celebrado entre as partes.
O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, considerando estar em causa um contrato de natureza privada, não sujeito a normas de direito administrativo, julgou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer da causa, atribuindo a competência aos tribunais comuns e absolvendo a ré da instância, nestes termos:
“O contrato objeto dos presentes autos, por não se enquadrar em nenhum dos tipos de contratos estabelecidos no CPA, ou, a atender-se à norma atributiva de competência estabelecida no novo ETAF, aos contratos descritos no CCP, apenas poderia ser qualificado como administrativo se as partes entendessem submetê-lo a um regime de direito administrativo. (…) Assim, atenta a referida delimitação, importa, agora, aferir em que termos é que o Autor propôs a ação e delineou o pedido e respetiva causa de pedir. Da petição inicial resulta que o Autor peticiona: "Nestes termos e nos mais de direito deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, em consequência: I — Declarar-se que: a) A R. incorreu em incumprimento das obrigações contratuais por si assumidas na escritura de compra e venda, depois de 2006; b) A resolução do aludido contrato, por incumprimento da R. tem o A. direito à reversão do aludido prédio integrando-o no seu domínio privado, c) Está a R. obrigada a restituir o aludido imóvel à R. II- Condenar-se a R. a: a) Reconhecer quanto vem peticionado e será declarado; b) A restituir o aludido imóvel à R,". Apesar da pronúncia apresentada pelo Autor em sede de réplica emerge do contrato celebrado entre as partes, junto como documento n.° 1 com a petição inicial, que o mesmo se encontra sujeito às normas gerais do Código Civil, uma vez que não decorre do seu teor, e bem assim da deliberação de 10 de Setembro de 1998, uma vontade expressa das partes em submetê-lo a um regime jurídico de direito administrativo. Para além disso, as cláusulas apostas ao mesmo não denotam a existência de um qualquer ius imperii por parte do Autor, mas antes um conjunto de condições comuns a um contrato de direito privado. Isto significa que que o contrato celebrado entre as partes corresponde a um contrato de natureza privada não submetido a normas de direito administrativo não sendo, portanto, um contrato administrativo. Por outro lado, o facto de o mesmo ter sido celebrado no âmbito das atribuições do município não é suficiente para fundamentar a natureza administrativa do contrato, uma vez que toda a atuação do município tem que se conter naquele âmbito sob pena de vício de incompetência ou desvio de poder. A mesma conclusão se chega a propósito da decisão de contratar se encontrar vertida em deliberação, uma vez que é esta forma como o órgão expressa a sua vontade. Assim, o contrato objeto dos presentes autos é, definitivamente, apesar de celebrado por uma entidade pública, um contrato de direito privado. Tal conclusão é comprovada, desde logo, pelo facto do cumprimento ou incumprimento do referido contrato ter sido também objeto de apreciação, noutro tempo, conforme resulta da alegação da Autora, pela jurisdição comum, no âmbito do processo n.° 403/04.1 TBFVN.
Deste modo, é forçoso concluir que são os tribunais comuns os competentes para dirimir a questão jurídica objeto dos presentes autos, por exclusão da competência que se encontra estabelecida no artigo 4.°, n.° 1, alínea e) do ETAF. Assim, é o presente Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer dos pedidos formulados pelo Autor na presente ação, o que determina, em consequência, a absolvição da Ré da instância, nos termos do artigo 89.°, n.ºs 2 e 4, alínea a), do CPTA, sem prejuízo do disposto no artigo 14.°, n.° 2, do CPTA.”

2. O autor requereu a remessa dos autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Leiria.
Remetidos os autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, o Juízo Central Cível de Leiria – Juiz 4 declarou-se também incompetente em razão da matéria e absolveu a ré da instância, atribuindo a competência aos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Para tanto, defendeu, em suma, que a causa de pedir que o autor invoca para obter a sua pretensão diz respeito a uma relação contratual de natureza administrativa, que carece de ser apreciada “de acordo com as regras e deliberações emanadas pelo Município de Pedrógão Grande, tratando-se” de actos de gestão pública:
“Em síntese, no caso concreto em apreciação, o Autor (autarquia local) não se encontra numa posição de paridade com o particular, ora Ré (sociedade comercial), nem tão pouco nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado, mas antes, contrariamente, compreendem-se no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, o que implica a análise da relação administrativa daí resultante e as diversas deliberações c/ou alvarás emitidos pela autarquia local e factos que esta averiguou por intermédio dos seus fiscais camarários, como alegado pelo Autor.
Em situação em tudo análoga à dos presentes autos, foi, recentemente, decidido ser atribuída a competência ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, por Acórdão proferido, no Supremo Tribunal de Justiça, pelo Tribunal de Conflitos, em 17.03.2021, no âmbito do processo 180/20.9t8FVN (…).
Foi aí entendido, a par do mais e na parte em que tem plena aplicação ao caso dos autos (atenta a absoluta coincidência das situações), que o preço especial (abaixo do real valor do bem) acordado (revelador da intenção — de prossecução do interesse público subjacente ao contrato), a par da imposição, no contrato, de restrições de interesse público e de deveres perante a administração característicos de uma relação jurídica administrativa, apontam para existência e poderes de autoridade do Autor, assim tendo sido concluído — como se julga ter de se concluir no caso dos autos — que a relação material controvertida, tal como configurada pelo Autor, deve ser configurada como um relação jurídica administrativa.
Na verdade, perante o teor das alegações acima sumariadas sob os pontos 1. 1. a 5., com especial incidência na matéria de 2. a 4 e nas obrigações contratuais aludidas em 5. (no âmbito das quais à compradora era, nomeadamente, imposto o que contruir no terreno vendido, a mesmo tempo que lhe era vedado qualquer uso em moldes diversos; o prazo para início da obra, a proibição de alienação sem acordo da vendedora, ...), não se pode deixar de concluir que a Ré figura na relação com o Autor, não como uma mera adquirente de um bem que lhe pertencia, mas antes como veículo através do qual o Município pretendia satisfazer interesses iminentemente públicos, cumprindo (através da celebração do convénio com um particular) o papel que lhe está legalmente atribuído enquanto ente da administração do Estado, sob pena de, não satisfazendo a Ré esse objetivo do contrato, estar prevista a reversão do bem para o património do vendedor, a tudo acrescendo a cláusula pela qual ficava afastado o direito da ré obter quaisquer outros incentivos municipais.
Considera-se, assim, que, tal como foi entendido no último dos citados Acórdãos, também na situação dos autos não se pode deixa de concluir que o teor do contrato traduz a "inexistência de uma posição de paridade entre autor e ré na relação contratual, mas, antes, uma posição de autoridade do contraente público, tendo em vista os fins e interesses públicos visados", in casu, por este, com a outorga daquele convénio.
VI. De todo o exposto resulta que a preparação e julgamento da presente matéria em apreciação não é da competência dos tribunais judiciais, concretamente não é da competência do Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 4º, n° 1, alíneas a), e) e o), do ETAF, e 117°, nº 1, alínea a), da LOSJ, mas antes, da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Trata-se de uma incompetência absoluta, em razão da matéria, que, de forma evidente, configura uma exceção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que aqui se suscita, cuja procedência conduz, no caso, à absolvição da Ré da instância — cf. artigos 576°, n°s. 1 e 2; 577°, alínea a); 96°, alínea a); 97° e 99°, n° 1, todos do Código do Processo Civil.”
O Município de Pedrógão Grande requereu, entretanto, o envio dos autos ao Tribunal dos Conflitos.

3. Remetido o processo ao Tribunal dos Conflitos, por despacho do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça foi determinado que se seguissem os termos resultantes da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro (Tribunal dos Conflitos).
Notificadas deste despacho, as partes não se pronunciaram.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser atribuída competência para conhecer da presente ação ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, subscrevendo o entendimento manifestado pelo Juízo Central Cível de Leiria e citando o acórdão do Tribunal dos Conflitos de 17 de Março de 2021, proc. n.º 0180/20.9T8FVN.S1, disponível em www.dgsi.pt.
4. Cumpre resolver o conflito.
Os factos relevantes constam do relatório.

Está apenas em causa determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido do autor, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelo artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Os tribunais administrativos, “por seu turno, não obstante terem a competência limitada aos litígios que emerjam de «relações jurídicas administrativas», são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).
Esta forma de delimitação recíproca obriga a começar por verificar se a presente acção tem por objecto um pedido de resolução de um litígio “emergente” de “relações jurídicas administrativas e fiscais” (nº 2 do artigo 212º da Constituição, nº 1 do artigo 1º e artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), sendo certo que, segundo a al. b) do nº 1 deste artigo 4º, cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal” julgar os litígios relativos aos actos da Administração Pública praticados “ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal”.
Em qualquer dos casos, aferindo-se a competência pela lei vigente à data da propositura da acção, 4 de Abril de 2017, na falta de disposições de direito transitório aplicáveis, é por referência às versões da Lei da Organização do Sistema Judiciário e do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais então em vigor que se determina a que jurisdição compete o respectivo julgamento (cfr. artigos 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 38.º, n.º 2, da Lei de Organização do Sistema Judiciário; recorda-se que a Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, que alterou os artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, entrou em vigor em 11 de Novembro de 2019 e não regula a sua própria aplicação no tempo). Releva, portanto, a versão do n.º 1 do artigo 1.º e do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais resultante do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro.
Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção.
Disse-se no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, processo n.º 020/18: “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos [por todos, AC STA de 27.09.2001, Rº47633; AC STA de 28.11.2002, Rº1674/02; AC STA de 19.02.2003, Rº47636; AC Tribunal de Conflitos de 02.07.2002, 01/02; AC Tribunal de Conflitos de 05.02.2003, 06/02; AC Tribunal de Conflitos de 09.03.2004, 0375/04; AC Tribunal de Conflitos de 23.09.04, 05/05; AC Tribunal de Conflitos 04.10.2006, 03/06; AC Tribunal de Conflitos de 17.05.2007, 05/07; AC Tribunal de Conflitos de 03.03.2011, 014/10; AC Tribunal de Conflitos de 29.03.2011, 025/10; AC Tribunal de Conflitos de 05.05.2011, 029/10; AC Tribunal de Conflitos de 20.09.2012, 02/12; AC Tribunal de Conflitos de 27.02.2014, 055/13; AC do Tribunal de Conflitos de 17.09.2015, 020/15; AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14].
A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.

5. Recentemente, numa situação materialmente muito próxima daquela que agora se apresenta, decidiu-se no já referido Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 17 de Março de 2021, proferido no processo n.º 0180/20.9T8FVN.S1, disponível em www.dgsi.pt:
I - É da competência dos tribunais administrativos a apreciação de uma acção na qual um município pretende a reversão da propriedade de um lote de terreno que, em execução de deliberação do executivo municipal e com o objectivo de captar investimento privado para uma zona industrial municipal, vendeu por preço simbólico a um particular, ao abrigo do disposto no Regulamento Municipal de Acesso aos Incentivos à Instalação de Unidades Industriais, que faz parte integrante da respetiva escritura de compra e venda, com fundamento no incumprimento das obrigações constantes da escritura e do Regulamento.
II - Das regras do Regulamento resulta uma posição de autoridade do contraente público, tendo em vista os fins e interesses públicos visados; a relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, deve ser qualificada como uma relação jurídica administrativa.”.
No caso dos autos, o Município autor, pessoa colectiva pública, alega, em suma, ter vendido à ré, em 1 de Junho de 2000, uma parcela de terreno destinada à construção de um recinto para a prática desportiva de karting, o que fez tendo em vista o desenvolvimento turístico da autarquia e a criação de empresas e postos de trabalho e, concomitantemente, a melhoria do desenvolvimento socioeconómico do seu território e populações, em execução de uma deliberação da Câmara Municipal de Pedrógão Grande.
Mais alega que, por se tratar da instalação de um edifício e equipamento de interesse turístico para o município, para a região e para o distrito de Leiria, a venda foi realizada por um preço “largamente inferior ao do mercado e ao do valor real e venal do prédio” (€ 89,78 - 18.000$00).
Por fim, afirma que, apesar de ter improcedido a acção que instaurou contra a ré, em 2004, no Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos (tramitada sob o n.º 403/04.1TBFVN), desde 2006 que a ré continua a não exercer no imóvel que adquiriu a atividade a que se tinha obrigado, incumprindo o projeto de investimento apresentado e as condições do contrato.
Tal como sucedia no caso a que respeita o citado acórdão de 17 de Março de 2021, não está em dúvida que se trata de um contrato de compra e venda, cujo regime essencial se encontra no Código Civil. No entanto, e também como então se observou, importa saber se, no litígio agora em causa, tal como descrito pelo autor, estamos perante uma questão de natureza meramente privada, ou jurídico-civil, relativa ao incumprimento de um contrato de compra e venda de um imóvel, ou perante uma questão jurídica de natureza administrativa.
Continuando a seguir de perto o mesmo acórdão de 17 de Março, o âmbito da jurisdição administrativa não se limita aos contratos administrativos, abrangendo contratos celebrados por entidades públicas “especialmente regulados por legislação administrativa avulsa” (José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 18.ª Ed., Coimbra, 2020, pág. 110), como é também aqui o caso, apesar de, agora, o contrato de compra e venda não referir expressamente nenhum Regulamento Municipal, como ali sucedia; o que obriga a verificar se estamos ou não perante uma “relação jurídica administrativa”. Citando novamente José Carlos Vieira de Andrade, em A Justiça Administrativa, 18.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 53:
“(…) na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.
Não sendo este o lugar indicado para desenvolver o tema, lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Vejamos.
O autor alega ter procedido à venda da parcela de terreno à ré com o intuito de esta instalar um Kartódromo, de o explorar e de proporcionar aos jovens a prática deste desporto, para promoção do desenvolvimento económico do município e salvaguarda do interesse público.
Mais alega ter sido este interesse público que motivou que, com base na deliberação da Câmara Municipal de Pedrógão Grande, datada de 10 de Setembro de 1998, fosse efetuada a venda nas condições acordadas, incluindo o aludido preço reduzido.
Acrescenta que a decisão de venda da parcela do prédio à ré teve, ainda, em conta a importância social do empreendimento e da atividade, a par do interesse económico subjacente ao investimento, nomeadamente, ao nível da hotelaria e restauração.
Concretiza que a Câmara Municipal de Pedrógão Grande sujeitou a alienação da propriedade, entre outras, às seguintes cláusulas ou obrigações contratuais:
– que as obras de construção das instalações tivessem início no prazo máximo de 12 meses contados a partir da data de outorga da escritura de compra e venda (1 de Junho de 2000), operando-se, caso tal não se verificasse, a resolução do contrato e a reversão do objeto da venda para o Município de Pedrógão Grande, pelo preço de custo do terreno, bem como das edificações nele implantadas e de outras benfeitorias que porventura tivessem sido efetuadas;
– que o terreno em causa nunca fosse utilizado para outra atividade que não a desportiva;
– que nos primeiros cinco anos não houvesse transferência da propriedade do terreno sem o acordo prévio da Câmara Municipal, reservando-se esta, no caso de fim de atividade durante este prazo, o direito de proceder à reversão do terreno e quaisquer melhoramentos pelo valor da venda e sem qualquer indemnização;
– que a ré não teria direito a quaisquer outros incentivos municipais.
Assim, à semelhança do que se consignou naquele Acórdão de 17 de Março de 2021, afigura-se que, ainda que sem convocar a aplicação de qualquer Regulamento Municipal, o autor também não estruturou aqui a relação material controvertida na mera violação de obrigações fixadas num contrato de compra e venda.
Com efeito, paralelamente à situação daquele acórdão, a relevância dos interesses municipais subjacentes à celebração do contrato, a imposição de cláusulas (em nome e na salvaguarda desses interesse) e o preço acordado (revelador da intenção subjacente ao contrato), alegados na petição inicial, apontam para a intenção de realização de interesses de natureza pública, dentro das atribuições do Município autor, bem como para a imposição de restrições igualmente de interesse público e de deveres perante a administração característicos de uma relação jurídica administrativa.
Note-se, em especial, que, da leitura conjunta da deliberação municipal de 10 de Setembro de 1998 e da escritura e compra e venda decorre, por um lado, que as condições concretamente impostas à ré, e que traduzem uma posição de autoridade do município, se explicam por se tratar de um contrato cujo objectivo é a prossecução do interesse público, o que justifica, por outro, que os seus termos – maxime o preço – sejam entendidos como um incentivo ao adquirente, em ordem à realização daquele interesse. Na verdade, repete-se, quer da deliberação, quer da escritura, consta expressamente que a compradora “não terá direito a mais quais quaisquer outros incentivos municipais”.
Pelo exposto, afigura-se que a relação material controvertida, tal como configurada pelo autor, é uma relação jurídica administrativa.

6. Nestes termos, julga-se competente para a presente acção o Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (artigo 7.º, a) do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de dezembro, 1.º, f) da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio, e 19.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

Sem custas (art. 5.º nº 2, da Lei n.º 91/2019, de 4 de Setembro).


Lisboa, 2 de Dezembro de 2021. - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora) - Henrique Araújo - Teresa de Sousa.