Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:036/18
Data do Acordão:12/13/2018
Tribunal:CONFLITOS
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:TRIBUNAL DOS CONFLITOS.
ACIDENTE DE TRABALHO OU EM SERVIÇO.
IDENTIDADE DA QUESTÃO.
Sumário:I – A ocorrência de conflitos de jurisdição não pressupõe a identidade da acção onde foram proferidas as declarações díspares de incompetência «ratione materiae», mas somente a identidade da questão objecto das pronúncias opostas – questão que deve ser encarada «in nuce», olhando-se o que se peticionou e porquê.
II – Assim, depara-se-nos um conflito de jurisdição se um Tribunal do Trabalho e um TAF – por qualificarem como administrativo ou laboral um determinado contrato de trabalho – negaram, por decisões transitadas, a competência própria, que atribuíram ao outro, para o conhecimento das repercussões indemnizatórias de um acidente sofrido pelo trabalhador.
III – Esse contrato, embora vinculasse o sinistrado a uma Junta de Freguesia, regia-se pelo Código do Trabalho e era de direito privado – pelo que a declaração de incompetência material, emitida pelo tribunal comum, tem de ser anulada.
IV – Para que tal anulação opere plenamente os seus efeitos, o processo a remeter ao Tribunal do Trabalho, para aí prosseguir os seus normais termos a partir da pronúncia anulada, será o acervo documental – que desse tribunal proveio e que o TAF arquivou – integrador do conjunto de actos processuais ocorridos na fase conciliatória do processo por acidente de trabalho.
Nº Convencional:JSTA000P23956
Nº do Documento:SAC20181213036
Data de Entrada:07/19/2018
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE LEIRIA, UNIDADE ORGÂNICA 1 E OS TRIBUNAIS COMUNS
AUTORES: A………… E OUTROS
RÉUS: ÁGUAS DOS PORTO, E.M.
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos:
B………… e mulher, A…………, ambos identificados nos autos, solicitaram a este tribunal que resolva o conflito negativo de jurisdição aberto entre o Tribunal de Trabalho de Leiria e o Tribunal Administrativo e Fiscal da mesma cidade dado que, por decisões transitadas, os dois declinaram a competência própria – para conhecer das consequências indemnizatórias de um acidente de trabalho sofrido pelo autor e aqui requerente – atribuindo-a ao outro.

O Ex.º Magistrado do MºPº neste tribunal emitiu douto parecer no sentido de que não existe, ainda, um real conflito.
A referida requerente e os demais herdeiros habilitados do autor – entretanto falecido – opuseram-se ao parecer do MºPº, defendendo a ocorrência do invocado conflito.

Cumpre decidir.
O autor – presentemente substituído na lide pelos seus herdeiros habilitados – sofreu um acidente enquanto trabalhava para a Junta da Freguesia de Avelar. A seguradora da Junta participou o sinistro à 1.ª Secção do Trabalho do Tribunal da Comarca de Leiria. Mas, ainda na fase conciliatória do respectivo processo, e sob promoção do MºPº, o Mm.º Juiz declarou a incompetência do Tribunal do Trabalho, «ratione materiae», para a apreciação dos direitos do sinistrado porque o contrato havido entre o autor e a Junta seria administrativo.
Transitado aquele despacho, o acervo documental reunido na referida fase conciliatória foi remetido pelo Tribunal do Trabalho ao TAF de Leiria. Então, o Sr. Juiz do TAF mandou arquivar esse expediente porque ele corresponderia a uma fase processual em que faltavam as partes e o próprio «dissídio» – inexistindo, assim, uma instância contenciosa susceptível de ser enquadrada numa qualquer acção administrativa.
Mas o Mm.º Juiz do TAF disse algo mais: hipotizando que o sinistrado sofrera deveras um acidente em serviço, regido pelo direito público – como o Tribunal de Trabalho afirmara – forneceu-lhe dados vários sobre o pleito apropriado na jurisdição administrativa, «maxime» quanto às regras legais aplicáveis e às entidades a demandar.
Este trecho do despacho de arquivamento – que, aliás, transitou – constituía um claro «obiter dictum». Mas instou o autor a seguir as indicações aí contidas. Assim, ele veio propor – conjuntamente com a sua mulher – a acção dos autos no TAF de Leiria, fazendo-o contra a Junta da Freguesia de Avelar, duas seguradoras e a Caixa Geral de Aposentações.
Contudo, na fase do saneador, o TAF de Leiria declarou-se incompetente em razão da matéria porque o contrato celebrado entre o autor e a Junta de Freguesia ré fora de trabalho (cfr. o art. 4º, n.º 3, al. d), da versão anterior do ETAF).
E, porque esta pronúncia transitou, os autores vieram requerer a resolução do conflito negativo de jurisdição aberto – na sua óptica – pelas ditas decisões divergentes do Tribunal do Trabalho e do TAF.
Assinale-se que eles também arguiram a nulidade decorrente do TAF não ter suscitado, «motu proprio», o conflito (art. 111º, n.º 1, do CPC). Mas, mesmo que o TAF assim houvesse omitido um acto exigível – por o conflito ser evidente, o que está longe de ser certo – teríamos de encarar a irregularidade como sanada visto que o fim visado por aquele preceito, que é o de submeter o assunto ao Tribunal dos Conflitos, se encontra atingido.
Ora, a anterior descrição dos acontecimentos permite perceber por que motivo o Ex.º Magistrado do MºPº neste tribunal defende que, «in casu», não existe um verdadeiro conflito. Segundo o MºPº, há uma nítida disparidade entre o processo que correu termos – mas só na fase conciliatória – no Tribunal de Trabalho e a acção, inteiramente nova, que foi proposta no TAF e aí alvo da declaração de incompetência material. De modo que o conflito só se abriria se, remetida a acção administrativa para o Tribunal do Trabalho, este também se declarasse incompetente para a conhecer – o que nunca sucedeu. E, em abono da solução que propõe, o Digno Magistrado invoca uma jurisprudência absolutamente segura – a de que a competência se afere pelo pedido, clarificado pela «causa petendi».
Mas este argumento, sendo embora decisivo para se resolver o conflito, não serve para determinar se ele existe. E a hesitação sobre se já surgiu, «in hoc casu», um efectivo conflito radica na diversidade dos processos em que foram emitidas as pronúncias (de incompetência) opostas.
É sabido que todos os conflitos de competência pressupõem a identidade da acção onde foram proferidas as declarações contrastantes («vide», v.g., Alberto dos Reis, Comentário, 1º, pág. 378) – seja porque há um único processo, seja porque, havendo dois, o segundo repetiu (à luz do art. 581º, n.º 1, do CPC) o pleito instaurado no primeiro.
Porém, uma tal exigência de identidade – que está na base do douto parecer do MºPº – não é transponível para os conflitos de jurisdição. Desde logo, essa identidade é inexigível quando o conflito surja entre tribunais e autoridades administrativas – pois é normal que as pretensões a ambos dirigidas sejam formuladas em instrumentos muito diversos. E o mesmo pode perfeitamente passar-se em conflitos abertos entre a jurisdição comum e a administrativa, por causa da necessidade de afeiçoar a mesma pretensão às especificidades adjectivas vigentes nos tribunais em conflito. Nessas hipóteses, as duas acções – alvo de decisões díspares sobre a competência – carecem dos requisitos de identidade aludidos no art. 581º, n.º 1, do CPC; sem que isso porventura iluda e afaste a genuína identidade do que, nas duas ordens jurisdicionais, se peticionou e porquê – nem as respostas, reciprocamente conflituantes, dos dois tribunais sobre a «mesma questão» («vide» o art. 109º, n.º 1, do CPC).
Aliás, o caso dos autos é paradigmático disso mesmo. Era processualmente impossível propor no Tribunal de Trabalho a acção interposta no TAF; e, igualmente, a fase conciliatória que correu termos no Tribunal de Trabalho não tinha cabimento no TAF, segundo as regras do CPTA. Ora, esta dissemelhança entre os meios adjectivos ao dispor do sinistrado nas duas jurisdições não pode constituir uma razão para liminarmente se recusar a emergência de um conflito, entre o Tribunal do Trabalho e o TAF, sobre a competência «ratione materiae», até porque isso traria o risco de problemas como o agora presente ficarem por resolver. O que se deve a algo já «supra» assinalado: os conflitos de jurisdição não dependem da identidade da causa – tantas vezes impossível – mas da identidade da questão opostamente resolvida. E isto reclama uma análise mais subtil, que penetre a «ratio essendi» das pretensões colocadas às duas ordens jurisdicionais.
Com efeito, sob a diversidade dos tipos processuais onde foram proferidas as decisões declarativas da incompetência, pode ocultar-se uma identidade essencial – que mostre o mútuo conflito. Afinal, o que subjaz a todos os conflitos negativos de jurisdição é a recusa de apreciar uma «mesma questão». Ora, «a mesma questão» não tem de se traduzir no mesmo «petitum», concretizado no fim de uma petição inicial; pode corresponder, antes, ao tipo de pretensão formulada – que o «petitum» apenas individualiza – e que surge indissoluvelmente ligada à respectiva «causa petendi».
Se olharmos as coisas por este prisma, depurando o processo conciliatório do Tribunal do Trabalho e o processo administrativo do TAF dos vários pormenores – caracterizadores de cada um deles – que meramente acrescem ao seu núcleo essencial, logo constatamos que, em ambos os casos, se tendia para o mesmo a partir da mesma causa: apurar se houve um certo acidente (laboral ou em serviço) e arbitrar, depois, uma indemnização ao sinistrado.
Esta identidade dos dois processos, mas apenas «in nuce», evidencia agora as soluções opostas que os ditos tribunais adoptaram – e o conflito entre eles surgido. Tudo se resumia à questão de saber se o contrato celebrado pelo sinistrado – e em cujo exercício ele se acidentou – era qualificável como contrato de trabalho ou como contrato administrativo. E, porque responderam a essa fundamental «quaestio juris» em termos opostos, aqueles dois tribunais acabaram por recusar a competência própria e atribuíram-na ao outro – daí emergindo o conflito (art. 109º, n.º 1, do CPC).
Assim, a dissemelhança entre a acção interposta no TAF e o processo conciliatório que correu no Tribunal de Trabalho não impede que aquela seja a continuação deste. Decerto que uma continuação sob uma diferente forma e até com novos intervenientes; não obstante, o processo do TAF prolonga o outro, pois tem por origem o acatamento da razão jurídica em que o Tribunal do Trabalho fundou a sua declaração de incompetência e prossegue, «in genere», o mesmo fim indemnizatório cujo conhecimento ali lhe fora inicialmente negado.
Aliás, essa continuidade entre as duas causas é ainda mais nítida porque a fisionomia da acção administrativa – cujos aspectos acidentais já considerámos irrelevantes para se aferir da emergência do conflito – foi sugerida pelo teor do despacho judicial que mandou arquivar o expediente vindo do Tribunal do Trabalho.
Assente a existência do denunciado conflito, importa agora resolvê-lo e extrair depois, dessa resolução, as devidas e apropriadas consequências.
Como acima dissemos, as soluções opostas perfilhadas pelos dois tribunais radicaram no modo diverso como eles qualificaram o «contrato de trabalho a termo certo» que o falecido autor celebrara em 10/9/2013 com a Junta de Freguesia de Avelar – e em cujo exercício ele se acidentou.
Impressionado com a circunstância da entidade patronal ser, nesse contrato, uma Junta de Freguesia, o Tribunal do Trabalho viu aí um pacto regido pelo direito público. Mas o texto do contrato assinalava, «expressis verbis», que ele se regeria pelo Código do Trabalho; e nada vedava que uma pessoa colectiva de direito público celebrasse contratos do género, sujeitos ao direito laboral privado – pois essa possibilidade até estava prevista, «a contrario», no art. 4º, n.º 3, al. d) do ETAF (na redacção vigente em 2013) e continua hoje em vigor (art. 4º, n.º 4, al. b), da versão actual do ETAF).
Assim, o Tribunal do Trabalho de Leiria errou na qualificação do sobredito contrato – e na declaração de incompetência que se lhe seguiu. Ao invés, o TAF qualificou com acerto o mesmo contrato e extraiu daí a conclusão que se impunha – que era a de não ser competente para conhecer das repercussões indemnizatórias de um sinistro puramente laboral.
Mas há algo mais a dizer. Normalmente, a resolução de conflitos deste tipo acarreta a remessa do processo, donde constam as declarações de incompetência opostas, para o tribunal – já interveniente nos autos – da jurisdição a quem caiba a competência material.
Aqui, confrontamo-nos com a particularidade de os dois tribunais em conflito haverem decidido em processos distintos. Aliás, e por imperativos processuais, é mesmo inconcebível que a acção indemnizatória proposta no TAF de Leiria possa correr, «qua tale», no Tribunal do Trabalho; até porque o litígio encontrava-se aí na chamada fase conciliatória quando surgiu, «ex abrupto», a declaração de incompetência cujo erro detectámos.
Ora, as decisões que solucionem conflitos de jurisdição devem anular a pronúncia de incompetência proferida «contra legem». Nessa medida, os acórdãos do Tribunal dos Conflitos tendem a recolocar o tribunal que recusou indevidamente a sua competência na exacta situação em que ele estava ao emitir a decisão anulada – pois essa recolocação «in situ» é o efeito habitual de qualquer anulação dentro de um procedimento. E, para se obter um tal resultado, é necessário que o processo a remeter a esse tribunal – para que o faça prosseguir desde o ponto suprimido – seja precisamente aquele em que foi emitida a pronúncia invalidada.
«In casu», isso significa o seguinte: o processo a remeter ao Tribunal do Trabalho de Leiria não será a «acção administrativa» instaurada no TAF; mas o «acervo processual» que este recebeu do Tribunal do Trabalho e que ali se mandou arquivar – por despacho do Mm.º Juiz do TAF, de 16/3/2016; pois só assim o Tribunal do Trabalho estará em condições de enfrentar a «questão» comum aos dois processos, retomando o conhecimento dela no preciso ponto em que, por causa do despacho agora anulado, se negou a prossegui-lo. E este é um dado que o TAF deverá considerar quando os presentes autos aí descerem.

Nestes termos, acordam em invalidar o despacho do Sr. Juiz do Tribunal do Trabalho de Leiria que, por falta de jurisdição, declarou esse tribunal incompetente para conhecer do processo por acidente de trabalho mencionado nos presentes autos e em declarar a jurisdição comum competente para o conhecimento dele.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2018. – Jorge Artur Madeira dos Santos (relator) – Rosa Maria Mendes Cardoso Ribeiro Coelho – António Bento São Pedro – Graça Maria de Figueiredo Amaral – Teresa Maria Sena Ferreira da Sousa – Maria de Fátima Morais Gomes.