Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:044/13
Data do Acordão:01/21/2014
Tribunal:CONFLITOS
Relator:FERNANDA MAÇÃS
Descritores:RECURSO PARA O TRIBUNAL DE CONFLITOS
INCOMPETENCIA EM RAZÃO DA MATERIA
FORNECIMENTO DE AGUA
CONCESSIONÁRIO
DEFESA DO CONSUMIDOR
JURISDIÇÃO COMUM
Sumário:I - O contrato de fornecimento de água ao domicílio que liga o prestador do serviço e o consumidor/utilizador final “não é atingido por uma regulação de direito público”, valendo esta asserção quer o serviço seja fornecido directamente pelo município, através de um serviço municipal ou municipalizado, quer seja fornecido indirectamente através da criação de uma empresa municipal ou da celebração de um contrato de concessão de serviço público com um particular, pelo que a apreciação dos litígios sobre o incumprimento destes contratos não cabe aos tribunais da jurisdição administrativa.
II - A execução coerciva de dívidas por incumprimento dos contratos de fornecimento em causa seguem regimes diferentes consoante a natureza pública ou privada do fornecedor do serviço (concessionário), uma vez que, em relação a estes últimos, no caso de incumprimento do utente, a nota de cobrança emitida estando desprovida de força executiva, não constitui um título, nos termos e para os efeitos do processo de execução fiscal.
III - A competência, em razão da matéria poderá passar para o âmbito dos tribunais tributários se o objecto do litígio se centrar ou pelo menos envolver a discussão da legalidade do “preço” ou das “tarifas”, podendo para esse efeito o interessado socorrer-se, quer do disposto no art. 49º nº 1, alínea a), ponto i), do ETAF – que abrange os actos de liquidação de receitas fiscais estaduais, regionais ou locais e parafiscais ….”, quer da alínea e), ponto i), quando se refere à declaração de ilegalidade de normas administrativas de âmbito regional ou local, emitidas em matéria fiscal.
Nº Convencional:JSTA00068545
Nº do Documento:SAC20140121044
Data de Entrada:07/10/2013
Recorrente:A............, SA, NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O 3º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE FAFE E OS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
Recorrido 1:*
Votação:MAIORIA COM 2 VOT VENC
Meio Processual:REC PRE CONFLITO
Objecto:TR GUIMARÃES
Decisão:JULGA COMPETENTE A JURISDIÇÃO COMUM
Área Temática 1:DIR ADM CONT - CONFLITO JURISDICIONAL
Legislação Nacional:L 23/96 DE 1996/07/26 ART1 N2 A.
DL 194/09 DE 2009/08/20 ART6 N1 ART16 N1
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC015/12 DE 2013/04/10.
Referência a Doutrina:CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA - SERVIÇOS PUBLICOS CONTRATOS PRIVADOS ESTUDOS EM HOMENAGEM A PROFESSORA DOUTORA ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO ALMEDINA COIMBRA 2002 PAG122-123.
ANTÓNIO MALHEIRO DE MAGALHÃES - O REGIME JURÍDICO DOS PREÇOS MUNICIPAIS ALMEDINA COIMBRA 2012 PAG70.
JOSÉ CASALTA NABAIS - DIREITO FISCAL 7ED ALMEDINA COIMBRA 2012 PAG55.
SÉRGIO VASQUES - MANUAL DE DIREITO FISCAL ALMEDINA COIMBRA 2011 PAG208-210.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal de Conflitos

I - RELATÓRIO

1. A…………, S.A., intentou junto do Tribunal Judicial de Fafe acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias contra B…………, peticionando a quantia de € 93,89 (noventa e três euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida dos juros moratórios vencidos e os vincendos até efectivo e integral pagamento, relativa a prestação de serviços de fornecimento de água.

1.1. Alegou, para o efeito, que no âmbito da sua actividade comercial - por concessão da exploração do sistema de captação, tratamento e distribuição de água ao concelho de Fafe - efectuou um contrato com o R., para fornecimento de água, tendo sido prestados ao R. os serviços contratados, sendo que findo o prazo de vencimento o pagamento devido não foi efectuado.

2. O Tribunal Judicial de Fafe, por sentença proferida em 11 de Dezembro de 2012 (fls.20/25), declarou a sua incompetência, em razão da matéria, por ser competente a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, dado o fundamento do litígio emergir de uma relação jurídica administrativa, referindo o seguinte:
“A competência do Tribunal afere-se em função da relação jurídica objecto do litígio, tal como está configurada pelo autor, atendendo à causa de pedir e respectivo pedido.
De acordo com o art.° 66.° do CPC o Tribunal comum só não será competente em razão da matéria, se a apreciação desta for atribuída pela lei a uma outra ordem de tribunais (vd. art° 77.° n°1 al. a) da LOFTJ).
- Atento o disposto no art. 212º nº3 da Constituição da Republica Portuguesa compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
Na lei ordinária o art.° 4.° do ETAF, aprovado pelo Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro, consagra o objecto dos litígios que devem ser submetidos aos tribunais administrativos e fiscais (“reclamando”, assim, nessas matérias a respectiva competência).
A situação em apreço reporta-se a serviços contratados de abastecimentos de água e saneamento prestados pela requerente ao requerido.
Como é sabido as autarquias dispõem de atribuições no âmbito do ambiente e saneamento básico (art° 13.° nº 1 da Lei 159/99, de 14/09).
Sendo que de acordo com o art.° 26.° da Lei 159/99, de 14/09, é da competência dos órgãos municipais o planeamento, a gestão de equipamentos e a realização de investimentos nos seguintes domínios:
i) Sistemas municipais de abastecimento de água.
ii) Sistemas municipais de drenagem e tratamentos de águas residuais urbanas.
iii) Sistemas municipais de limpeza pública e de recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos.
Por contrato de concessão podem os órgãos municipais se socorrer de empresas privadas.
O concedente mantém a titularidade dos direitos e poderes relativos à organização e gestão do serviço público concedido, como o poder de regulamentar e fiscalizar a gestão do concessionário, aplicando-se aqui, no essencial, os princípios da tutela administrativa. O serviço público concedido nunca deixa, pois, de ser uma atribuição e um instrumento da entidade concedente, que continua dona do serviço, sendo o concessionário a entidade que recebe o encargo de geri-lo, por sua conta e risco (Prof. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, pp. 1081 e ss.).
Pelo que, e de acordo com o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 22/2/2011, Proc° 12698209.2YIPRT G1, disponível no site www.dgsi.pt. , com o qual concordamos e cuja posição seguimos, o conflito que opõe a empresa concessionária fornecedora do serviço público de abastecimento de água e o réu, utente ou consumidor ao qual o serviço público aqui em causa se destina, surgiu no âmbito de uma relação jurídica administrativa, cabendo a respectiva apreciação e decisão aos tribunais administrativos, conforme o art.° 1º do ETAF.
O tribunal judicial é materialmente incompetente para conhecer da acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias na qual a Autora, concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de distribuição de água pede a condenação do Réu no pagamento de quantias relativas a serviços de abastecimento de água e saneamento.
O Tribunal da Relação do Porto, datado de 9 de Outubro de 2012, procº 10407/08.0TBMAI-A.P1, disponível no site www.dgsi.pt. , realça que o Decreto-lei nº 194/2009 de 20 de Agosto, veio regular o regime substantivo relativo ao fornecimento de água impondo no art. 60º que o mesmo seja assegurado de forma contínua, só podendo ser interrompido no caso de verificação de situações taxativamente aí previstas, sendo ainda prevista como contra-ordenação a falta de comunicação prévia aos utilizadores sobre interrupções programadas no abastecimento de água (art.72º) al. f) do mesmo decreto-lei).(…)
Conhecendo assim os contratos de fornecimentos de água pelos municípios a particulares uma forte regulamentação de carácter público relativa ao respectivo regime substantivo, cabe aos tribunais administrativos a competência para dirimir litígios emergentes de um eventual incumprimento destes contratos.
O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 25 de Setembro de 2012, procº 100536/08.9YIPRT.G1, decidiu que é da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e não dos Tribunais Judiciais, a preparação e julgamento de um litígio entre um particular consumidor de água e uma empresa concessionária de um serviço público próprio de um Município ao abrigo de um contrato administrativo celebrado entre ela e a autarquia no exercício da sua actividade de gestão administrativa para a prática de actos de utilidade pública e interesse colectivo, impróprios de relações de natureza tipicamente privada, como é o sistema multinacional de contínuo abastecimento de água e de saneamento.
Com efeito, a requerente ao fixar, liquidar e cobrar tarifas ou taxas aos particulares no quadro da sua actividade de concessionária está a agir no exercício de poderes administrativos.
Com efeito, não é dada a prerrogativa à R. de contratar ou não contratar, negociando o preço do serviço. Não se lhe aplicam as normas de direito privado. A relação entre A. e R. é uma relação de poder público.
A competência para conhecer, judicialmente, das questões que sejam suscitadas no âmbito de um contrato, surgido no âmbito de uma relação jurídica administrativa e inserido no âmbito da gestão da coisa pública, compete aos Tribunais administrativos, nos termos dos art.º 1º e 4º nº1 al. f) do ETAF.
Prescreve o art.º 4º nº1 al. f) que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto…) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
Pelo que a jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação é a jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais (hoc sensu, vide Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 9/11/2010, proc. 017/10).
O que determina a incompetência em razão da matéria do Tribunal Judicial de Fafe.
Estamos perante uma excepção dilatória de conhecimento oficioso (art. 102º nº1 e 494º nº1 al. a) do CPC), importando a absolvição da R. da instância (cf. art. 105º e 288º nº1 al. a) do CPC), sem prejuízo do disposto no art. 105º nº2 do CPC.
DECISÃO:
Pelo exposto decide-se julgar por verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta e consequentemente declaro o Tribunal Judicial de Fafe materialmente incompetente, absolvendo os RR da instância”

3. Interposto recurso (fls.28) para o Tribunal da Relação de Guimarães, este, por acórdão de 16.05.2013 (fls. 63/76), confirmou o decidido.

4. Deste acórdão a autora interpôs recurso para o Tribunal dos Conflitos concluindo assim a sua alegação:
“1- Vem o presente recurso interposto do aliás douto acórdão de fls..., datada de 2 de Maio de 2013, através da qual se decidiu julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta e consequentemente declarar o Tribunal Judicial de Fafe materialmente incompetente para julgar a acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, que a ora Recorrente, A………… intentou contra o ora Recorrido, absolvendo o aí Réu da instância.
2- Sustenta tal decisão, sucintamente, que a Recorrente, sendo uma concessionária do Município de Fafe e desempenhando um serviço público de fornecimento de água aos cidadãos, que a Recorrente, enquanto sociedade comercial concessionária do Município de Fafe na exploração do sistema de captação, tratamento e distribuição de água ao concelho de Fafe e estribando-se a causa de pedir e o pedido nos serviços de abastecimento de água e saneamento contratados pelo Recorrido à Recorrente, o “litígio objecto da presente acção surgiu no âmbito de uma relação jurídico administrativa”.
3- Porém a relação contratual em causa nestes autos é uma relação jurídica de direito privado, no âmbito de um contrato de prestação de serviços (abastecimento de água e saneamento), com obrigações emergentes desse mesmo contrato.
4- A Recorrente não actua revestida de um poder público, não tendo as partes submetido expressamente a execução do contrato em causa a um regime substantivo de direito público (cfr. artigo 4°, n° 1, alínea f, a contrario, do ETAF).
5- A Recorrente não impõe taxas, nem tarifas, antes presta serviços, por força de um contrato celebrado com o recorrido, cuja contrapartida se intitula de preço, nos termos dos Regulamento do Serviço de Abastecimento de Água ao Concelho de Fafe e do Contrato de Concessão celebrado entre a Autora e o município de Fafe, regulamento esse que impõe as referidas taxas e tarifas, bem como outras regras de conduta, seja à recorrente, seja ao recorrido.
6- No caso em apreço não está em causa a competência para conhecer das questões relativas à validade de regulamentos administrativos ou de contratos administrativos, mas sim da competência para conhecer das questões relativas à validade do contrato celebrado entre a ora Recorrente e o ora Recorrido e da execução e do seu cumprimento pelos outorgantes, o qual é uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado.
7- Nesta parte, em que a recorrente se limita a fornecer bens ao Recorrido, tendo este como obrigação pagar o preço correspondente e os acréscimos legais e regulamentares, não está em causa qualquer relação jurídico administrativa, nem o contrato celebrado entre as partes tem natureza de contrato administrativo, logo à partida porque a relação em causa se destina a prover as necessidades dos recorridos e não quaisquer fins de “interesse público”.
8- Apesar da Recorrente se tratar de uma empresa concessionária de um serviço público essencial, para determinar a natureza pública ou privada das relações jurídicas que esta estabelece, será necessário determinar em concreto se o fim visado é de interesse público ou geral, sendo este corolário exibido de forma plana pela doutrina existente.
9- O regime substantivo previsto na Lei n.° 23/96 de 26 de Julho, que regula o fornecimento e prestação de “serviços públicos essenciais”, é um regime substantivo de direito privado, enformando não só a relação entre recorrente e recorrido, mas igualmente a actividade das distribuidoras de gás, electricidade, operadoras de serviços de transmissão de dados ou serviços postais.
10- A expressão “serviços públicos essenciais”, prevista na Lei n.° 23/96, de 26 de Julho não tem correspondência com a definição de interesse público.
11- Ao invés, ao relacionar a actividade da Recorrente e os serviços que presta ao Recorrido na supra identificada lei, o legislador pretendeu submeter todos os contratos dessas categorias a um regime idêntico, que é de direito civil.
12- É certo que, no tocante à criação e à fixação de taxas pela prestação de um serviço público, correspondendo ao exercício de poderes públicos, apenas a jurisdição administrativa se pode pronunciar, mas tal questão não tem qualquer correspondência com o objecto do litígio, tal qual foi conformado pela Recorrente no requerimento inicial, uma vez que este se destina unicamente a obter a cobrança da contra-prestação que lhe é devida pelo Recorrido pelo fornecimento de água e saneamento e respectivos acréscimos regulamentar e legalmente impostos.
13- As decisões proferidas nos Acórdãos da Relação de Guimarães no âmbito dos processos nº 103108.8TBFAF.G1, 103543/08.8YIPRT.G1, 45692/12.3YIPRT.G1 e 353418/10.0YIPRT, ladeadas pelo acórdão prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 19 de Janeiro de 1994 (todos in www.dgsi.pt.), analisaram cuidadosa e cabalmente a questão, sendo as únicas a distinguir convenientemente as várias dimensões da relação complexa estabelecida entre as partes, conformando-a devidamente com o Direito e a Lei.
14- Nesta medida, é forçoso concluir que ao julgar procedente a excepção de incompetência material, declarando o tribunal a quo incompetente em razão da matéria para a apreciação da presente acção, que endossou para os Tribunais Administrativos, andou mal o Tribunal a quo , fazendo uma errada interpretação das disposições conjugadas dos artigos 1º nº1 e 4º nº1 do ETAF, violando assim o disposto no artigo 66º do CPC e o artigo 24º e 26º da LOFTJ, pelo que não pode manter-se (conforme parecer também junto com a apelação, da autoria do Senhor Professor Doutor Pedro Pimenta Costa Gonçalves, doutorado em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
19- Finalmente, em resolução definitiva do pré-conflito de competência, deve o Tribunal dos Conflitos fixar, com força de caso julgado material que compete aos tribunais judiciais a preparação e julgamento das acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de fornecimento de água canalizada para consumo público e saneamento, celebrados entre um ente privado, concessionário do respectivo serviço público, e outro particular.
Nestes termos e nos que doutamente V. Exas. suprirão, deve o presente recurso ser julgado provido e procedente, decidindo o pré-conflito existente no sentido propugnado nas conclusões.”


5. Não houve contra-alegações.

6. O Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, emitiu o seguinte parecer.
“Vem, por “A…………, S.A”, interposto recurso para Este Tribunal dos Conflítos, nos termos do art° 107°, n° 2, do CPC, do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que confirmou a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Fafe, que declarou a sua incompetência em razão da matéria, por considerar que a jurisdição competente para conhecer do litígio era a dos Tribunais administrativos.
Está em causa nos autos a cobrança de uma dívida relativa ao serviço de abastecimento de água pela A., “A…………, S.A., - concessionária do sistema de captação e distribuição de água no concelho, - a um particular consumidor, no âmbito do contrato de fornecimento celebrado em 11.05.2010.
Conforme considerou este S.T.A., no Ac. de 10.04.2013, proferido no Proc. n° 015/12, pelo Pleno da Secção do Contencioso Tributário, nos termos do art° 93°, do CPTA, «No domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei n° 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL n° 194/2009, de 20 de Agosto, cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, uma vez que, o termo “preços” utilizado naquela Lei equivale ao conceito de “tarifas” usado nas anteriores Leis de Finanças Locais e a que a doutrina e jurisprudência reconheciam a natureza de taxas, pelo que podem tais dívidas ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal» (sublinhado nosso).
Em conformidade com este entendimento, somos de parecer que deverá decidir-se que a competência para a cobrança da dívida em causa pertence aos Tribunais Tributários.
Negando-se, assim, provimento ao recurso.”

7. Sem vistos, mas com distribuição prévia do projecto de acórdão, cumpre decidir.

II- FUNDAMENTOS

1. Constitui pacífico entendimento jurisprudencial e doutrinário que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir) - cfr., entre outros, os Acórdão do Tribunal dos Conflitos: de 21/10/04 proferido no Conflito 8/04; e de 23/5/2013, conflito nº 12/12.
No caso dos autos, a acção começou com a petição de uma injunção para pagamento de facturas respeitantes ao incumprimento do contrato celebrado entre a Autora, concessionária da exploração do sistema de captação, tratamento e distribuição de água no concelho de Fafe, e um consumidor, B…………, em que este não pagou determinadas facturas respeitantes ao fornecimento de água ao domicílio, pedindo a condenação no pagamento da quantia € 93,89 (noventa e três euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida dos juros moratórios vencidos e os vincendos até efectivo e integral, por via da prestação do referido serviço.
Assim sendo, a questão central a decidir traduz-se em saber qual o tribunal competente para conhecer a acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias na qual a Autora, concessionária da exploração e gestão dos serviços público municipais de distribuição de água, pede a condenação do Réu no pagamento de quantias relativas ao fornecimento de água objecto do referido contrato.
Como vimos, o Tribunal Judicial de Fafe julgou competente para dirimir o presente litígio a jurisdição administrativa e fiscal, dado o fundamento do litígio emergir de uma relação jurídica administrativa, orientação confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/5/2013.
A conclusão a que se chegou nas instâncias recorridas assenta no pressuposto de que o contrato celebrado entre a Autora e o consumidor nos remete para uma relação jurídico administrativa na modalidade de contrato administrativo, questão que importa averiguar.

2. O art. 4º, nº 1, alínea f), do ETAF comete à jurisdição administrativa a competência para apreciar litígios sobre a interpretação, validade e execução de:
i) Contratos de objecto passível de acto administrativo; ii) De contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo; iii) Ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.
Atentas as características do caso em apreço, o mesmo poderia subsumir-se apenas na hipótese prevista no ponto ii), se se pudesse concluir estarmos perante um contrato especificamente a respeito do qual existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo.
Vejamos.

2.1.O serviço de fornecimento de água é qualificado como um serviço público essencial (art. 1º, nº 2, alínea a), da Lei nº 23/96 de Julho), cabendo ao Decreto-Lei nº 194/2009, de 20 de Agosto, explicitar o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos.
Segundo o seu artº 3º “A exploração e gestão dos sistemas municipais (…) consubstanciam serviços de interesse geral e visam a prossecução do interesse público, estando sujeitas a obrigações específicas de serviço público”.
A gestão dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos, é uma atribuição dos municípios e pode ser por eles prosseguida isoladamente ou através de associações de municípios ou de áreas metropolitanas, mediante sistemas intermunicipais (artigo 6º, nº 1, do Decreto-Lei nº 194/2009).
A gestão daqueles serviços pode ser efectuada de acordo com um dos seguintes modelos de gestão (art. 7º, nº1):
a) Prestação directa do serviço;
b) Delegação do serviço em empresa constituída em parceria com o Estado;
c) Delegação do serviço em empresa do sector empresarial local;
d) Concessão do serviço.
Segundo o corpo do preceito, a entidade gestora dos serviços municipais é definida pela entidade titular, segundo o regime estabelecido no art. 6º do mesmo diploma, conforme a opção por cada um dos modelos mencionados.
No modelo de gestão directa o serviço pode ser prestado através de serviços municipais, de serviços intermunicipais, de serviços municipalizados ou de serviços intermunicipalizados (artº 14º, nº1).
No modelo de gestão em parceria podem ser estabelecidas parcerias entre o Estado e os municípios, as associações de municípios ou as áreas metropolitanas com vista à exploração e gestão de sistemas municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos (artº 16º, nº 1).
No modelo de delegação do serviço em empresa do sector empresarial local o serviço é prestado por empresa municipal delegatária constituída nos termos previstos no regime jurídico do sector empresarial local, aprovado pela Lei n.º 53-F/2006 (O novo regime consta da Lei nº 50/2012, de 31 de Agosto.), de 29 de Dezembro (artºs 17º e 18º).
No modelo de gestão concessionada a concessão dos serviços municipais, a realizar de acordo com este diploma e, subsidiariamente, com o Código dos Contratos Públicos, inclui a operação, a manutenção e a conservação do sistema, previstas no n.º 1 do artigo 2.º, e pode incluir ainda a construção, a renovação e a substituição de infra-estruturas, instalações e equipamentos (artºs 31º e 32º).
Em suma, de acordo com a nossa legislação, a responsabilidade por assegurar a provisão dos serviços de águas é de natureza pública, constituindo atribuição dos Municípios ou do Estado (cfr. Lei nº 159/99, de 14 de Setembro, Decreto-Lei nº 379/93, de 5 de Novembro e Decreto-Lei nº 194/2009), mas pode ser prestado por privados, com base num contrato de concessão.
Neste último caso, ninguém discute a natureza administrativa do contrato que liga a entidade titular ao concessionário, contrato de concessão de serviço público, mas não é deste contrato que estamos a tratar.
Com efeito, uma coisa é o título (contrato) que liga o prestador do serviço à entidade titular e que varia em conformidade, como vimos, com o modelo de gestão escolhido, outra bem diferente são os contratos celebrados entre o prestador do serviço e os utilizadores /consumidores finais. Em relação a estes contratos, não subsistem razões para assumirem natureza diferente, entre o mais, por se tratar de contratos tipo, de massa, ou seja, contratos de consumo, como será melhor analisado de seguida.
Senão vejamos.
Dada a importância que reveste o serviço de fornecimento de água, o legislador procedeu à sua classificação entre os serviços públicos essenciais [cfr. o art. 1º, nº 2, alínea a), da Lei nº 23/96, de 26 de Julho], encontrando-se por isso sujeito a um regime jurídico especial destinado a proteger os utilizadores finais e que consta fundamentalmente, em geral, daquela Lei e, em particular, do Decreto-Lei nº 194/2009.
Tendo presente a disciplina dos mencionados diplomas, importa determinar qual a natureza jurídica das relações que se estabelecem entre as entidades prestadoras do serviço e os utentes, ou seja, qual a natureza do contrato de fornecimento do serviço que os utilizadores/utentes têm de estabelecer com a entidade gestora qualquer que seja o modelo de gestão.
Como ficou dito, a Lei nº 23/96 criou mecanismos destinados proteger o utente de serviços públicos essenciais, que se caracterizam por estabelecer uma disciplina regulatória assente em garantir, designadamente: i) O direito de participação das organizações representativas dos utentes (art. 2º); ii) O dever de informação recaindo sobre o prestador o dever de informar, de forma clara e conveniente, a outra parte das condições em que o serviço é fornecido e a prestar-lhe todos os esclarecimentos que se justifiquem (art. 4º); iii) As regras sobre a suspensão do serviço, estatuindo-se, designadamente que o mesmo não pode ser suspenso sem pré-aviso adequado (art. 5º); A sujeição da prestação do serviço a padrões de qualidade (art. 7º); iv) A proibição da imposição e cobrança de consumos mínimos (art. 8º, nº1); vi) A proibição designadamente da cobrança de qualquer importância a título de preço, aluguer, amortização ou inspecção periódica de contadores ou outros instrumentos de medição dos serviços utilizados [art. 8º, nº 2, alínea a)]; vii) As regras sobre facturação (art. 9º); viii) As regras sobre prescrição e caducidade (art. 10º); ix) As regras sobre resolução de litígios (art. 15º); etc.
As regras apontadas regem a prestação de todos os serviços essenciais referidos no nº 2 do art. 1º, compreendendo, além do serviço de fornecimento de água: o serviço de fornecimento de energia eléctrica; o serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados; o serviço de comunicações electrónicas; os serviços postais; serviço de recolha e tratamento de águas residuais; e os serviço de gestão de resíduos sólidos urbanos.
Por outro lado, aquele regime aplica-se a todos os serviços públicos qualificados como essenciais.
O Decreto-Lei nº 194/2009 veio, por sua vez, definir o regime comum, uniforme e harmonizado aplicável a todos os serviços municipais de abastecimento público de água, independentemente do modelo de gestão adoptado.
No preâmbulo do mencionado decreto-lei pode ler-se, entre o mais, que visa “(…) assegurar uma correcta protecção e informação do utilizador destes serviços, evitando possíveis abusos decorrentes dos direitos de exclusivo, por um lado, no que se refere à garantia e ao controlo da qualidade dos serviços públicos prestados e, por outro, no que respeita à supervisão e controlo dos preços praticados, que se revela essencial por se estar perante situações de monopólio.”
No que se refere à relação com os utilizadores, rege o Capítulo VII, art. 59º ss., cuja regulação concretiza e complementa, de alguma forma, para os utentes destes serviços, os direitos e obrigações estabelecidos em geral na Lei nº 23/96.
Assim, de forma sumária, referenciamos as regras sobre: O direito à prestação do serviço (art. 59º); O direito à continuidade do serviço (artº 60º); O direito à informação (art. 61º); A exigência de um regulamento de serviço (art. 62º); A contratualização dos serviços, os chamados contratos de fornecimento e de recolha (art. 63º); Quanto à denúncia dos contratos (art. 64º); Sobre os instrumentos de mediação (art. 66º); A facturação e sua periodicidade (art. 67º); Sobre as reclamações dos utentes; etc.
O acabado de expôr mostra, como refere PEDRO GONÇALVES (Cfr. p. 3 do Parecer junto ao Processo de Conflitos nº 45/13.), que os contratos de fornecimento de água são contratos densamente regulados. No entanto, como observa o mesmo Autor “(…) está longe de se poder considerar a regulação que atinge esse contrato uma regulação baseada em normas de direito público. Com feito, o valor que inspira uma tal regulação é, claramente, a protecção do consumidor no contexto de uma relação de consumo de um serviço público essencial. Não se trata, pois, de normas dirigidas à regulação da Administração Pública ou da actividade administrativa, mas sim à regulação de uma relação de consumo. Estamos perante um contrato regulado sim, mas no âmbito do direito privado (do consumo)” (A resposta será diferente no caso das relações entre o Estado e os Municípios (“abastecimento em alta”), no âmbito dos denominados sistemas multimunicipais.) .
No mesmo sentido, CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA (Cfr. “Serviços Públicos, Contratos Privados”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, volume II, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 122/123.), referindo-se à natureza contratual da relação entre utentes e prestadores de serviços públicos essenciais, pondera, porém, que não se trata de contratos administrativos, desde logo, porque a Lei nº 23/96 “eliminou todos os vestígios de poderes autoritários do fornecedor, substituindo-os por regras de protecção do utente”.
Ainda segundo o Autor, “(…) a natureza administrativa dos contratos não seria compatível com o princípio da neutralidade, que, admitindo embora a natureza pública de alguns fornecedores, não pode conviver com certos princípios da actividade administrativa, (…). Se alguns contratos de prestação de serviços públicos não podem deixar de ter natureza privada, o princípio da neutralidade impõe que a natureza privada do contrato não seja afectada pela natureza pública da entidade prestadora”.
Na verdade, o regime da Lei nº 23/96 considera prestador dos serviços toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços aí mencionados independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão (cfr. art. 1º, nº 4).
Por outro lado, não faria sentido dizer que o abastecimento de água ao domicílio se rege pelo direito público quando a lei o qualifica e regula como serviço público essencial a par dos serviços de electricidade, gás e telecomunicações, relativamente aos quais não restam dúvidas que se regem pelo direito privado.
No mesmo sentido, podemos entender o regime do Decreto-Lei nº 194/2009, na medida em que apesar de disciplinar em capítulos distintos cada um dos modelos de gestão destes serviços (capítulo III a VI) define regras relativas ao relacionamento com os utilizadores que são aplicáveis independentemente do modelo de gestão adoptado em cada serviço (cfr. o capítulo VII). A partir daqui não subsiste fundamento para se concluir pela natureza pública dos contratos de fornecimento de água ao domicílio e muito menos para qualificar de natureza diferente este tipo de contratos consoante a natureza jurídica do prestador do serviço.
Em síntese, como refere CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, “(…) todas as entidades prestadoras dos serviços públicos regulados pela Lei nº 23/96 são fornecedores para o efeito de tais serviços serem considerados de consumo (Sobre a natureza civil do núcleo substancial do Direito civil, cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Da Natureza Civil do Direito do Consumo”, Estudos em Memória do Professor Doutor António Marques dos Santos, volume I, Almedina, Coimbra, 2005, p. 705.) quando o utente deles faça uso não profissional”, concluindo que “os contratos de fornecimento a consumidores de serviços públicos essenciais são contratos de consumo”.
Nesta sequência, a primeira conclusão a extrair vai no sentido de que o contrato de fornecimento de água ao domicílio que liga o prestador do serviço e o consumidor/utilizador final “não é atingido por uma regulação de direito público”, valendo esta asserção quer o serviço seja fornecido directamente pelo município, através de um serviço municipal ou municipalizado, quer seja fornecido indirectamente através da criação de uma empresa municipal ou da celebração de um contrato de concessão de serviço público com um particular (Neste sentido, cfr. PEDRO GONÇALVES, no Parecer citado, p. 4.).
Assim sendo, a apreciação dos litígios sobre o incumprimento destes contratos não cabe aos tribunais da jurisdição administrativa.
Questão diferente é da eventual possibilidade da execução coactiva, através do processo das execuções fiscais, das dívidas derivadas do incumprimento dos mencionados contratos.

3. Conclui-se que a natureza da relação jurídico material que liga o prestador do serviço público ao consumidor não muda pelo simples facto de ser diferente a natureza daquele. O que se passa é que à margem da natureza privada do contrato de fornecimento de água ao domicílio, no caso de dívidas não pagas a entidades públicas, estas dispõem de título executivo, o que não se passa quando o prestador tem natureza jurídica privada.
Com efeito, se o serviço de abastecimento de água for prestado directamente por entidades públicas (município ou empresa municipal), neste caso, tais entidades podem emitir certidão das dívidas, que constituem títulos executivos, a tramitar segundo o processo de execução fiscal (Cfr. os arts. 148º, nº 2, alínea a), e 162º, alínea c), do CPPT.) , nos Tribunais Tributários.
Como refere a este propósito ANTÓNIO MALHEIRO de MAGALHÃES (Cfr. O Regime Jurídico dos Preços Municipais, Almedina, Coimbra, 2012, p. 70.) o processo de execução fiscal é um «meio jurisdicional» específico contemplado na lei apenas ao dispor do “Estado e de outras Pessoas colectivas de direito público para procederem à cobrança coerciva de «tributos», bem como de outras dívidas, nos casos em que a Lei assim expressamente dispuser (artigo 148º do Código de Procedimento e Processo Tributário)”.
“Deste modo”, como ficou consignado no Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário nº 015/12, de 10/04/2013, “o processo de execução fiscal continua a ser o meio próprio para cobrança coerciva de dívidas por abastecimento de água e saneamento, quando o serviço for prestado pelo Município ou por empresa municipal”.
Quando se tratar de uma entidade privada, neste caso, de uma concessionária, como estas não estão abrangidas pelo regime do CPPT, as notas de cobrança encontram-se desprovidas de força executiva não podendo, desta forma, lançar mão do processo de execução fiscal.
No mesmo sentido, Pedro Gonçalves (Cfr. A Concessão de Serviços Públicos, Almedina, Coimbra, 1999, p. 320.) pondera que “(…) em caso de incumprimento do utente, a nota de cobrança emitida pelo concessionário está desprovida de força executiva, não podendo portanto, dar lugar a um imediato processo de execução fiscal”.
Acresce que, como ficou consignado no Acórdão do Pleno mencionado, “Este entendimento em nada colide com o regime da Lei nº 23/96, já que, tratando-se da cobrança de dívidas aos municípios ou empresas municipalizadas, a “propositura da acção” a que se refere o artº 10º tem de entender-se como reportada à instauração da execução fiscal, devendo noutras matérias aplicar-se a LGT (suspensão da prescrição, por exemplo, como bem se refere no Parecer do Provedor de Justiça acima identificado).
“Esta cobrança coerciva pelos próprios serviços, como se escreveu no acórdão deste STA, de 30.05.2001- Processo nº 026109, acima parcialmente transcrito, situa-se “na linha de atribuição legislativa do poder de auto tutela administrativa dos efeitos jurídicos pecuniários estatuídos pelos seus próprios actos administrativo-tributários, mais não representa do que uma simples adaptação do regime que vigora para a cobrança de outras dívidas de natureza tributária em relação à administração tributária (arts. 149º e segs.). Consubstanciando-se a execução forçada do acto tributário essencialmente em tarefas administrativas, que dão assim expressão à força jurídico-imperativo-vinculante que os efeitos do acto administrativo tributário importa, entendeu o legislador atribuir essa tarefa à própria administração, embora sob o directo controlo do tribunal, dada a natureza apertada do regime jurídico a que essa execução está sujeita, quase que diríamos estritamente vinculada, desonerando o tribunal de levar a cabo tarefas de cariz meramente executivo. É essa visão das coisas que está afirmada no artº 103º da LGT. Mas isso não impede, mas antes é sugerido em virtude da diferente natureza das dívidas de que sejam credoras, que essa actividade de auto-tutela seja levada a cabo pela diversa administração que leva a cabo a gestão dos interesses públicos a que respeitam as receitas a cobrar coercivamente. É nesta linha que se posiciona a competência da administração tributária dependente da Direcção-Geral dos Impostos que está prevista na al. f) do nº 1 do artº 10º do CCPT de ”instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a estes respeitantes” pelas receitas cuja arrecadação deva garantir. É ainda o mesmo princípio axiológico que justifica a opção recente do legislador de cometer aos Centros Regionais de Segurança Social, através de secção de processos, a cobrança coerciva dos valores relativos às cotizações e às contribuições (artº. 63º da Lei nº 17/2000, de 8 de Agosto, já entrado em vigor – artº. 119º da mesma Lei).
Assim sendo, impõe-se uma segunda conclusão no sentido de que a execução coerciva de dívidas por incumprimento dos contratos de fornecimento em causa seguem regimes diferentes consoante a natureza pública ou privada do fornecedor do serviço (concessionário), uma vez que, em relação a estes últimos, no caso de incumprimento do utente, a nota de cobrança emitida estando desprovida de força executiva, não constitui um título, nos termos e para os efeitos do processo de execução fiscal.

3.1. Aplicando o exposto ao caso em análise, restringindo-se o litígio em causa à cobrança de um crédito por água fornecida e não paga à empresa concessionária do serviço municipal e não dispondo a Autora da competência para emitir títulos executivos, temos de lhe dar razão quando lançou mão do mecanismo da injunção, a tramitar nos tribunais comuns.
Concorda-se igualmente, com a Autora quando alega que, no âmbito do contrato de fornecimento celebrado com o utilizador ela não actua revestida de um poder público, nem tendo “as partes submetido expressamente a execução do contrato em causa a um regime substantivo de direito público [cfr. artigo 4°, n° 1, alínea f), a contrario, do ETAF]”.
Tem também razão a Autora quando alega que estando em causa a competência para conhecer das questões relativas à validade do contrato celebrado entre a ora Recorrente e o ora Recorrido e da execução e do seu cumprimento pelos outorgantes, o qual é uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado, entre o mais, porque a relação em causa se destina a prover as necessidades dos recorridos e não quaisquer fins de “interesse público”, a jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação são os tribunais comuns.

3.2. Importa realçar, no entanto, que a conclusão a que se chegou no sentido de a competência, em razão da matéria, no caso em apreço, caber aos tribunais comuns, não vão em sentido contrário ao decidido no Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário, no proc nº 15/2012, porquanto o mesmo se restringiu à análise da questão que lhe foi posta em reenvio prejudicial e que consistiu no seguinte:
Saber se “No domínio de vigência da Lei das Finanças Locais de 2007 (Lei nº 2/2007, de 15 de Janeiro) e do DL 194/2009, de 20 de Agosto), cabe na competência dos tribunais tributários a apreciação de litígios emergentes da cobrança coerciva de dívidas a uma empresa municipal provenientes de abastecimento público de águas, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos?”
No mencionado acórdão conclui-se, embora com outra fundamentação, que tais dívidas podem ser coercivamente cobradas em processo de execução fiscal.
Para tanto ponderou-se, entre o mais, que “a nova Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei nº 2/2007, de 15 de janeiro, deixou de considerar as tarifas entre as receitas dos municípios (ao contrário do que sucedia nas Leis nºs 1/87, de 6 de janeiro - artº 4º e 42/98, de 6 de agosto - artº 16º), limitando-se a referir apenas no artº 10º, alínea c) “cobrança de taxas e preços resultantes da concessão de licenças e da prestação de serviços pelo município, de acordo com o disposto nos artigos 15º e 16º”.
Se a isto acrescentarmos que o artº 16º, nº 3, refere que os preços e demais instrumentos de remuneração a cobrar pelos municípios respeitam, designadamente, às actividades de exploração de sistemas municipais ou intermunicipais de abastecimento público de água e que os preços devem obedecer a regulamento tarifário a aprovar, parece que seríamos levados a concluir no sentido de que tais preços deixaram de ser considerados taxas, ficando, por isso, a cobrança das respectivas dívidas sujeita ao foro comum. (…). Acompanhando António Malheiro de Magalhães, (…), diremos que os agora designados “preços” cobrados por serviços prestados e bens fornecidos pelos Municípios não perdem o sentido e o alcance que anteriormente lhes eram assacados pela doutrina e pela jurisprudência em face da Lei das Finanças Locais aprovada pela lei nº 42/98, já que mantêm a mesma natureza das “tarifas e preços” a que se referia o artº 20º daquele diploma.
Com efeito, apesar da supressão do termo “tarifa”, quer as taxas quer os preços agora previstos como receitas municipais nos artºs 15º e 16º, respectivamente, da Lei nº 2/2007, continuam a integrar o conceito de “taxa lato sensu” porque autoritariamente fixados pela prestação de bens semi-públicos, integrando-se, por isso, no conceito dado pelo artº 4º da LGT.”

No mesmo sentido, JOSÉ CASALTA NABAIS (Direito Fiscal, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, p. 55.) a este propósito conclui o seguinte: “Como verdadeiras tarifas (…) se configuravam as exigidas pelos municípios, previstas no art. 20º da anterior LFL, sob a epígrafe “tarifas e preços” a cobrar, designadamente, pelas actividades de exploração dos sistemas públicos de distribuição de água, de drenagem de águas residuais, de recolha, depósito e tratamento de resíduos sólidos, de transportes colectivos de pessoas e mercadorias, de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão (embora presentemente se encontre concessionada à C…………), etc. Com efeito, tais tarifas, que na actual LFL (do mesmo modo que na actual LFRA) se passaram a designar, por “preços” e “mais instrumentos de remuneração” dos municípios para além de não terem de ser estabelecidas pela assembleia municipal, como as taxas, podendo ser fixadas pela câmara municipal, não devem ser inferiores aos custos directa e indirectamente suportados com a prestação dos serviços e com o fornecimento dos bens (art. 16º da LFL)”.
Na procura de uma fronteira entre as taxas e os preços, no âmbito da moderna administração-prestadora, SÉRGIO VASQUEZ (Cfr. Manual de Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 208-210.), embora defendendo a necessidade de recurso a critérios materiais complementares (regime económico e indispensabilidade da prestação) o critério tradicional e principal de distinção é o formal assente “na noção de que os tributos públicos consubstanciam obrigações ex lege ao passo que os preços consubstanciam obrigações ex voluntate”. Dito por outras palavras, o que caracteriza os preços é o facto de as obrigações se gerarem por acordo das partes, através de um mecanismo de tipo negocial, o que não se passa com a fixação dos preços cobrados pelo fornecimento de água ao domicílio, que cabe aos Municípios (câmaras municipais (Também segundo o disposto no art. 33º, nº 1, alínea e), da Lei das Autarquias Locais, aprovada em anexo à Lei nº 75/2013, de 12 de Setembro, dispõe-se que compete à câmara municipal o seguinte: “Fixar os preços da prestação ao público pelos serviços municipais ou municipalizados prestados, sem prejuízo, quando for caso disso, das competências legais das entidades reguladoras.”) ), sendo que, nos termos do disposto no art. 40º, nº 1, do Decreto-Lei nº 194/2009, do contrato de concessão consta obrigatoriamente o “tarifário a aplicar no primeiro exercício económico em que o concessionário inicie a exploração, bem como a subsequente trajectória tarifária nos termos do previsto no art. 43º”. Por sua vez, de entre os poderes do concedente consta o de ratificar a actualização anual das tarifas, nos termos do previsto no contrato de concessão” [cfr. o art. 45º alínea a), daquele diploma].
Impõe-se retirar, desta forma, uma terceira conclusão no sentido de que a competência, em razão da matéria poderá passar para o âmbito dos tribunais tributários se o objecto do litígio se centrar ou pelo menos envolver a discussão da legalidade do “preço” ou das “tarifas”.
Para esse efeito o interessado pode socorrer-se, quer do disposto no art. 49º nº 1, alínea a), ponto i), do ETAF – que abrange os actos de liquidação de receitas fiscais estaduais, regionais ou locais e parafiscais ….”, quer da alínea e), ponto i), quando se refere à declaração de ilegalidade de normas administrativas de âmbito regional ou local, emitidas em matéria fiscal (No sentido de que à expressão “questões fiscais” deve ser dado um sentido amplo, abrangendo as denominadas tarifas (cfr., entre outros, o Acórdão do STA de 17/6/1997, proc nº 40365). O mencionado acórdão tem anotação concordante do Prof. Doutor JOSÉ CASALTA NABAIS (cfr. “Tarifa e questões fiscais: competência dos tribunais tributários”, Cadernos de Justiça Administrativa, nº6, Novembro/Dezembro, 1997, pp. 48 ss.).). Em nossa óptica, pretendendo-se discutir a ilegalidade dos “preços” ou tarifas em causa o meio mais adequado seria precisamente o pedido de declaração de ilegalidade do regulamento municipal, (Sobre os pressupostos da utilização deste meio processual, cfr. arts. 72º ss. do CPTA.) que contém e regula as tarifas, ou o pedido de anulação da deliberação da câmara que o aprova.
Por tudo o que vai exposto, procedem, pois, as conclusões formuladas pela recorrente, devendo dar-se provimento ao recurso.

III- DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos acordam em julgar procedente o recurso, revogando-se o acórdão recorrido e declarando-se competentes, em razão da matéria, para o conhecimento da presente acção, os tribunais judiciais.

Sem custas.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2014. – Maria Fernanda dos Santos Maçãs (relatora) – Gregório Eduardo Simões da Silva Jesus – Alberto Augusto Andrade de Oliveira - vencido conforme voto anexo – Ana Paula Lopes Martins Boularot – António Políbio Ferreira Henriques – vencido pelas razões que constam do voto do Consº Alberto Augusto – Manuel Augusto Fernandes da Silva.

Declaração:
Votei vencido pois a solução a que se chegou é contrária à que tem sido adoptada neste Tribunal dos Conflitos, como se pode ver pelos acórdãos de 25/06/2013, Processo n.º 033/13; 26.9.2013, Processo n.º 030/13; 05/11/2013, Processo n.º 039/13; 18/12/2013, processos n.º 038/13 e n.º 053/13.
Tratou-se aí, como, aqui, de casos que são iniciados por A…………, S.A., através do Balcão Nacional de Injunções, sendo, depois, distribuídos como acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias.
As incidências específicas de cada um, como, por exemplo, o teor das contestações deduzidas pelos aí requeridos, não são decisivas para a determinação da competência. Com efeito, devendo a competência ser apreciada em função da causa de pedir e pedido, tem-se observado fundamental identidade, pois os processos têm respeitado, sempre, a pedidos por falta de pagamento de facturas de consumo de água.
E em todos os processos, como neste, é incontroverso que a autora, ora recorrente, é uma sociedade anónima de direito privado concessionária do serviço público de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público do Município de Fafe (actividade que é vedada a particulares, salvo quando concessionadas – artigo 1.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 88-A/97, de 25/07, dispositivo que é mantido com as alterações introduzidas pela Lei n.º 35/2013, de 11/06).
Reconhecendo, embora, que a questão não é de solução evidente, manter-me-ia na linha do julgado e fundado naqueles processos.
Lisboa, 21 de Janeiro de 2014.
Alberto Augusto Andrade de Oliveira.