Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:018/21
Data do Acordão:02/15/2023
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
TRIBUNAIS COMUNS
AGENTE DE EXECUÇÃO
Sumário:
Nº Convencional:JSTA000P30590
Nº do Documento:SAC20230215018
Data de Entrada:05/10/2021
Recorrente:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO, ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA - JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LISBOA - JUIZ 16 E O TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL DE ALMADA
REQUERENTE: C... LIMITADA
REQUERIDO: ESTADO PORTUGUÊS
Recorrido 1:*
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Conflito nº 18/21


Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
C... LIMITADA, com os sinais nos autos, intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa) acção administrativa de responsabilidade civil contra o Estado, pedindo a sua condenação no pagamento de uma “indemnização a fixar em incidente de liquidação ou liquidação de sentença, porquanto os prejuízos em causa ainda não são determináveis, e que consistem na diferença de valor recebido ou a receber nos autos e daqueles que a Autora teria recebido se a Agente de Execução dos autos tem actuado com a devida diligência, e tem depositado as verbas penhoradas na sua conta-cliente, elaborado conta e entregue as quantias devidas à exequente”.
Em síntese, alega que propôs uma acção executiva, no Tribunal da Comarca de Família e Menores de Almada, entretanto redistribuída ao Tribunal da Comarca de Lisboa, Instância Central, Almada, tendo aí sido designada Agente de Execução a Dra. AA. No âmbito da referida acção executiva foi efectuado termo da penhora do vencimento da executada e de crédito de IRS de que esta era titular.
Refere, ainda, que por informação junta ao processo, em 05.12.2013, veio a saber que a Agente de Execução estava suspensa preventivamente e que “Até ao presente, nem a exequente nem o seu mandatário foram notificados ou informados de qualquer relatório por parte do Agente de Execução substituto ou liquidatário, da Comissão de Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça ou da Ordem dos Solicitadores, não se sabem ao certo as quantias que a Agente de Execução recebeu, a sua conta de despesas e honorários, se as verbas penhoradas foram ou não depositadas em conta-cliente”, sendo certo que continuaram a ser processados os descontos nos vencimentos da executada e transferidos para a conta indicada pela Agente de Execução, que desconhece ser ou não a conta-cliente.
Mais alega que a “Agente de Execução violou, em termos ainda não completamente determinados, os seus deveres deontológicos, mormente os previstos nos artigos 4º, artigo 24º/c e artigo 123º/1/e, todos do Estatuto da Câmara dos Solicitadores” e que “o Estado, auxiliado que foi no referido processo pela Agente de Execução, se revelou absolutamente incapaz de, em tempo útil, garantir a guarda das verbas penhoradas à executada, e entregar as mesmas à exequente”.
O Magistrado do Ministério Público, em representação do Estado, contestou e, além do mais, invocou as excepções de incompetência do Tribunal, em razão do território, e a ilegitimidade passiva do Réu Estado Português, pediu a intervenção provocada da Agente de Execução e da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, bem como a suspensão da instância até ser proferida decisão final no Proc. n.º 154/16-JP, a correr temos no Julgado de Paz de Lisboa.
Na réplica, a Autora pronunciou-se sobre as excepções, defendendo a sua improcedência e sustentou nada ter a opor quanto às requeridas suspensão da instância e intervenção provocada.
Em 18.08.2017, foi junta aos autos a decisão proferida em 31.07.2017 pelo Julgado de Paz, tendo a Autora informado o Tribunal ter interposto recurso dessa decisão.
Em 17.11.2017, foi proferido despacho que determinou a suspensão da instância e em 08.03.2018 a Autora juntou aos autos a sentença proferida em 05.03.2018 pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 16.
Em 20.09.2018, foi admitido o chamamento da Agente de Execução e da Câmara dos Solicitadores, que contestaram.
Por decisão proferida em 12.09.2019 foi julgada procedente a excepção da incompetência territorial do TAC de Lisboa e determinada a remessa da acção ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
No TAF de Almada foram ouvidas as partes e intervenientes sobre a incompetência material do Tribunal, pronunciando-se o Ministério Publico, em representação do Estado, pela procedência da excepção dilatória de incompetência material do Tribunal e a Autora, reafirmando a competência dos Tribunais Administrativos.
Em 30.09.2020, foi proferido despacho saneador a julgar procedente a excepção de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria e a absolver o Réu e os Intervenientes da instância, com fundamentação apoiada na jurisprudência do Tribunal dos Conflitos (Acórdão de 01.02.2018, Proc. 018/17).
No Julgado de Paz de Lisboa, onde a Autora instaurou uma acção [Proc. n.º 154/16-JP] contra a referida Agente de Execução e uma seguradora, pedindo a sua condenação a “pagar à Autora indemnização a fixar em incidente de liquidação ou liquidação de sentença, porquanto os prejuízos em causa ainda não são determináveis, e que consistem na diferença de valor recebido e daquela que a Autora teria recebido se a demandada tem actuado com a diligência e tem depositado as verbas penhoradas na sua conta cliente, elaborado conta e entregue as quantias devidas à exequente, e notificado a entidade patronal da executada para entregar directamente à exequente as quantias penhoradas, acrescida de juros à taxa legal, vencidos e vincendos, sendo que o valor a liquidar não deverá ser superior a 14.999,99€”, foi decidido em 31.07.2017 ser aquele Julgado de Paz materialmente incompetente dado que “as questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de pessoas com poderes públicos serão da competência dos Tribunais Administrativos”.
Desta decisão foi interposto recurso para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 16 [Proc. n.º 26434/17.3T8LSB], que manteve a decisão do Julgado de Paz de Lisboa tendo considerado que “O agente de execução é um profissional com poderes públicos para praticar os actos próprios dos processos executivos. (…) A factualidade que aqui a ora A. imputa à 1ª R. respeita, inteiramente, ao exercício da função de Agente de Execução não consubstancia uma actividade privada”.
A requerimento da Autora foi suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição e autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei n.º 91/2019.
O Ministério Público, em representação do Estado, veio defender a competência dos tribunais judiciais para a resolução do litígio em discussão.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº1, da CRP, 64º do CPC e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [art. 212º, nº3, da CRP].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais está comtemplada no artigo 4º do ETAF (Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção do DL nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, que atendendo à data da propositura da acção, é a que aqui releva) com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
O presente conflito de jurisdição assenta em duas decisões de tribunais integrados em ordens diferentes, transitadas em julgado, mas proferidas em acções distintas, em que os sujeitos são parcialmente diversos. Porém, o que está subjacente a todos os conflitos de jurisdição é a recusa de apreciar uma mesma questão, como se estipula no nº 1 do art. 9º da Lei nº 91/2019: “há conflito de jurisdição quando dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão”.
Como se disse no Acórdão deste Tribunal de 13.12.2018, Proc. nº 32/18: “os conflitos de jurisdição não dependem da identidade da causa - tantas vezes impossível - mas da identidade da questão opostamente resolvida” (…) “A ocorrência de conflitos de jurisdição não pressupõe a identidade da acção onde foram proferidas as declarações díspares de incompetência «ratione materiae», mas somente a identidade da questão objecto das pronuncias opostas - questão que deve ser encarada «in nuce», olhando-se o que se peticionou e porquê”.
No caso, estamos perante acções da mesma natureza em que se pretende apurar a responsabilidade civil, decorrente da conduta da Agente de Execução, e obter uma indemnização pelos prejuízos causados.
A questão de saber qual o regime de responsabilidade civil extracontratual aplicável para a apreciação de eventual dever de indemnizar por danos causados resultantes de acções ou omissões que sejam imputadas à actividade da Agente de Execução, presente nas duas acções, foi objecto de pronuncias opostas: no tribunal judicial julgou-se que as questões relativas a responsabilidade civil extracontratual de pessoas que actuem com poderes públicos, como os Agentes de Execução, são da competência dos Tribunais Administrativos e, por sua vez, o TAF concluiu que a responsabilidade civil extracontratual dos Agentes de Execução tem natureza privada, regendo-se pelos artigos 483º e seguintes do C.C. e, nessa medida, incumbe aos tribunais judiciais a sua apreciação, originando assim o presente conflito.
Sobre qual o regime de responsabilidade civil a que está sujeita a actuação profissional de Agente de Execução - regime geral da responsabilidade civil prevista no artigo 483º e seguintes do CC ou o regime jurídico da responsabilidade civil do Estado e outras entidades públicas, previsto no DL nº 67/2007, de 31 de Dezembro - já se pronunciou o Tribunal dos Conflitos, no Acórdão de 01.02.2018, Proc. nº 018/17, disponível em www.dgsi.pt), no sentido de serem os tribunais comuns os competentes para conhecer da acção em que seja apreciada a responsabilidade civil extracontratual de Agente de Execução. Neste Acórdão aderiu-se à argumentação expendida nos Acórdãos do STJ proferidos em 06.07.2011, Proc. 85/08.1TJLSB.L1.S1 e 11.04.2013, Proc. 5548/09.9TVLSNB.L1.S1 (disponíveis em www.dgsi.pt), em que se decidiu obedecer ao regime geral do direito privado, aplicável à generalidade das profissões liberais, e não ao regime da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas previsto no DL nº 67/2007, de 31/12 (ou no revogado DL nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967), a responsabilidade que for imputada aos Agentes de Execução.
Disse-se naquele Acórdão do Tribunal dos Conflitos:
«No primeiro destes acórdãos, após se analisar detalhadamente as funções, atribuições, direitos e deveres do agente de execução concluiu-se o seguinte:
“A partir dos elementos essenciais de caracterização orgânica e funcional da figura, mormente, o dever ser exercida por profissionais liberais supervisionados pela Câmara de Solicitadores perante quem respondem disciplinarmente por actos cometidos no processo e não perante o Juiz, o não serem designados pelo Tribunal, o facto de apesar de intervirem em processos executivos com latos poderes, na perspectiva da desjudicialização do processo, e actuarem em nome próprio, ainda que possam ser destituídos pelo juiz e só com justa causa, faz, a nosso ver, com que a componente, diríamos, privada, da sua nomeação e o modo e responsabilidade da sua actuação, sobreleve a vertente da actuação paradministrativa, não devendo considerar-se que a sua actuação é a de um auxiliar ou comitido do Tribunal, nos termos do art. 500º, nº1, do Código Civil, daí que não exista da parte do órgão Tribunal responsabilidade objectiva por actos do solicitador de execução, que responsabilizem o Estado”.
Igualmente no acórdão de 11.04.2013, se procedeu exaustivamente à caracterização da figura do agente de execução expendendo-se o seguinte:
(…)
“2.4. Seja como for, em nenhuma das versões da Reforma da Acção Executiva se detectam sinais de qualquer intenção do legislador no sentido de se estabelecer uma equiparação dos solicitadores ou dos agentes de execução aos demais agentes administrativos, ao ponto de ficarem subordinados ao regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e, por inerência, à competência dos tribunais administrativos.
Submetidos a um estatuto híbrido, no qual surgem aspectos ligados à cooperação na Administração da Justiça cível, acaba por prevalecer a vertente liberal da sua actividade, a qual é revelada designadamente através do modo de recrutamento, da forma de designação (art. 808º, n.ºs 3 e 4), do grau de autonomia relativamente ao juiz (n.º 1), a par do grau de dependência em relação ao exequente (n.º 6), da faculdade de delegar a execução de actos (art. 128º do Estatuto), do regime de honorários, com indexação aos resultados (Portaria n.º 708/03, de 4-8), ou da atribuição da função inspectiva e disciplinar a órgãos autónomos que não se confundem com órgãos da Administração.
Tal demanda a integração no regime geral da responsabilidade civil. Com efeito, a submissão dos agentes de execução ao regime de responsabilidade civil prescrito para os servidores do Estado e de outras entidades públicas exigiria um grau de interferência externa e a elevação do nível de controlo a um ponto que acabaria por descaracterizar o perfil estatutário que o legislador inequivocamente pretendeu assumir.
2.5. Não se ignora que aos agentes de execução foram conferidos poderes que interferem com a esfera de terceiros, designadamente do executado, de início, sob o “poder geral de controlo” atribuído ao juiz e, agora, sujeitos à apreciação judicial mediante iniciativa externa (art. 809º, nº 1, do CPC).
Esses e outros aspectos têm levado alguns autores (que indica) a concluir que se aplica aos agentes de execução o regime da responsabilidade próprio dos agentes administrativos.
Diz-se, seguidamente, que:
2.6. Discordamos da solução apontada, assumindo, ao invés, entendimento semelhante ao que este Supremo Tribunal já expressou no aludido acórdão de 6-7-2011 (www.dgsi.pt).
Na maior parte das diligências (penhora, venda, arrecadação de dinheiros, pagamentos, notificações, etc.) os agentes de execução agem com uma autonomia praticamente total, fora dos limites da secretaria judicial, nos respectivos escritórios. Por isso não se compreenderia que, apesar desse grau de autonomia e do facto de não suportarem os ónus inerentes a um controlo externo e efectivo de entidades públicas, acabassem por ser submetidos ao regime específico da responsabilidade que a estas se aplica, com a inerente assunção, em determinadas circunstâncias, da responsabilidade civil exclusiva do Estado.
(…) 2.7. Solução contrária à daqueles autores foi assumida no referido aresto e encontra ainda conforto na análise feita por diversos autores.
Segundo Lopes do Rego, para quem o solicitador de execução é um “profissional liberal independente” (“As funções e o estatuto processual do agente de execução”, em Themis, n.º 9, pág. 44), é bem ténue o vínculo do solicitador de execução relativamente ao juiz do processo de execução, apenas sujeito a um poder de controlo genérico que não coloca em crise o facto de exercer a actividade com autonomia própria semelhante à de quem exerce uma profissão liberal (Comentários ao CPC, 2ª ed., pág. 17).
A submissão prioritária ao regime de responsabilidade civil em geral é igualmente defendida, com múltiplos argumentos (v.g., poder de delegação noutro solicitador, dever de observar determinadas instruções do exequente), por Virgínio Ribeiro, observando que, “na prática, a Reforma de 2003, transformou um profissional liberal num funcionário público, remunerado pelas partes” (“O poder geral de controlo na acção executiva”, em Julgar, n.º 18, pág. 149). Noutro local conclui, essencialmente a partir do actual regime, que a actividade do agente de execução se rege fundamentalmente pelas regras do “contrato de prestação de serviços de direito privado, ainda que na respectiva execução devam ser observadas maioritariamente regras de natureza pública” (As Funções do Agente de Execução, pág. 54), à semelhança do que ocorre com os notários (pág. 51).
Mais preciso é Tomé Gomes que, sem deixar de assinalar a “deficiente definição dos termos da responsabilidade civil, mormente do Estado, por uma eventual actuação danosa do solicitador de execução”, conclui que, nada de específico se prevendo, há que “recorrer aos meios de tutela comuns, tendo em linha de conta que se trata do exercício de uma profissão independente, mas pautada por deveres estatutários específicos, aliás, postulados pela natureza pública da função da administração da justiça em que se inscrevem”, pondo em destaque a obrigatoriedade legal de existência de seguro de responsabilidade civil (“Balanço da reforma da acção executiva”, em Sub Judice, n.º 29º, págs. 31 e 32).
A mesma conclusão advoga Maria da Glória Garcia, para quem a actuação dolosa ou negligente do agente de execução na fase de realização da penhora (e não só) fá-lo incorrer em “responsabilidade civil, nos termos gerais, quando se encontrem preenchidos os requisitos do art. 483º do CC” (A Responsabilidade do Exequente e de Outros Intervenientes Processuais, págs. 36 e 38).
2.8. A justificação para esta solução encontra no sistema apoios suficientes, ainda que de natureza difusa.
Para além de a excepcionalidade do regime de responsabilidade civil dos agentes do Estado impulsionar a restrição da sua aplicação a casos que com ele mantenham um forte paralelismo, certas medidas legislativas que acompanharam a criação da figura do solicitador ou do agente de execução apenas se compreendem num sistema em que a respectiva responsabilidade civil se enquadre no regime geral.
(…) 2.9. O modo como foram reguladas outras situações paralelas pode servir para filtrar ainda mais a solução que se revela mais adequada no contexto de um sistema jurídico que se pretende coerente.
Vejamos:
a) A transferência de competências para os agentes de execução não é substancialmente diversa da possibilidade que, em geral, é conferida aos solicitadores ou aos advogados de atestarem o reconhecimento de assinaturas e a conformidade de cópias de documentos, nos termos que estão previstos no Dec. Lei n.º 28/00, de 13-3, reforçado pelo Dec. Lei n.º 237/01, de 30-8.
A tais actos de reconhecimento e de atestação é atribuído valor probatório idêntico ao que decorre de semelhantes actos que eram praticados por Cartórios Notariais que praticamente detinham o monopólio da atribuição de fé pública documental. Tratando-se de uma opção que não é isenta de riscos e que também é susceptível de afectar, por negligência ou dolo, interesses de terceiros, apesar disso, está afastada naturalmente a responsabilização do Estado por actos que, na realidade, se inscrevem no âmbito do puro exercício de uma profissão liberal, demandando em exclusivo a aplicação das normas especificamente relacionadas com as actividades e os estatutos profissionais em causa.
Tal como à criação da figura do agente de execução presidiu o objectivo de tornar mais eficazes e ágeis os procedimentos executivos, também naquela iniciativa se entrevê a ideia de facilitar o quotidiano dos cidadãos e das empresas, sem que uma tal opção tenha de conviver necessariamente com a responsabilização ou co-responsabilização do Estado pelos danos que sejam imputados aos que actuam ilicitamente na prática de actos de reconhecimento e de atestação.
b) Mais evidente se mostra o argumento que se extrai do paralelismo que existe entre os agentes de execução e o administrador de insolvência, sendo de notar, desde logo, que o art. 11º, al. a), da recente Lei n.º 22/13, de 26-2, que reviu o estatuto profissional do administrador de insolvência, estabelece, para determinados efeitos, a equiparação entre ambas as profissões.
A actividade do administrador de insolvência envolve um elevado grau de intervenção na administração e na liquidação do património dos insolventes, podendo envolver, além do mais, a representação do insolvente, a gestão de empresas ou de estabelecimentos, a verificação do passivo, a liquidação de todo o património, a venda de bens, a efectivação de pagamentos, etc.
Mas apesar da amplitude das competências do administrador de insolvência e da manutenção de um vínculo funcional relativamente ao juiz (sendo este que, em regra, designa o administrador, nos termos do art. 52º, n.º 1, do CIRE, podendo destituí-lo com justa causa - art. 56º do CIRE), por expressa opção do legislador, a eventual responsabilidade civil em que incorra perante os credores ou devedores obedece ao travejamento da responsabilidade civil extracontratual, com as especificidades constantes do art. 59º do CIRE.
Correspondentemente a imputação dessa responsabilidade e a reclamação de alguma indemnização é feita nos quadros do processo de insolvência, não havendo sinal algum de que a sua actuação seja submetida ao regime ao regime jurídico especificamente previsto para a responsabilidade extracontratual do Estado, com atribuição de competência material aos tribunais administrativos.
Foi, aliás, para responder a eventuais indemnizações decorrentes da prática de actos ilícitos no exercício das funções que o art. 12º, nº 8, do actual estatuto, aprovado pela Lei nº 22/13, de 26-2, tal como já ocorria com os agentes de execução, também veio prescrevera obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil destinado a cobrir “o risco inerente ao exercício das suas funções”, sinal claro de que não se pretende a (co-) responsabilização do Estado, nem a abrigo do regime especial, nem do art. 501º do CC.”
Concluiu assim o acórdão que a componente privada da nomeação dos agentes de execução e o modo de responsabilidade da sua actuação, sobreleva a vertente da actuação para-administrativa.
Igualmente o Tribunal Constitucional no acórdão de 24.04.2012 (www.tribunalconstutcional.pt), a respeito da possibilidade da livre substituição do agente, referiu que, “o agente de execução não exerce nem participa na função jurisdicional, e não integra o «tribunal» enquanto órgão de soberania, sendo-lhe consequentemente inaplicável o acervo de garantias que vinculam a função jurisdicional», acrescentando que, «para além de ser nomeado pelo exequente, o agente de execução pode ser livremente destituído sem ser necessário invocar qualquer fundamento específico para esse efeito, e esse poder de destituição livre do solicitador de execução aproxima-se de uma relação de direito privado de mandato; a introdução da possibilidade de destituição livre do agente de execução pelo exequente veio, afinal, impor a este órgão do processo executivo que actue em sintonia com o interesse do exequente, o que nada tem de constitucionalmente reprovável, tanto mais que, como consequência do seu carácter de profissional liberal, a remuneração que o agente de execução aufere é aquela que respeitar os serviços prestados”.
Aderimos aos argumentos expendidos nos acórdãos do STJ supra indicados pelo que entendemos que no domínio da legislação aplicável ao caso - o Estatuto da Câmara dos Solicitadores - a responsabilidade civil extracontratual dos agentes de execução tem natureza privada, regendo-se pelos artigos 483º e seguintes do CC
Este tem sido também o entendimento maioritário perfilhado noutros tribunais superiores como, por exemplo, nos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.042013, Proc. 397/11.7T2AND.C1., do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.11.2017, Proc. 12597-15.6T8LSB.L1-6 e do Tribunal da Relação do Porto de 29.09.2021, Proc. 2462/20.0T8MTS-A.P1 (disponíveis em www.dgsi.pt).
De acordo com a referida orientação jurisprudencial, transponível para o presente caso, a responsabilidade civil extracontratual dos agentes de execução, cuja actuação lesiva teria ocorrido nas suas funções e por causa delas, tem natureza privada, regendo-se pelos artigos 483º e seguintes do CC, não se integrando na alínea h) do nº 1 do art. 4º do ETAF, uma vez que não respeita a “Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”.
Assim, e reiterando o entendimento perfilhado no Acórdão do Tribunal dos Conflitos e demais jurisprudência nele citada, decide-se que cabe à jurisdição comum a competência para conhecer da acção.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 16 do Julgado de Paz de Lisboa.
Sem custas.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2023. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza.